ESTRADA DOS OSSOS - CLTS 18

O rosto de Natalya está tão próximo ao seu que ele chega quase a adivinhar-lhe a textura da pele. A delicadeza daqueles pequenos olhos sempre lhe encantou. Ele nunca cansou de admirar aquela beleza. Ela esboça um tímido sorriso encorajando-o. Ele acaricia seu rosto e uma sensação intensa de prazer e felicidade lhe invade o corpo. Tudo isso dura apenas um mísero segundo, pois, com horror, percebe que a bela face derrete em suas mãos como se fosse uma vela exposta a um calor intenso. Em desespero tenta restaurar o rosto. Tudo é inútil e ele termina gritando em profunda agonia.

Acorda sentindo que a qualquer momento o frio irá chegar até os seus ossos. Mesmo enfraquecido, desnutrido e sentindo o corpo dolorido ele entrega-se às suas lembranças, memórias de uma época perdida e distante no tempo. Isso ninguém pode tirar-lhe. Novamente ele sonhou com Natalya. Será que um dia deixará de sonhar com ela?

O pavilhão está imerso em um silêncio sepulcral. Todos dormem o sono dos infelizes, o sono dos desterrados. É madrugada e ele sabe que daqui a pouco a sirene irá tocar anunciando mais uma jornada de quinze horas cavando o chão duro e congelado daquele lugar desgraçado.

No inferno gelado que atende pelo nome de Kolyma é muito fácil perder a noção de tempo. As horas de luz solar duram muito pouco e as noites de inverno parecem ser eternas. Dia após dia Andrei Gusev vive sem saber se haverá um amanhã.

Em silenciosa tristeza ele pensa o quanto gostaria de escrever sobre o que está sentindo nesse momento, mas faz tanto tempo que não vê papel e caneta que tem até medo de não saber mais desenhar uma letra sequer. Aliás, escrever foi a sua ruína. Uma carta interceptada pelo NKVD. Um simples parágrafo dizendo que um pouco de inteligência não faria mal a Stálin e, pronto, sua passagem para um Gulag estava garantida.

Era a terceira vez que sonhava com Natalya. Ou teria sido a quarta vez? O que ela estará fazendo agora? Será que ela ainda trabalha naquela biblioteca? Sempre achou engraçado o carinho que ela dispensava a um monte de livros que a maioria das pessoas jamais leria.

Esboça um débil sorriso ao lembrar que Maiakovski foi o grande culpado por ele ter se apaixonado pela bibliotecária.

- O senhor gosta muito de ler, não é? Sempre vejo o senhor aqui perdido no meio dos livros. Esse que está lendo agora qual é?

- Esse é Maiakovski. O mais maravilhoso e intenso poeta de todos que já li. No futuro irão dizer que é o maior poeta já nascido nesse país.

Sentiu-se ridículo de imediato. Por que falar daquele jeito empostado? O que aquela moça sorridente iria pensar dele? Que era só mais um amante dos livros que vive com a cabeça nas nuvens? Melhor seria evitar aquele tom professoral e conversar coisas que a fizessem novamente mostrar o sorriso encantador.

Aos poucos a cumplicidade entre ambos foi crescendo e um dia a paixão floresceu bonita como um campo de girassóis. Longos passeios, beijos e poesia passaram a fazer parte do cotidiano do novo casal.

Andrei Gusev suspira ao lembrar cada momento ao lado de sua amada...

Daqui a pouco mais uma descida ao inferno de gelo vai começar e ele precisa dormir.

***

Smolensk caiu morto. Ele é apenas mais um que morre de exaustão, de fome, de doença, de frio, de tudo. Seu corpo cheio de piolhos irá ser enterrado às margens da estrada que ele e seus companheiros de infortúnio constroem com a certeza de que jamais a terminarão.

Kuznetsov Foi executado sumariamente. Ele foi flagrado roubando algumas batatas. Sua família nunca saberá que ele morreu. Ter sido um herói na Grande Guerra Patriótica não lhe serviu de nada.

Sobol pereceu de fome. Estava muito desnutrido, há dias que ele não conseguia cumprir a sua cota de trabalho e, por causa disso, também não recebia mais que umas poucas gramas de pão. Ele simplesmente largou sua picareta, escorou-se em um carro cheio de detritos e morreu.

Seus corpos irão compor a nova estrada. Seus ossos servirão como argamassa e ninguém nunca saberá ao certo quem eram esses homens. A história de suas vidas estará perdida e misturada ao gelo e à lama para sempre.

***

A longa fila de homens vestidos com roupas pesadas e grosseiras se assemelhava a uma cobra serpenteando em seus momentos de agonia. Seus rostos tensionados pelo frio e cansaço mal escondem o desespero da fome. Todos torcem para que a sopa quente esteja mais consistente que a do dia anterior. A maioria daqueles homens pisaria no pescoço da própria mãe por um pouco mais de comida.

