ALÉM DA MÁSCARA - CLTS 18

Todos ficaram muito atentos aos horários de abertura da porta do salão daquele que seria o melhor baile de carnaval da história. O sistema automatizado garantia a primeira abertura às vinte e duas horas e a última à meia-noite. Ao amanhecer, no final, as portas voltariam a abrir. Ninguém queria ficar de fora do baile da grande casa. Assim eu imaginava.

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Não procure a razão pelo que está prestes a ler, me fiz o principal personagem dessa noite sombria e alegre. Nunca me destaquei em nada, principalmente em bailes de carnaval. No entanto, assim que amanhecer, a porta se abrirá e o sol brilhará apenas para mim. O foco sou eu, apenas eu.

Durante muitos anos, sempre me senti um mero ajudante, fiz fantasias, decorações e comidas. Bebida é a primeira vez. Precisei sair para estudar, valeu o esforço nos estudos. Fez-me entender como produzir o melhor e mais marcante néctar dos anjos. Queria ver o brilho nos olhos, os corpos em movimento conforme a música, das potentes caixas de som espalhadas pelos ambientes da grande casa e, por fim, se entregarem ao cansaço tradicional de uma noite de carnaval.

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A noite é linda independente do escuro que faça, porém, não há nada mais lindo que o amanhecer de um novo dia. É como acordar sem ter dormido, despertar de um sonho bom, mesmo que não tenha fechado os olhos.

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Era noite de carnaval e havia uma estrondosa festa na grande casa, perto de onde eu morava e que sempre ajudei a organizar. Adoro bailes de carnaval, fui criado em meio a eles. Participo dessa festa desde que nasci, exceto nos últimos anos quando precisei focar nos meus estudos na faculdade de química. Esse ano seria especial, a minha volta ao local que eu mais me lembrava enquanto estive longe. Principalmente em relação à Fátima, minha ex-namorada. Terminamos nosso relacionamento de seis anos quando resolvi sair de nossa cidade para estudar. Ela também iria para a mesma universidade, mas desistiu de seu futuro e de mim. Resolveu contar seus novos planos no último dia de carnaval, há seis anos. Todos dizem que o ano começa depois do carnaval, eu não concordo com isso. O meu ano acabou naquele dia e mantém-se indefinido até hoje, suponho que possa recomeçar nesta noite.

Ao chegar na grande casa, de meus olhos verteram lágrimas de alegria e meu coração bateu plenamente agradecido por decidir voltar ao lugar onde me diverti muito, mas também lembrava minha pior despedida. De tempos em tempos, minha memória enviava fragmentos de lembranças. Avancei três passos pelo vestíbulo, como sempre fazia, mirei cada porta daquele lugar e rumei ao salão principal. As lembranças revisitaram-me junto aos rostos conhecidos da cidade que eu acabara de voltar. O lugar estava devidamente decorado com tecidos pendurados no teto, flâmulas e balões por toda parte, muita serpentina por cima dos móveis O palco estava iluminado com tiras de led verde, combinando com o grande relógio que marcava o passar do tempo com precisão discreta e mecânica.

No centro da pista de dança, mulheres e homens desfilavam graciosos com seus minúsculos trajes, sendo aplaudidos pelos demais. O tapete multicolorido que cobria a escada que levava ao andar superior servia de passarela a quem desejasse oferecer o corpo aos que, escorados no corrimão, aguardavam companhia.

As pessoas tiveram ideias muito originais, algumas usavam fantasias extremamente elaboradas, outras inventaram suas roupas e havia aquelas que usavam apenas uma simples máscara. A divulgação do evento atiçava as pessoas, que estavam ansiosas para que esse dia chegasse.

A festa, cada vez mais animada, teve grande número de pessoas já no primeiro horário permitido, e a meia-noite o local quase lotou. Todos se divertiram muito, era nítido que a bebida servida estimulava a quantidade de sorrisos e pegação. Sim! O propósito do carnaval é dar vazão ao prazer, ao desejo sexual e a violência existente na fantasia de cada ser humano desde o primeiro homem. Assim como a mente deixa escapar por ato-falhos sonhos, esquecimentos, o tesouro do inconsciente individual, o carnaval, o folclore, os mitos e lendas são manifestações do inconsciente coletivo, tudo isso era muito evidente nessa noite. Raros estavam sozinhos.

Após dançar, resolvi beber algo e sentar um pouco para recuperar as energias. Tirei minha garrafa de whisky do bolso e sorvi uns dois ou três goles. Preferi trazer minha própria bebida, preparo ótimas misturas, mas dessa vez quero me manter mais vivo do que nunca. Não sou adepto a bebidas expostas em bacias, mas pelo que percebi, ninguém mais tinha esse tipo de problema. Eu sabia que o líquido estava ótimo mesmo sem provar, todos bebiam com muita vontade e a cada gole dado a sede parecia aumentar.

