Este texto foi inspirado em outro com o mesmo nome. O texto original foi escrito pelo meu filho GABRIEL CRAVEIRO e por ter gostado tanto, escolhi reescrever uma versão minha para comemorar as 60.000 leituras que obtive ao longo de todos estes anos aqui no RECANTO DAS LETRAS. Agradeço aos amigos que fiz e à atenção que obtive. Um grande abraço.


- O Rei dos Mares -



U L I S S E S
 

Não havia sobrado nada. Ulisses olhou para a geladeira sem conseguir acreditar. No congelador só encontrou uma vasilha pela metade de gelo lambuzado com as sujidades dos peixes já feitos e comidos há dias. Na prateleira abaixo, apenas um saco com batatas, alguns temperos e o resto do arroz que sobrara do jantar. Revirou a despensa para ver se encontrava pelo menos uma lata de sardinha comprada no mercado, e que, provavelmente, ele mesmo havia pescado e vendido para a maior rede de mercados do mercado.

Todas as sextas-feiras a transportadora mandava seus caminhões frigoríficos às sete da manhã. As vendas eram feitas na associação dos pescadores e os motoristas partiam assim que compravam a produção local por preços irrisórios.

Nunca ficavam mais do que o estritamente necessário para a conclusão dos negócios. Ulisses não os culpava, mesmo sendo uma cidadezinha costeira, na parte da vila onde os pescadores moravam, a praia cheirava à maresia e decadência. O bafio pesado da água poluída combinada com os restos de peixes se deteriorando na areia, roubava toda a graça que o mar esmeraldino poderia oferecer.
 
Olhou em volta, a casa era só desolação. Espaços vazios repletos de miséria e lembranças. O último maço de notas havia sido usado para o conserto do seu velho barco e para comprar uma rede nova. Gastara nisso quase todo o apurado da semana santa.

Ao sair da cozinha observou sua esposa Nereida trajando o habitual vestido preto e longo. De cabeça abaixada, a mulher movia os dedos com habilidade, criando figuras bordadas no tecido branco. Trabalhava na varanda, à vista de quem passasse pela rua e deixava as delicadas toalhas expostas em um comprido varal, balançando suavemente ao sabor do vento morno que vinha do mar.  Vez por outra um grupo de turistas parava lá. Mulheres sorridentes compravam quase tudo o que viam, sem reclamar do preço.

As roupas negras que usava contrastavam com a exuberância das estampas de peixes nas toalhas. O luto perpétuo da esposa era a navalha afiada que fustigava a ferida para sempre aberta em seu peito.

J O N A S


Jonas. Esse era o nome dele. A despeito da falta de horizontes, a presença de uma criança correndo pelos vãos da casa apequenava a feia face da pobreza.

Quando fez sete anos, Jonas passou a acompanhar o pai nas pescarias. Aprendeu rapidamente as tarefas que fazia com entusiasmo, arrimado na sabedoria paterna. Junto com o filho, Ulisses fazia planos. Melhorariam de vida, venderiam eles mesmos o peixe na cidade, direto para os restaurantes. Teriam uma casinha melhor. Jonas estudaria para ser doutor.

A existência do filho amalgamava a felicidade do casal e toda a sua esperança, Jonas era o refrigério de seus dias, o prêmio que Deus lhes havia dado para compensar as decepções com o próprio fracasso. Nas poucas folgas que tinham, era comum que fossem nadar. Nereida, que sempre tivera receio da água salgada, ficava os olhando da porta da casa e gritava para que o filho jamais saísse da parte rasa do mar.

Para que ele não se encorajasse a passar do ponto que considerava seguro, ela dizia ao menino que logo após o local onde as grandes vagas quebravam era o lar do Rei dos Mares, uma criatura monstruosa que se alimentava de crianças.

A crença dos pescadores no Rei dos Mares era uma lenda local muito usada pelas mães de filhos mais afoitos. Entre os pescadores mais velhos, alguns diziam já ter visto a criatura e só entravam no mar em grupos.

Seu Ulisses ria destas histórias. Dizia só acreditar em Deus como uma única força de dar e tirar a vida, até que, em um instante de distração, o destino de todos eles mudou bruscamente. Era uma sexta-feira por volta das cinco da tarde, Nereida se ocupava com a moqueca de arraia que preparava na cozinha, indo de vez em quando até a varanda para conferir se o filho estava ali perto. Era difícil tirar o garoto dali. Jonas brincava sem noção de tempo, não se importava com a pele dos dedos enrugada, com o frio ou a escuridão que chegaria logo naquelas noites sem postes.
Ulisses foi até o depósito pegar a rede de pesca que precisava de remendos.