Andrei Gusev anda com dificuldade. Sente o desespero apertar seu estômago. Ele precisa com urgência daquela sopa. Sua dignidade há muito que já tinha virado um fantasma esquecido em algum antigo livro, ele sabe que faria qualquer coisa por um pouco a mais de comida. Cada metro andado naquela fila de homens depauperados e fedorentos o leva para mais perto daquele liquido ralo e quente.

Enquanto anda penosamente no chão congelado seus olhos subitamente pousam na figura alta e incrivelmente esquálida que se encontra fora da fila. Afastada alguns metros ela observa silenciosamente os homens esfomeados andarem lentamente com seus pratos amassados na mão.

Gusev cutuca o homem à sua frente e aponta em direção ao estranho.

- Andropov, quem é aquele homem alto e magérrimo que fica olhando a gente?

Seu parceiro de infortúnio lhe responde de maneira irritada e com visível má vontade:

- De quem você está falando já? Não tem ninguém ali. Está ficando louco camarada? Reze para que a comida de hoje esteja mais grossa que a de ontem e fique em silêncio que os guardas não gostam que a gente fique conversando muito.

Gusev não entende porque seu camarada não consegue ver a figura esquálida. Ela está logo ali à frente deles. Ele tenta enxergar as feições do estranho homem, mas não consegue. O vento gélido, a fome e a fraqueza impedem-lhe uma melhor acuidade visual.

Sua vez chegou. O líquido quente naquele prato sujo e amassado constitui seu único bem, a coisa mais importante na sua tosca vida.

Após sorver com desespero a rala sopa ele olha ao seu redor. O estranho homem esquálido havia sumido. Tudo o que seus olhos veem são os guardas armados e uma planície esbranquiçada pela neve e gelo.

***

Mais uma noite no pavilhão dos infelizes. A temperatura está abaixo dos trinta graus negativos. Os prisioneiros dormem em seus beliches coletivos. Seus corpos depauperados lutando contra a exaustão e buscando refúgio em um sono que logo será interrompido pela sirene anunciando mais um dia de trabalhos forçados.

Andrei Gusev acorda subitamente. Novamente havia sonhado com Natalya. Até quando ele terá esses sonhos? Tentando retomar o sono ele se depara com algo completamente inusitado: a figura alta e magra, que havia visto na fila da comida, está andando por entre os muitos beliches.

Vestida estranhamente com trajes leves e muito envelhecidos, algo completamente inapropriado para o clima hostil da Sibéria, a figura segue caminhando pelo pavilhão.

Gusev se encolhe mais ainda. Sentindo medo do que seus olhos teimam em lhe mostrar ele decide que aquilo não é humano.

Ele luta contra o sono, pois sabe que precisa descansar. Cada minuto dormindo, cada grama de comida ingerida pode ser a

diferença entre viver ou morrer. O torpor lhe assola o corpo e ele sente que está caindo em um buraco sem fundo. Acorda novamente. Seus olhos pesam como os blocos de terra congelada que diariamente ele remove na construção daquela estrada maldita. O que é aquela coisa? Ela existe de fato?

A estranha criatura anda lentamente, o corpo magro assumindo uma pequena curvatura nas costas. A penumbra reinante no pavilhão impede que suas feições sejam vistas com clareza. Silenciosamente ela para defronte de um dos beliches. Durante algum tempo fica a observar os seus ocupantes. Então levanta um dos braços, fino como um graveto, e toca em dois prisioneiros.

O barulho estridente da sirene irrompe anunciando o início de mais um dia infame de trabalho.

Gusev sai do seu estado de estupor e constata que não existe ninguém no pavilhão além dele e dos demais prisioneiros.

***

As mãos de Andrei Gusev estão dormentes de frio e mal conseguem sentir o cabo da picareta. O solo gelado é muito duro e exige um esforço físico imenso. Dezenas de homens cavam uma longa vala às margens da estrada. Todos estão ansiosos esperando o momento de receberem uma nova cota de alimentação.

Em um dado momento um grupo de guardas se aproxima e ordena que todos coloquem as picaretas e pás no chão e formem uma coluna. Ouve-se um rumor de ansiedade entre os prisioneiros logo silenciados pelos soldados. Em seguida procedem com uma revista. Rapidamente dois deles são retirados.

Todos viram quando eles foram levados para trás de um galpão e executados. Os prisioneiros ficam murmurando baixo tentando entender o que aqueles homens fizeram para serem mortos. No fundo todos sabem que naquele lugar não é necessário nenhum motivo minimamente plausível para alguém ser assassinado.

Os tiros ficam ecoando longamente naquele lugar gelado e hostil.

Gusev fica estático tentando entender o que está acontecendo. Ele reconhece os dois homens executados: são os mesmos que foram tocados pela criatura na noite anterior. Sua mente se perde imediatamente em mil pensamentos.