Percebi em meio a tanta alegria e descontração, um homem estranho sentado ao meu lado. Tentei prestar mais atenção e ter certeza se o conhecia, a máscara cobria apenas os olhos, mas a barba comprida e preta atrapalhava minha investigação. Não lembrava de ninguém com aquele aspecto triste, cheguei a sentir dó da forma como me olhava.

— Precisa de algo? Está com sede? — Gritei em meio ao som alto e ele parecia responder, mas não escutei.

Levantei para ir ao seu encontro, ele fez o mesmo. De repente, apagaram as luzes, o breu era apenas vencido pelo brilho do globo espelhado em meio ao salão. O homem sumiu. Quando a luz piscou a imagem das bonecas brilhantes e maquiadas, penduradas pelos pescoços que circundavam todo ambiente ficaram no meu foco de visão.

Era perceptível que a bebida fazia efeito rápido, antes das duas da manhã alguns já haviam desistido de ficar em pé e jogavam-se em qualquer local que pudesse ser usado para descanso.

Duas coisas não paravam nunca; as marchinhas que haviam sido programadas para não silenciar o ambiente e os apitos que vinham de algum lugar que eu não consegui descobrir.

As luzes acendiam e apagavam como se alguém estivesse brincando com o disjuntor.

Acende, apaga.

Comecei a caminhar, hesitei um instante. Novamente os apitos trilaram. Alguns dos fantasiados andavam em círculo. Um rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Olhou para os lados como se procurasse uma saída, baixou os braços e voltou a dançar. Correu em minha direção, pegou um copo cheio da bebida oferecida, bebeu num só gole e desapareceu em dois passos, entrando atrás de uma cortina. O homem gordo deitado, tirando a roupa de rei momo, parecia tentar respirar colocando uma das mãos na boca. Seu rosto arroxado e os olhos querendo sair da cabeça, evidenciavam o insucesso.

Acende, apaga.

A rainha de bateria estava completamente pálida, já havia tirado a fantasia, mantendo apenas o tapa sexo, agarrava as grades da janela como se tentasse arrancá-las e fazendo subir a vidraça da janela, o pouco que abriu foi o suficiente para puxar o ar com muita força, no entanto, não pareceu fazer diferença, seu corpo foi deslizando até o chão, parecendo lágrimas de decepção escorrendo pelas maçãs do rosto de um indivíduo abandonado.

A escada parecia ter se tornado uma grande cama. Na vida, nunca havia visto tanta gente por degrau. Apenas uma passagem no centro ainda era mantida entre os corpos para se ter acesso aos banheiros. Foi quando avistei o barbudo mascarado no pé da escada parecendo me chamar, não era uma imagem nítida, na verdade, nada era nítido.

Acende, apaga.

Ele era o único que parecia sóbrio, mas seu andar arrastado mantinha-me curioso quanto à sua identidade. Aquela pessoa com uma atitude misteriosa usando apenas uma máscara escura que subia vagarosamente e passou desdenhando os corpos que pisava causava em mim uma curiosidade absurda. Ninguém parecia prestar mais atenção nele do que eu. Na verdade, parecia que não prestavam mais atenção em nada. A sede parecia ter sido saciada e suas bocas agora espumavam e seus olhos se arregalavam e se fechavam. Poucos ainda estavam em pé.

Resolvi levantar de onde estava para ir atrás daquele homem, subi as escadas e andei em direção a um dos banheiros, não o vi. Fui até a janela e percebi estar totalmente escancarada. Coloquei a cabeça para fora, mas não havia nada. Imaginei que ele tinha fugido pelo único lugar possível, mesmo que fosse muito alto. Era perceptível que ele não se encaixava com toda aquela bebedeira e principalmente com a alegria dos demais.

