O Castelo de Vidro _ Final _

Assim que a entrada se fechou a escuridão tomou conta de tudo. Mas, através de um sensor, logo as luzes se ascenderam. Havia prateleiras esculpidas nas rochas. Estavam cheias de imagens de santos e outros objetos, que pela aparência foram achados no lixo. O local de muito mau gosto era uma espécie de antessala com sofás rasgados, mesas de centro quebradas e quadros velhos. Havia também um lustre dependurado, esse sim se destacava como algo caro e de extremo bom gosto.

Vincent passou os olhos pelo ambiente e antes de falar o rosto se iluminou como se fosse sorrir;

_ Delegado, essa parte é a que mais aprecio. Certa vez li que a gente pode deixar a pobreza, mas que a pobreza jamais vai nos deixar....

O delegado desviou os olhos para o lampadário que dava um tom dourado as bugigangas e perguntou:

_ Como descobriu essa lugar?

_ Foi Alvim que recordando uma de suas vidas se lembrou que já viveu aqui. Claro que levou tempo para que ficasse do meu jeito. Agora vamos para o que realmente importa.

Bastou Vincent acionar o controle remoto que estava sobre uma cadeira azul para que uma fenda se abrisse no solo arenoso. De súbito, uma escada foi se desdobrando até que com estardalhaço bateu distante. O delegado fez uma expressão de espanto quando após um estalo o mecanismo rolante foi acionado. Pequenas luzes se acenderam nos degraus dando tons de verde a grande língua metálica que os levou para o fundo.

Ao chegarem ao subsolo o delegado teve um mal súbito ao se deparar com centenas de corpos suspensos em fios que pendiam do teto. Varejeiras se acasalavam sobre os pedaços deteriorados que despencavam dos ossos. Roedores, entre outras asquerosas formas de vida, se alimentavam das larvas tal como crianças gordas geradas pelos insetos.

Era difícil de calcular o valor empenhado para abrigar toda aquela loucura. O teto rebaixado com gesso tinha milhares de luzinhas que simulavam estrelas, já as paredes eram revestidas com a junção de duas lâminas de vidro preenchidas com um líquido quase âmbar.

Vincent alheio ao torpor em que o delegado estava mergulhado pôs-se a falar:

_ Surpreso? Observe os mortos, as universitárias que tanto queria encontrar estão entre eles, irreconhecíveis, não é mesmo?

O delegado não respondeu.

Vincent franziu o cenho, e após estalar todos os ossos do pescoço, continuou:

_ Não vai me perguntar quem são os outros?

O delegado permaneceu alheio, mas Vincent prosseguiu como se ele estivesse atento a tudo:

_ São funcionários que contratados para deixar o lugar como imaginei não poderiam ficar vivos para expor meu segredo. Concorda??? Mas há também andarilhos, prostitutas, carteiros e entregadores. Porém, a grande maioria são defuntos que um coveiro furtava. Quando questionado, eu falava que era adepto ao canibalismo, se bem que como de tudo... Certa vez esse meu fornecedor me perguntou o que eu fazia com tanta mercadoria, disse que tinha uma Kombi velha e distribuía marmitas para os moradores de rua, ele, com ar entristecido, falou que sabia bem o que era passar fome. Não que eu precisasse, mas até pensei que pelo meu ato de bondade me faria um descontinho. Entretanto, era só fachada, o danado começou a cobrar pelo peso das carcaças.

Nada que Vincent disse foi assimilado pelo delegado, que continuou inerte com os olhos perdidos entre a podridão dos corpos . Só teve uma pequena reação, um espalmo talvez, quando, de repente, os cadáveres suspensos começaram a balançar como se alguém abrisse caminho entre eles, foi então que surgiu: Alvin.

Havia pouca coisa agarrada ao purulento esqueleto. O quadril descarnado deixava a mostra quase um palmo de tripa que expelia secreções fedidas. O rosto era indescritível, e quando abriu a boca uma quantidade surpreendente de vermes despencaram. Com uma pequena bomba, cujo bico era enterrado entre as costelas, Alvin encheu um dos pulmões, o outro parecia ter a base esganiçada por algum animal. Enfim, depois do procedimento teve ar para falar:

_ Vincent, meu amigo, achei que não voltaria...

_ Como vê, estou aqui e trouxe alguém que eu queria muito que te conhecesse.

