Um salto para a morte, antes porém...

“Pra entender a pintura, é preciso entender o pintor”.

John Douglas

Dizem que antes de morrer relembramos toda a nossa vida num segundo. Bom, pelo menos parte dela. A parte que nos interessa.

Tenho só três segundos de vida. É o suficiente. Vou gastá-los na queda entre a janela do último andar do casarão e as pedras afiadas lá embaixo. Antes disso há uma eternidade na mente.

Sou um sujeito robusto, apesar da idade. Tenho braços fortes e torso vigoroso, mas o resto do meu corpo é flácido como água ensacolada. Será uma bela visão quando encontrarem meu corpo sobre as rochas, pois estarei tão amassado quanto um tomate pisado por um elefante.

Há muitos anos espero por este fim e não será uma rede de morcegos, voando desesperadamente ao meu redor, que me impedirá de cair. Antes foram as aranhas, grandes e pegajosas, que me cercaram nos corredores do casarão, correndo loucas do teto às paredes, lançando suas teias e me bombardeando com jatos quentes de saliva ácida. Passei através. Rolei minha cadeira pelos corredores escuros e esburacados porque tinha uma meta: pular para a morte.

No caminho até aqui me desviei de pessoas, cães e carros. Já na estrada de terra que conduz ao casarão, escapei de uma chuva de agrotóxicos despejada por um avião monomotor. Há plantações de soja de um lado e outro da estrada. Tem ainda uma ladeira íngreme que testou os músculos dos meus braços. Nenhuma vez pensei em desistir, pois a morte me acenava com suas promessas de outra vida ou com o esquecimento desta.

Assim que venci a ladeira, tremia igual a um velho caminhão acelerando atolado. O suor descia como cascata, se misturando à urina e fezes e emplastrando minhas fraldas. Depois da ladeira se vê a velha casa em ruínas. Não é a mesma de cinquenta anos atrás, mas ainda causa tremor. Suas paredes é a carapaça de um dragão velho, porém malvado.

A casa se ergue imensa parecendo um quadro gótico pintado por um artista louco. Para completar a cena, nuvens de chuva começam a se formar nos campos ao redor. O calor e os mosquitos fizeram um cerco a minha volta. Tentavam entrar ardendo pelos olhos e zunindo pelos ouvidos. Uma moscaria me circundava a cintura querendo a todo custo a merda que eu tinha ou a merda que eu sou.

Então pus mãos à obra: rodei a cadeira com força e passei da estrada à trilha que conduz ao casarão. Fui atropelando o que vi pelo caminho. Eram pedras, paus, latas de cerveja, papel higiênico e preservativos usados. Nada pôde me deter. Eu sou movido pela determinação que é o combustível dos fortes.

A trilha me trouxe até a porta do casarão ou o que sobrou dela. Entrei por um buraco na porta de madeira, entre farpas e pregos enferrujados, deixando para trás pedaços da camisa e do couro cabeludo. No exato momento em que entrei, a chuva desceu do céu como bênção. Bem, nunca fui adepto de bênçãos, por isso virei as costas para a chuva e os pastos verdejantes e segui o corredor escuro para cumprir meu desejo.

Na primeira escadaria me joguei da cadeira e saí me arrastando pelos degraus. Sempre em frente para cima e para o alto. Passei por sobre ninhos de rato e excrementos de morcegos e fui subindo, rastejando com mãos, braços e cotovelos, trazendo atrás de mim as pernas esmolambadas como a cauda inerte de um cavalo morto. Cheguei ao corredor do segundo andar e mal olhei para onde ficava a sala da família antigamente. Ali não se via nada além de escuridão e o peso do passado.

Subi me resvalando pelos dez degraus até o terceiro andar. Os dedos começam a sangrar, mas meus braços são fortes. Por fim, alcancei o quarto andar e o último dos aposentos. O antigo quarto, aquele do voo definitivo. Empurrei-me cansadamente até o parapeito e vislumbrei, vinte e cinco metros abaixo, as pedras afiadas pelo tempo. Depois de um suspiro longo e resoluto pulei no vazio.

Estou prestes a esbagaçar meu corpo lá embaixo. Então deixe-me resumir o que me trouxe até aqui: quando era criança, empurrei do alto deste quarto um amigo. Eu morava aqui e ele vinha de vez em quando me visitar. Ele poderia vir mais vezes, se quisesse, porque tinha pernas saudáveis, mas acredito que ele vinha tanto quanto sua pena de mim permitia. O que era uma vez por mês.

Naquela época eu ficava muito tempo sozinho e me acostumei a fantasiar em descer daquela casa voando. Ensaiei muitas vezes, mas me faltou coragem. E na ausência de coragem, de pernas sãs e amigos verdadeiros, fui alimentando em mim um ódio surdo, mudo e cruel. Depois que esse ódio cresceu, como uma massa de bolo, passei a dividir com os outros. Esse meu amigo teve a maior parte. Num dia em que estava à beira da loucura eu o atraí até aqui em cima e sem mais nem menos o empurrei. Ainda vi suas pernas balançando no ar e depois avistei um rosto vermelho numa poça de sangue ao pé do casarão.

Depois disso menti para todos. Na qualidade de criança minhas mentiras foram aceitas por muitos inocentes, até pela Lei que nada tem de inocente. Pouco tempo depois, minha família me mandou para a casa de um parente distante. De lá fui enviado para uma espécie de abrigo onde vivi até a maioridade. Quando meus pais morreram eu assumi tudo o que tinham e passei a depender de empregados e eles de mim.

Convivo com isso há mais de meio século e vou lhe dizer o que me fez vir até aqui e fazer o que estou fazendo. Primeiro é porque a vida e os anos me deram a coragem de fazer hoje o que deveria ter feito antes. Segundo, porque não gosto de conviver com lembranças. Não é remorso o que sinto, pois remorso é típico de quem acha que fez algo errado. Acredito que não fiz nada errado naquele dia, do mesmo modo que acredito não estar fazendo nada errado agora. Faço o que fiz porque quis. Ao longo da minha vida já fiz muitas coisas parecidas. Agora é a minha vez. Eu detestaria que alguém fizesse isso por mim.

Sou mais veloz do que o vento. Tudo passa, passando. Eu caio em direção ao nada e logo serei nada também. Mal me joguei do alto e já presenciei anos em segundos. O mais interessante para mim é que até o último dos meus segundos, só consigo pensar em mim, seja lá o que isso quer dizer. E não quer dizer.

Estou caindo rápido. De cabeça para baixo, pernas para cima. Num átimo vejo um arco-íris sobre o casarão. Não consigo distinguir todas as cores dele. Nem quero. Estou ocupado com a grande e única cor que desaba sobre mim em forma de dor e escuridão.

make
Enviado por make em 15/03/2022
Reeditado em 17/03/2022
Código do texto: T7473542
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