Andei um pouco mais pelos cômodos do segundo andar. Além de banheiros, havia também alguns quartos. Abri uma a uma todas as portas, visualizando a cena de cada casal ou conjunto de pessoas que se amontoavam em cada cômodo. Os abajures de luzes vermelhas dificultavam a visão perfeita e as camas lembravam os buracos nos campos de concentração nazista com corpos nus empilhados e imóveis. Eram parecidos com bordéis de quinta categoria, sofá fedorento, um pequeno bar no canto e os ferros de polidance com cheiro de suor aumentavam o aspecto de podridão do lugar. O interruptor de luz não funcionou, as cortinas estavam fechadas e um pequeno filete de luz podia ser visto vindo de uma fresta na janela. Virei-me para olhar atrás de mim, não havia ninguém por perto, dei passos curtos até chegar à janela, queria iluminar melhor o ambiente. Parei em frente, puxei a cortina e a escancarei. A luz da rua também pareceu apagar. Senti a respiração de alguém no meu ouvido e quando me virei, percebi o espelho. Lá estava a pessoa com a máscara escura e a barba espessa. Sorri para ele, cantarolei a marchinha que insistia em tocar. Tentei gritar e correr, mas algo segurou com força os meus braços tentando me jogar no chão, no entanto me mantive em pé. O sentimento era que o chão estava molhado com água podre, cinzenta e oleosa, parecendo esgoto e que passava por entre meus dedos. Meu corpo foi tomado por um calor incontrolável e as moscas pairavam ao meu redor, formando flechas que pareciam querer mostrar o que havia acontecido com todas aquelas pessoas que há poucos minutos estava dançando e se divertindo na festa de carnaval e agora estavam deitadas parecendo não respirar.

— Realmente, é delicioso esse perfume. — A voz parecia estar dentro da minha cabeça.

— Atrozmente delirante. — Respondi.

— Seus gostos sempre foram assim? — A voz continuava a provocar.

— As decepções que passei por estar fora dos padrões e os abandonos que a vida me concedeu mudaram meu olfato. — Finalizei o assunto.

Voltei ao primeiro andar, descendo rapidamente as escadas. O apito soou seu último silvo ao meu lado. Era uma mulher de meia-idade. Ela soltou um grito de dor e se pôs de joelhos. Seu rosto assumira um amarelado que nunca havia presenciado, destacando o batom borrado em sua boca. Deixou cair o apito e os seus olhos fixaram-se nos meus, com expressão de apelo que parecia mais medo do que dor. Parecia me culpar por ainda permanecer em pé.

Acende, apaga.

Com o passar do tempo meu corpo foi reagindo às imagens do andar debaixo. Desci com dificuldade e sozinho por entre os corpos amontoados na escada. Meu cérebro parecia acordar e meu rosto lagrimejava de felicidade ao saber que a minha tese estava concluída e que o efeito manada funcionou perfeitamente. Não precisei amordaçar ninguém, não precisei dizer uma só palavra, apenas deixei o carnaval de lado por alguns anos e voltei para realizar a melhor das festas. No fundo da sala, o grande espelho me obrigava a tirar a máscara. Coçando a barba e limpando as lágrimas, ele disse que o maior veneno está na busca pela felicidade.

— Vem tomar um aperitivo. — Aquilo saiu de minha boca quase sem razão.

— Não, obrigado. — Respondeu o espelho.

— Venha, não gosto de ficar sozinho. — Insisti.

— Já perdeu a pessoa a quem acompanhava?

— Não consigo encontrar, infelizmente. — Antes que a imagem do espelho resolvesse zombar de minha pessoa, continuei: — Isso tudo era apenas para ela.

— Entendo, vi que procurava alguém quando nos vimos pela primeira vez.

— É, todos se escondem. — Respondi asperamente.

— Tem certeza de que ela está aqui?

Não gostaria de imaginar essa hipótese. Desviei os olhos do espelho e voltei minha atenção para o salão principal da grande casa. Escutei passos em direção à porta pelo lado de fora, levei minha pupila dilatada ao olho mágico. Do outro lado estava Fátima. Mostrei-me pelo estreito vidro ao lado da porta e desferi um sorriso largo. Ela colocou as mãos no rosto e deu alguns passos para trás. Começou a chorar e saiu correndo. Virei o corpo para o espelho e percebi estar nu. Fui até a mesa de bebidas, recolhi um copo do chão, servi até enchê-lo e andei na direção do espelho.

Acende, apaga.

— Um brinde a Fátima, que conseguiu me abandonar mais uma vez.

Bati o copo contra o espelho. Quebrou. Não bebi.

A cena dantesca, porém, formidável, apareceu diante dos meus olhos quando finalmente consegui vislumbrar a ineficiência de meu desígnio. Eram muitos cadáveres espalhados e deitados por todos os cômodos da grande casa, a maioria ainda escondendo seus rostos atrás das máscaras, mantendo-se ocultos e indiferentes ao resultado da noite. Apenas adornavam ainda mais cada canto da grande casa. No entanto, quem deveria estar ali escondida de minha obstinação, desprezava meu esforço.

Acende...

Para mim, esse baile de carnaval chegava ao fim da mesma forma que começou, e o que restava era aguardar a música silenciar, o pássaro gorjear, o galo cantar e o dia amanhecer.

Apaga.

Cristian Canto
Enviado por Cristian Canto em 05/03/2022
Código do texto: T7465697
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