De casa, os pais ouviam as risadas de Jonas misturadas ao barulho da água que ele chapinhava com os pés.  Nenhum dos dois soube precisar o momento exato em que o ruído cessou. Da cozinha, Nereida distinguiu o pio solitário de uma gaivota, as ondas quebrando contra as pedras, a voz alterada de um bêbado errante, mas no lugar da voz alegre e tão familiar, só restara o silêncio opressivo que anunciava a ausência do filho.

Foi até a varanda.  Os olhos cheios de presságios corriam pelo trecho que separava a casa do limite onde a água molhava a areia, procurando divisar o vulto magro vindo para eles. Mas naquele princípio de noite a praia estava mais vazia do que nunca.

Nereida gritou pelo filho e chamou o marido. Largou tudo foi até a beira d’água esperando que a qualquer momento o mar o devolvesse são e salvo de um mergulho mais longo. O marido corria pela areia sem saber como agir.  Os gritos dos dois atraíram os vizinhos.

Em pouco tempo várias jangadas foram jogadas na água, lanternas acesas, o nome do menino reverberava em muitas bocas e preces.

A noite avançava consumindo a esperança dos pais e a solidariedade dos amigos. Muitos voltavam da busca sem sucesso, se despedindo com promessas de retomar a procura tão logo o sol raiasse.

A madrugada encontrou o casal ainda aguardando algum sinal de Jonas. Por fim, vencidos pela exaustão, voltaram para a casa que parecia mais miserável do que jamais fora.

A moqueca estava pronta na panela. Alguma vizinha havia ido lá para terminar o serviço. Ninguém tocou na comida. Dormiu sobre o fogão, ignorada pela fome inexistente dos pais sem filho.

Nereida foi dormir. Ulisses tomou um banho esperando que a água gelada o impedisse de ter sono. Logo estaria no mar novamente, porque era o seu ofício e porque ainda aguardava um milagre.
Os dias se sucederam e a ansiedade ia sendo substituída pela aceitação da tragédia. Sofreram, choraram, envelheciam consumidos pela perda.

A necessidade impunha a lida diária e a rotina, com seu jeito indiferente, ia esmaecendo a tristeza entre uma tarefa e outra.

Ulisses agora pescava sozinho. Diziam que era para poder chorar em paz. Ainda trazia peixes, mas deixara de se importar com o futuro. Pescava e vendia os de melhor qualidade e o que sobrasse Ele e a mulher os consumiam em caldos que passaram a ser o almoço, o jantar e a merenda do casal.

No ano seguinte resolveu fazer alguns consertos em casa, era preciso renascer do infortúnio. Via Nereida se afundando cada vez mais na própria dor, e não suportaria perder a esposa também. Deixou de sair de madrugada como os outros pescadores. Saía antes da tarde cair e passava a noite sonhando com uma vida diferente.  Levava o barco até a faixa do mar onde a água era mais tranquila, prendia as iscas nas cordas e deixava que o vento determinasse o porvir.

Sempre sonhava com o filho. Jonas aparecia sempre no mesmo cenário: uma espécie de caverna de onde o menino tentava fugir. Era angustiante. No sonho Jonas mexia a boca como se quisesse dizer algo. Então o seu rosto ia ficando embaçado até que sua imagem desaparecia.

O coração cheio de esperanças formulava teorias. Ulisses chegou até a ir à biblioteca municipal para pesquisar sobre possíveis cavernas marinhas perto de onde morava. Jonas estaria em alguma delas, vivendo não se sabia como, esperando que o pai o achasse. Era desta esperança que Ulisses vivia.

Naquele dia deixou-se ficar na imensidão líquida, nadando nos próprios pensamentos, embalado pelo berço das lembranças. Acordou com a noite já cobrindo o céu inteiro. Tudo agora era negror e uma angustiante solidão.

Puxou as iscas. Na ponta das cordas, dos peixes fisgados só restavam pedaços presos no anzol. Desistiu da pescaria e levantou a vela. Ia chegar em casa sem nada nas mãos.
Exausto e faminto, Ulisses sequer percebeu quando o sono o arrastou para o seu vórtice de ilusões e desespero.

O  R E I  D O S  M A R E S




Acordou sem saber o quanto havia dormido.  Tentou se localizar, mas ainda não conseguia divisar sinais de terra.

A noite nublada escondendo a lua, tornava a busca ainda mais difícil. Estava perdido, e não tinha ideia de para qual lado deveria conduzir a embarcação.

