BICHO DE PALHA - clts 18

- Vô, por que existem pessoas ruins? Cinara perguntava ao velho compenetrado enquanto passava a língua na ferida em sua boca.

Mestre Felício caminhava com certa dificuldade, um pouco pelo cansaço da idade e muito pela bagagem acumulada.

- Porque todos temos que provar nosso valor. Respondeu determinado.

Percebendo que não haveria uma resposta convincente, ela reformulou a pergunta.

- Vô, por que Deus não mata todos os homens maus?

- Ele mata sim, tanto os maus quanto bons, um dia chega a hora de todos, enquanto isso temos que conviver com as dificuldades.

Não dava para entender, seria tão simples se em uma noite as pessoas fossem dormir e na manhã seguinte apenas os de boa índole acordassem. Com certeza a vida seria bem melhor.

Mestre Felício fumava seu pito com os pensamentos distantes. Escutava sua neta dando as respostas que ela merecia ouvir. Em sua vivência, sabia que as coisas não eram simples, o equilíbrio se mantinha desde que o mundo foi criado, às vezes parecia que não valia a pena ser bom, mas seguia firme transitando entre os dois lados sem nunca tomar partido.

Dois dias antes, o sol se pôs mais cedo encoberto pelas nuvens de chuva que serviram apenas para apagar a poeira daquela estrada de chão.

Como de costume, Cinara voltava da casa de dona Alzira, fez as entregas das roupas que sua mãe lavou e por sorte a chuva não molhou, recebeu os tostões devidos e para encurtar caminho enveredou-se pelo atalho do barranco vermelho.

Antigamente aquela trilha era bem usada, porém devido ao efeito da erosão os mais velhos o evitavam, preferiam perder um pouco de tempo a caminhar em terreno tão acidentado.

O mato estava alto de ambos os lados, as sombras avançavam precedendo a noite.

Depois de uma subida íngreme, onde se tornou necessário apoiar em alguns pequenos arbustos, ela ganharia novamente a estrada.

Cinara pressentia que alguém a acompanhava, olhou para trás e não viu nada além das sombras, apresou-se um pouco quase tropeçando nas próprias pernas. Pensou ter ouvido vozes, parou por uns instantes, retomou logo a caminhada certa de ser o medo lhe pregando alguma peça.

Quando estava prestes a sair da trilha foi agarrada pelos cabelos, ainda teve tempo de gritar por socorro antes de ser calada por um forte golpe no rosto. Sua visão ficou turva, as pernas afrouxaram-se, o tempo correu lento, o gosto do sangue se confundia com sabor da terra. Sua alma já não habitava aquele corpo. De longe parecia ouvir risos, insultos bem perto dos ouvidos, porém nada daquilo a atingia. Ela estava além daquele corpo barbaramente violado, espancado e abusado.

Aqueles poucos momentos pareceram uma eternidade, nada fazia sentido, ela estava imersa num mar gelado de angustia, por mais que se esforçasse não conseguia se mover.

Os diversos chutes, as pancadas, seu pescoço sendo apertado até lhe faltar o ar nos pulmões, nada disso parecia ter importância, a dor que estraçalhava seu peito era a sensação de impotência que superava qualquer outro sentimento.

Por fim, seu corpo, como um brinquedo velho, foi abandonado. Os agressores vendo-a inerte tiveram a certeza de sua morte.

Bem tarde, sua mãe já aflita fez o marido procurar a filha. Dona Alzira saiu da cama para confirmar que recebeu a encomenda. O pai voltou pela estrada temendo o pior. Numa segunda caminhada passou pela trilha iluminando o mato com a frágil chama de uma vela. Angustiado gritava o nome da filha.

Toda a família se encontrava apreensiva, alguns primos e tios se organizavam para uma busca, não descasariam até encontra-la, os otimistas acreditavam que a encontrariam com boa saúde. No quarto da neta, Mestre Felício orava aos deuses de seus ancestrais.

A madrugada já estava adiantada, se procurassem o delegado, certamente faria pouco caso.

- Isso é coisa de menina sem juízo. Aposto que tem homem no meio, daqui a pouco se cansam e ela aparece buchuda.

As velas nas janelas bailavam ao sabor do vento, ao longe um vulto cambaleante parecia se definir.