Uma forte cutucada em suas costas, dada pela arma de um guarda, o faz voltar a si.

***

O sol está em seu zênite, fornecendo uma luz fraca e incapaz de propiciar calor àqueles homens flagelados.

Eles cavam valetas, carregam blocos de pedras, levam detritos para todos os lados. Guardas armados vigiam e cuidam para que ninguém faça corpo mole. Fugir é impossível já que ninguém sobreviveria muito tempo ao inverno siberiano estando faminto e enfraquecido.

A criatura mais uma vez anda por entre os prisioneiros. Sua presença não é notada por ninguém. Apenas Gusev a vê. Ele esfrega os olhos duvidando de si mesmo. Fecha-os na esperança de que ao abri-los ela não estará mais ali. Nada disso adianta, pois ela continua em seu solitário percurso.

Um homem de estatura baixa carrega uma saca com o peso apenas um pouco menor que o seu. Ele anda de maneira trôpega. A criatura para ao seu lado. Ela olha para o pequeno prisioneiro e o toca levemente em seu braço. Faz isso e segue caminhando.

Gusev continua cavando o chão duro sem tirar os olhos da criatura. Por que apenas ele a vê? Estava a se fazer essa pergunta quando uma gritaria acontece. Vários prisioneiros correm para socorrer o pequeno homem que está gemendo com as mãos no peito. Seus lábios azulados por causa do frio tentam pronunciar alguma coisa, mas não conseguem.

Anton Rurik teve um infarto fulminante. Seu coração frágil não aguentou. O pequeno professor de matemática nunca mais irá voltar para Minsk. Sua esposa e filhos nunca saberão que ele morreu e foi enterrado na própria estrada que era obrigado a construir. Um dia alguém irá passar de carro por aquele lugar ermo sem saber que estará rodando em cima de uma gigantesca coleção de cadáveres.

Gusev não consegue tirar os olhos da estranha coisa.

Olhando para aquele ser ele percebe que uma grande tristeza emana daquela criatura. Ele não sabe definir o que isso significa, faltam-lhe palavras, apenas sente que agora não existe mais o medo em sua alma e sim a constatação de que aquela coisa representa a personificação da própria morte. Uma morte que caminha em seus trajes andrajos, triste e esquelética como a fome que martiriza aqueles homens esquecidos.

Um dia aquela coisa sem nome também irá tocá-lo.

Agora todos os dias Gusev fica rezando para quando o seu momento chegar, que tudo seja muito rápido e que a história de sua vida não fique esquecida naquele lugar.

***

A sirene toca mais uma vez. Todos se levantam lentamente. O odor forte de roupas sujas e corpos que fedem ajudam a compor a degradação do pavilhão. Estranhamente Um prato raso de kasha é servido para os prisioneiros como desjejum.

Todos ficam em alerta e o nível de ansiedade aumenta quando lhes é informado que acontecerá um breve pronunciamento do oficial que comanda o campo.

Perfilados os prisioneiros escutam as poucas palavras dirigidas a estes.

- Esse campo de reeducação será fechado nos próximos dias. Agradecemos pela contribuição dos senhores. O trabalho de vocês ajudará a levar progresso aos cidadãos dessa parte esquecida de nossa pátria mãe. Vocês serão remanejados para Omsk e de lá para as suas cidades de origem.

***

Sete longos anos separam Andrei Gusev de sua pequena cidade. O barulho do trem é monótono e ele termina dormindo. Mais algumas horas e, finalmente, estará em casa. Uma parte importante de sua vida ficou naquele deserto de neve, mas isso é algo que só irá se preocupar depois, uma vez que, nesse exato momento, ele sonha com Natalya e seu belo sorriso.

Tema: Regiões geladas

* NKVD: Sigla para Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Exercia funções policiais, de segurança, serviço secreto entre outras atribuições.

*GRANDE GUERRA PATRIÓTICA: é o termo utilizado na Rússia para descrever o conflito e o esforço de guerra soviético na luta contra a Alemanha Nazista.

* GULAG: sigla para Glavnoe Upravlenie Lagerei, administração central dos campos. Um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos ou qualquer cidadão que se opusesse de alguma maneira ao regime na União Soviética.

* RODOVIA R504 KOLYMA: conhecida como ESTRADA DOS OSSOS, localizada no extremo nordeste da Rússia, na região da Sibéria. Tem esse nome por ter custado a vida de dezenas de milhares de pessoas, sendo comum o aparecimento de esqueletos humanos às margens desta. Levou mais de vinte anos para ser construída, de 1932 até 1953.

* KOLYMA: região que abrigou cerca de 80 Gulags. Estima-se que aproximadamente três milhões de pessoas morreram nos campos de Kolyma.

*KASHA: um típico prato russo feito de cereais cozidos.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 01/03/2022
Reeditado em 06/03/2022
Código do texto: T7462931
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.