SELVA!

No coração da floresta amazônica o corpo do soldado Soares jazia em seu posto de sentinela. Sangue aos borbotões manchava todo o chão de terra batida. O pior de tudo foi encontrarem a cabeça do pobre recruta jogada alguns metros adiante. Ninguém havia escutado nada, nem tiros, nem gritos. Alguém havia cometido aquela atrocidade no silêncio da madrugada e fugido.

Já fazia mais de dois meses que eles estavam ali e nada de encontrarem os malditos comunistas. E agora um dos seus era encontrado morto, assassinado, sem que ninguém tivesse ouvido nada ou soubesse informar alguma coisa.

O comando havia garantido que os terroristas estariam ali naquela região, mas até agora não haviam encontrado nenhum deles. Parecia que os desgraçados tinham aberto um buraco no chão e sumido.

- Capitão, o senhor acha que foram os comunistas que fizeram isso?

- Porra, cabo! Claro que foram os filhos da puta que fizeram.

- Mas capitão se fossem os comunistas eles teriam levado o fuzil dele. E ele tá direitinho ali. O senhor não acha que eles teriam levado?

- Foram eles sim! Usaram a merda de um terçado pra arrancarem a cabeça do pobre do Soares e fugiram com pressa por isso que não levaram a arma dele.

Eles não haviam se enterrado naquela selva para levaram surra de uns comunistazinhos de merda. Aquela infâmia não poderia ficar impune e alguém tinha que saber de algo. Alguém iria ter que abrir o bico de um jeito ou de outro.

***

A forte bofetada fez um som abafado quando estalou no rosto suado do homem baixo de tez escura. Um filete de sangue escorreu de seus lábios grossos.

- Onde estão os paulistas, infeliz? É melhor ir logo abrindo o bico de uma vez.

- Eu num sei capitão, num sei...

Outra bofetada estalou na cara do pobre homem. Era sempre assim. Eles resistiam no primeiro momento, mas depois falavam até o que não sabiam.

- Vou perguntar de novo. Onde estão os terroristas, desgraçado?

- Capitão, eu num fiz nada. Eles passaram na venda e compraram fumo e farinha. Eu só fiz vender.

- Que rumo eles tomaram?

- Eu acho que eles seguiram pras banda do Tabocão.

- Quando foi isso? E fala direitinho que isso já está enchendo a porra do saco.

- Foi antesdonte, eu juro capitão.

- Eu não tô acreditando nessa tua história. Tu vai voltar pro buraco já já.

Um sinal feito pelo outro oficial presente interrompeu o interrogatório.

- Taveira, tô achando que esse aí não sabe muita coisa. Deixa eu tentar ver se tiro mais alguma coisa dele.

Havia uma discreta competição entre os dois oficiais, mas também muita camaradagem. O oficial mais graduado concordou e autorizou que o outro conduzisse o interrogatório.

- Todo mundo aqui te chama de Mané Gago não é? Mas até agora não vi tu gaguejar nenhuma vez. Fala pra mim, porque te chamam de Mané Gago?

- Num sei dizer, capitão. Meu nome é Manuel, mas desde criança todo mundo aqui só me chama de Mané Gago. Se eu já gaguejei alguma vez deve ter sido quando era bem zitito.

O oficial limpou o suor da testa. Ele já estava há um bom tempo naquele lugar e ainda não se acostumara com o verão amazônico. Sentia seu uniforme empapado. Tirou um maço de cigarros meio amassado do bolso e acendeu um.

Mané Gago baixou a cabeça, evitava olhar diretamente para o militar. Tinha medo do que poderia vir pela frente.

Favacho deu uma grande tragada no cigarro e recomeçou.

- Eu não sou capitão, sou tenente. Já fumou um desses? Tá afim de um?

Mané Gago nunca gostou muito de cigarro com filtro, preferia fumo de rolo, mas decidiu aceitar por medo do que uma resposta negativa pudesse lhe causar.

- Esses caras que a gente tá procurando são terroristas, eles querem transformar o Brasil em um pais comunista. Tu sabias que se isso acontecer eles vão pegar a tua venda e dá para um monte de gente? Aí tu vai perder ela prá sempre.

- Eu sei, tenente. É tudo gente que num presta. – Mané Gago não entendia nada dessas coisas de política, mas achou melhor concordar logo – Como eu disse pro capitão eles passaram aqui, uma gente com uns palavreado esquisito, compraram fumo e farinha e foram embora.

- Tinha algum mateiro com eles?

- Eu num vi mateiro nenhum. Do tempo que já tão aqui eu acho que eles já sabem andar por esses mato todo.

Favacho retira do bolso um punhado de notas e dá para o pobre homem amedrontado.

- Toma, aqui tem cem cruzeiros prá ti. Agora é o seguinte, fica de olho aberto. Se tu vires os paulistas corre e vem avisar a gente. Aí tu ganha mais ainda.

***

A coisa não estava andando. Eles já tinham interrogado um monte de gente e até agora não tinham conseguido nada de muito importante. Aquele povo era muito ignorante. Imagine não saber o nome do presidente do Brasil, dois pescoções e o sujeito aprendeu na hora. Outro entregou um monte de panfleto que tinha recebido de um dos comunistas, mas o infeliz mal sabia escrever o nome.