Ela não estava morta, viveria para outro amanhecer. Com as roupas em farrapos e seu corpo doido, seu espirito não se entregou cada suspiro doloroso lhe dizia que era necessário sobreviver. Por algum tempo foi difícil se mover, ela possuía uma energia surpreendente, não desistiria assim tão fácil. Com dificuldade se ergueu, o gosto amargo na boca precedeu o vômito, um liquido verde esponjoso que desejava lhe sufocar.

O instinto a fez voltar para casa, e ela estava ali, se guiando pelas luzes que traziam a promessa de segurança, a fraqueza do corpo não impedia seu caminhar.

Da porta, aos prantos a mãe reconheceu a filha. Ela correu a tempo de ampara-la antes que a fadiga lhe derrubasse. Cinara estava de volta ao lar.

Em voz miúda tornou-se consenso que denunciariam o crime ao delegado. Ele deveria fazer cumprir os rigores da lei.

Do alto de sua estranha sabedoria, Mestre Felício decretou.

- A justiça dos brancos não foi feita pros negros. Deixa estar que tudo se resolve.

Sendo o chefe da família, aquela desventurada noite se findou com suas palavras, ninguém teria coragem de dizer o contrario.

A caminhada continuava, como companhia os insetos sempre presentes, vez ou outra, eram derrubados por uma bofetada. Conhecedor daqueles cantos, o velho estava certo de que ninguém os incomodaria naquela hora. A jovem desistiu das perguntas, resignou-se com seu infortúnio.

Nem cedo, nem tarde chegaram à encruzilhada próxima à fazenda do Boqueirão, chegaram no momento perfeito.

Da bagagem que trazia nas costas, tirou seus preparados, fez a neta se dirigir a cada uma das quatro vias do caminho, pequenas tigelas de barro foram cheias de água ardente, quitutes também foram oferecidos, as velas vermelhas iluminavam de forma fraca o local. Por fim um bom punhado de terra trazidos da Guiné, lar de seus ancestrais consagraram o solo batido. Cinara deitou-se no centro daquela imensa cruz no chão. Os quatro caminhos estavam devidamente trancados, nem homens, nem espíritos ousariam pisar aquele solo.

Enquanto, ainda temerosa, a garota fechava os olhos, Mestre Felício conjurava o senhor das terras e dos ares, aquele que controla vida e morte, um ser tanto capaz de causar a dor, quanto de amenizar seus efeitos.

Os cânticos do negro tinham um efeito acalentador, aos poucos a moça sentia-se leve, o temor de antes agora já não tinha significado.

Felício tirou da cinta a velha adaga que pertenceu a sua mãe, de quem também herdou aquelas habilidades. O sacrifício de sangue foi feito. Cada gota que saia da ferida em sua mão indo bater na poeira rala do chão, deixava mais tênue o véu que dividia os mundos.

Em meio aos murmúrios do avô, uma figura sinistra se manifestou, semi-inconsciente Cinara percebia sua presença.

A criatura era bem alta, trajava vestes feitas de palha ornadas por miçangas, quase não se via sua pele, o pouco revelado se mostrava coberto de chagas, feridas retiradas de seu povo cativo. Guizos chacoalhavam fazendo coro aos cânticos do velho enquanto aquele ser bamboleava numa dança desengonçada em torno do corpo da menina que mal conseguia se mover. Sem aviso, a entidade parou por alguns instantes, mestre Felício ficou em silêncio, a vida naquela noite cessou se correr.

Com seus braços compridos envoltos em palha, ela tateava o vazio, parecia sugar toda a essência vital presente, o ventre de Cinara lhe chamou atenção, algo saboroso germinava ali, seu faro denunciava a maldade que fora praticada contra aquela alma inocente. Salivou de prazer ao vislumbrar o futuro distante. O bicho de palha se vergou devagar, seu rosto desfigurado revelou um sorriso malicioso que se findou numa sinistra gargalhada.

O filho da terra e dos ares abocanhou a maldade plantada no útero da inocente.

O susto despertou a menina do transe. Além dela apenas o avô lhe fazia companhia, a incerteza dos fatos a desorientou. Aquilo só poderia ser fruto do seu profundo desejo de crer que existia algo melhor, que alguém cuidaria dos indefesos.

- Você não vai ter menino de homem. Este filho agora já não é seu. Todos os caminhos se abriram à sua frente.

Os dias se tornaram tranquilos, aos poucos a criança crescia no bucho da outra criança. A tristeza da injustiça foi devorada pela misteriosa criatura.

Otávio, filho de um abastado comerciante local, estava visitando os pais que se orgulhavam do filho doutor com consultório na capital. O sol naquele domingo parecia mais quente, mesmo assim, a saudade das antigas cavalgadas lhe fez arriar o cavalo.