Alvin cambaleante foi até o delegado, que com a boca aberta parecia paralisado dentro de um pesadelo.

A criatura introduziu o dedo na garganta do infeliz. Uma lufada de vômito rompeu o nó que lhe impedia de gritar. O som de forma apavorante ecoou pelas vitrines fazendo surgir uma revoada de morcegos, que batendo nos cadáveres deram a eles movimentos desordenados como se dançassem ao som de uma tétrica melodia que só os mortos são capazes de ouvir.

A explosão de pavor durou alguns minutos até que os gritos desatinados perderam a força.

Cessaram...

Alvin tinha os dentes a mostra na boca desprovida de lábios, o que lhe dava um triste aspecto sorridente. Só havia lagartas preenchendo as cavidades orbitais. Mas, mesmo assim, como nos sonhos, ele enxergava com a alma.

A coisa outra vez calibrou o órgão e, em seguida esticou a mão ossuda e disse com um grande sorriso de caveira:

_ Prazer em conhecê-lo...

Mas, diante do incrível, o delegado bateu forte no chão.

***

Enfim, quando acordou não demonstrou reação ao ver Vincent explodir o crânio de um rato com suas mandíbulas. Apenas disse:

_ Nada mais me surpreende. Por favor, quero ir embora.

Alvin capturou outro roedor que corria frenético dentro de sua caixa torácica. Porém, ao entregá-lo, falou gastando assim o restinho de ar que ainda guardava dentro do peito:

_ Meu amigo ainda quer lhe mostrar algo:

Vincent mastigava e (como achava feio falar com a boca cheia) fez sinal com a mão espalmada para que esperasse. Não demorou para que os ossinhos em meio a parca carne triturada fosse engolido. Mas só depois de regurgitar e cuspir a couraça cinza foi que disse:

_Observe as paredes, cuja mortalha é de vidro, estão preenchidas com humor vítreo. Não! Não se assuste quando a música começar a tocar; as almas vão despertar e poderá ver todas.

O delegado já não tinha mais forças e nem esperança de sair vivo daquele lugar, e, para não chorar, apenas tentou sorrir.

Outras luzes se acenderam sobre as cortinas de vidro, que iluminadas passaram a exibir aquele cenário de horror. Mas foi quando a fascinante melodia começou a tocar que a magia aconteceu.

De forma nítida os corpos em decomposição, enquanto pariam suas almas, podiam ser vistos em tão fascinante espelho. Depois a imagem dos cadáveres desapareceu. Os espectros se abraçavam como se despertassem de um sono de mil anos. Todos estavam nus de vestimentas e pensamentos.

Vincent e Alvim foram para o centro do salão e refletidos não condiziam com a realidade. O primeiro tinha a beleza dos príncipes das histórias com final feliz, já o segundo, um jovem comum.

A voz da soprano emoldurada pela orquestra era tão melancólica que lembrava o entardecer em uma floresta; de certo, foi ouvida no firmamento; foi por isso que fez surgir os mais belos anjos que vivem no céu. Eles, como gotas douradas foram caindo dentro do espelho. Não demorou para que com suas belas asas envolvessem a todos e, com a alegria das borboletas, começassem uma dança sensual. Porém, outras criaturas, essas horrendas, também foram despertadas.

Brotaram do fundo da terra e excitadas com a prática dos seres celestiais, tentaram em vão atravessar a cortina de cristal. Enfim, dominadas pela volúpia foram em direção aos corpos e os violentaram para depois devorarem com sofreguidão a carne apodrecida.

As bestas, saciados, cavaram o chão com suas garras poderosas e voltaram para as profundezas do inferno. Já os outros, bateram asas e voaram.

Todos que estavam refletidos saíram e se acoplaram aos corpos descarnados. Alvin também teve sua parca carne arrancada e seu espírito achou graça dos ossos espalhados pelo chão.

Vincent com sua aparência perfeita foi o único a permanecer lá dentro. Mas bastou um gesto seu para que todos retornassem para aquele outro mundo.

O Delegado Kitamura quando deu por si havia atravessado a barreira, foi então que percebeu que em algum momento também havia morrido e que estava condenado a viver por toda eternidade em um castelo de vidro.

FIM

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 13/02/2022
Código do texto: T7451173
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