***

Aqueles recrutas não sabiam andar direito na selva, eram muito inexperientes. Alguns chegaram a chorar com medo de encontrar os terroristas. Esses mais frouxos Taveira deu um jeito de não continuarem na companhia, eles que fossem cagar nas calças lá na capital.

Mais cedo ou mais tarde o comando teria que enviar gente mais capacitada, mas por enquanto ele teria que se virar com o que tinha.

Prevendo que alguma coisa ruim poderia acontecer ele decidiu que de agora em diante haveria três sentinelas por noite. Deveria bastar para dissuadir qualquer ataque soturno.

***

Por volta de três horas da madrugada o matraquear de um fuzil FAL acordou todo o destacamento. Soldados corriam para todo lado, alguns em trajes menores. Eles estavam sendo atacados.

O que se descortinou à vista de todos foi dantesco.

Os corpos dos três sentinelas jaziam ao lado da pequena guarita montada. Eles estavam esviscerados.

Gritos de ordem fizeram com que todo o perímetro em torno do acampamento fosse vasculhado. Ninguém mata três soldados bem armados e permanece impune.

O resto da madrugada foi de uma busca insana. Fortes holofotes e até fogos de bengala foram utilizados na tentativa de tornar visíveis os assassinos dos soldados. Tarefa muito difícil uma vez que a selva em torno do destacamento não permitia que se visse muita coisa. Grupos de soldados adentraram a densa mata dispostos a fuzilarem os terroristas. Tudo inútil, pois nada foi encontrado.

O amanhecer encontrou os dois oficiais comandantes extenuados e profundamente irritados.

- Alguma coisa está matando os nossos soldados – Favacho falou isso enquanto dava uma longa tragada em seu cigarro.

- Que conversa é essa já? Não tem isso de "alguma coisa está matando os nossos soldados". Sabemos muito bem quem fez isso e juro que vou arrancar todos os ossos desses miseráveis filhos da puta. Acho melhor tu não sair falando por aí esse tipo de coisa. Foram os terroristas e não se fala mais nisso. E me dá logo um desses teus cigarros que os meus acabaram.

- Podemos seguir interrogando mais dessa caboclada. Um deles vai ter que falar algo que se aproveite – Favacho falava tentando amenizar a raiva do seu capitão.

***

- Esses recrutas são todos uns frouxos de merda! Onde já se viu três homens bem armados serem mortos daquele jeito? Eu mesmo irei ficar de sentinela hoje à noite. Quem sabe assim a coisa não melhora.

- Capitão, os homens estão assustados e acho desnecessário isso. A gente pode...

- Tenente Favacho, escolha cinco homens de sua preferência e todos bons atiradores. Eles vão ficar comigo hoje à noite.

Sem ter muito como contestar o seu superior restou ao tenente cumprir com as suas ordens.

***

A madrugada avançava e o comandante do pequeno destacamento decidiu dividir seus sentinelas em três duplas para cobrir todo o perímetro.

Durante a noite a selva adquire uma configuração mais assustadora, o vento faz as árvores terem contornos estranhos, surgem sons diferentes daqueles presentes enquanto é dia. É muito fácil ficar com medo quando a luz do sol vai embora e se está em uma mata fechada.

Tensos, de fuzil em punho, mas encorajados pela presença do seu capitão, os soldados viam as horas passarem. Mais um pouco e a luz salvadora da manhã iria se fazer presente.

Próximo de amanhecer um dos soldados chama a atenção do capitão para um farfalhar vindo das árvores.

Algo estava saindo da selva.

O que seus olhos viam eram uma inacreditável criatura muito mais alta que um homem, com pelos que lhe recobriam o corpo todo. Um único olho compunha quase toda a sua cabeça. Braços incrivelmente musculosos com mãos em formas de longas garras forneciam um aspecto terrível e poderoso àquele ser.

Ele tentou gritar, mas não conseguia. Tentou levantar o seu fuzil mas as forças pareciam ter fugido. Um medo primitivo assomou-lhe o espírito e um jato de urina forneceu a última somatização quando viu a barriga da criatura abrir-se expondo uma bocarra com dentes imensos e pontiagudos.

***

- Tenente, o que a gente vai fazer agora? – Um angustiado cabo Freitas perguntava ao seu superior.

Acendendo mais um cigarro e olhando de maneira estranha para os restos do seu finado capitão ele respondeu;

- O melhor a fazer agora é botar tudo isso na conta dos comunistas. E prepara a soldadesca que vamos levantar acampamento – Deu uma última tragada e virou a costas.

Uma semana depois chegaram tropas mais bem treinadas e o que aconteceu em seguida só entraria para os livros de história muitas décadas depois.

* Este conto tem como pano de fundo a Guerrilha do Araguaia que ocorreu de 1967 até 1974

** A criatura retratada na narrativa foi inspirada na lenda do Mapinguari.

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Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 09/02/2022
Reeditado em 16/12/2023
Código do texto: T7448363
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