Na curva da estrada os olhos daqueles jovens se cruzaram, é impossível saber se foi o toque do sobrenatural ou a emoção de ver tão belo rapaz que a garota sentiu as pernas bambearem, a forte vertigem a fez descer ao chão. Prontamente foi socorrida pelo belo doutor.

Desde então, as visitas aos pais tornaram-se constantes, pretexto para rever sua nova paciente. Quando a barriga estava enorme, o convite para viver na cidade não foi surpresa.

- Sua vida só a você pertence. Siga o caminho ditado por seu coração.

Dono da última palavra, mesmo sentindo a dor da separação, os pais vergaram ao decreto do avô. A filha tinha um destino a ser cumprido.

Por influência do marido, Cinara tornou-se enfermeira, tinha muita habilidade no trato com os pacientes, no fim estavam sempre juntos.

O filho cresceu se tornando um garoto esperto, vibrante e de beleza sem igual, na escola colecionava admiradoras.

Treze anos se passaram, Mestre Felício que alguns diziam centenário, conservava a mesma aparência, mas infelizmente apesar de profundo conhecedor das ervas medicinais e de orgulhar-se de jamais ter necessitado de cuidados modernos caiu vítima de uma moléstia desconhecida.

Testemunhando angústia da amada, Otávio propôs o retorno à cidade natal, uma vida mais calma seria o ideal para quem jamais se acostumou ao caos da metrópole. O pequeno hospital precisava de um gestor, era a oportunidade perfeita.

No começo, o garoto ficou triste com a mudança, sua vida foi duramente modificada, mas ele possuía a terra batida em sua alma, os passeios pela mata logo se tornariam normais.

Cinara passava um bom tempo ao lado do avô, muitas vezes levava o filho, os dois se davam bem, pareciam velhos conhecidos.

Numa tarde, ao se despedir da família, a jovem dispensou o auxilio do marido, caminharia com seu filho pelas trilhas de sua infância. Se deteram para um dedo de prosa na casa de dona Alzira. As mulheres conversavam alegres sobre os tempos idos. O dono da casa chegou a tempo de cumprimentar as visitas da esposa e depois se ocultou no quintal.

Cinara não percebeu, mas seu filho tornou-se agitado, um calor enorme o consumia, mãos invisíveis sufocavam seu espirito. Ele pediu para irem embora.

Pelo resto do caminho ele permaneceu em silêncio, apesar da insistência da mãe teimava em dizer que tudo estava bem. Em casa retirou-se cedo para o quarto sem mesmo tocar no jantar.

A sombra da noite parecia mais densa, a angústia ficava mais forte, o sono teimava em não vir. Algo o convidava a sair, sem relutar, ele aceitou. Por horas andou sem rumo por locais que não reconhecia, quando a lucidez desfez o véu que cobria sua mente, percebeu-se diante da casa que visitou naquela tarde. Um cheiro estranho invadiu suas narinas, era desagradável porém lhe trazia um imenso prazer.

O cheiro não vinha da casa, ele farejou até certificar-se do rumo a tomar.

O marido de dona Alzira bebia num bar de aparência duvidosa, era dele aquele aroma toxico que aos poucos se tornava doce.

Com instinto do mais hábil predador, o menino permaneceu oculto, não se deixou dominar pelas conturbadas emoções. Ficou imóvel até que satisfeito, o homem se despediu tomando o rumo de casa. O garoto foi atrás.

Naquele trecho não existia iluminação, o vento ocultou a lua por trás de densas nuvens escuras. O menino já não necessitava se esconder, apenas ele e o homem existiam ali. Por algum tempo os dois se encarraram. Dentro do peito o homem escondia uma terrível maldade e o garoto estava com fome.

Durante anos o marido de dona Alzira não pensava no ocorrido, ele fez o que deveria ser feito, aquela moleca só teve o que merecia. Menina de topete alto tinha nascido para lhe servir, pena que não morreu.

O garoto sentia suas entranhas queimar, seus lábios salivavam, o calor iria consumi-lo.

O homem via horrorizado o garoto a sua frente tornar-se uma grande bola de fogo, o menino estava completamente envolto pelas chamas. Antes de morrer, sua última visão foi o bote do bicho de palha e este se fartou tendo a certeza que haveria ainda outras noites de caça, aquele era apenas o início de seu farto banquete.

Herança Africana

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 05/03/2022
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