O mar se agitava sob o frágil barco. Ulisses podia sentir uma vibração na água, vindo da sua parte mais profunda, cada vez mais forte. Lembrou-se de quando era pequeno e ouvia as terríveis histórias sobre o Rei dos Mares. Por muitas vezes havia desafiado as recomendações recebidas e mergulhado com outros meninos no mar aberto, mas o fizera pela manhã e sem deixar de ver onde ficava a praia.  Saltavam de uma velha jangada enquanto um dos garotos ficava esperando que voltassem. Durante estas aventuras chegou a ver golfinhos e até um tubarão, felizmente nada aconteceu, mas agora, onde estava, sozinho no mar gelado e ameaçador, sentia-se à mercê de todos os perigos, vindos de todos os lados da água negra como breu.

Sentiu que alguma coisa lá embaixo se aproximava lentamente fazendo círculos em torno dele, cada vez mais perto. A morte tão próxima o fazia pensar no filho. Seria Jonas que o havia encontrado? Talvez fosse o filho chamando-o de onde estava. Estava pronto para ir ao seu encontro. Iria onde fosse preciso, mas teria novamente o pobre filho nos braços. Ele o consolaria, salvaria Jonas de seu infausto destino.

Algo às suas costas emergiu. Estava logo ali, ele sentia a presença. Algo que o observava com atenção e vontade. Algo que ele não sabia se queria ver.E se não fosse Jonas? E se fosse algo que tencionava devorá-lo? Lembrou-se de Nereida, agora totalmente sozinha. Filho e marido arrebatados pelo oceano, sem enterro, sem despedidas, apenas o vazio gigante acompanhando o resto de vida que teria.  

A coisa continuava ali, parada, esperando. Decidiu se virar, ver a morte de frente, se fosse isso o que a vida reservara, iria morrer com um resto de dignidade e coragem, ou encontrar o seu menino.
Então ele virou. Nada poderia tê-lo preparado para o que viu.

Iluminada pela luz da lua, havia uma menina de aparentes doze anos. Tinha cabelos longos que flutuavam em cachos espessos e claros. A pele era branca como leite e grandes olhos verdes se destacavam no rosto fino. Ela sorria. Era um lindo sorriso, parecia até um anjo.



Ulisses achou que delirava.  Olhou para os lados e não viu nenhum barco de onde essa menina pudesse ter aparecido. Ela simplesmente estava lá. Ficaram se encarando por um tempo que não poderia precisar, então ela se inclinou para trás e ele pode ver que abaixo de seu pescoço, onde deveria ter um corpo normal de menina, só havia escamas muito pequenas e cintilantes. Ao afundar a cabeça na água, depois o pescoço e o tronco, foi que ele viu uma cauda de peixe e as grandes barbatanas inferiores, cujas curvas pareciam formar dois chifres cinzentos.

Depois que a cauda afundou, a cabeça e o pescoço da menina emergiram de novo, mais perto. Ela continuou sorrindo e virou um pouco a cabeça para o lado, como se tivesse concluído uma bela performance. Ele a olhou absolutamente maravilhado, com os olhos arregalados, sem conseguir se mover. Não acreditava no que estava vendo. De todas as criaturas fantásticas que poderiam existir, justamente as sereias eram reais. Uma luz de esperança brilhou no coração do homem. Talvez fosse a sereia o elo que faltava para encontrar o seu filho.

Sem falar nada, ela se aproximou da lateral do barco e tocou o pé do homem com sua mãozinha fina e gelada, dotada de membranas quase translúcidas que ligavam seus dedos uns aos outros. Ela queria mostrar algo. Ulisses se sentia como se estivesse hipnotizado, um torpor agradável fazia o corpo do homem perder peso e substância, o pescador se tornava cada vez mais fraco, enquanto seus braços e pernas paravam paulatinamente de responder à sua vontade.

A jovem sereia foi embora.

Ali, na vastidão ameaçadora do oceano, percebeu que estava ficando completamente paralisado. De onde estava, via uma vibração que agitava a água. Uma coisa estava vindo, e não era Jonas.  Logo a trepidação aumentou e a superfície outrora lisa da água se agitava em pequenas marolas que foram ficando maiores até virarem grandes ondas que sacudiam perigosamente o barco.  Seu corpo rolava sem controle sobre a madeira até que ele assistiu, sem nada poder fazer, a aproximação de algo tão imenso que sua aparição cobria de todo a imagem da lua no céu. Não saberia dizer o tamanho daquele animal, pois estava muito além do que ele próprio poderia mensurar. Era um monstro colossal que soltava urros ensurdecedores e criava vagas tão grandes que partiram o barquinho em vários pedaços.

Sentiu que afundava. Não conseguia mexer as pernas ou os braços. Tolhido completamente de seus movimentos, submergiu nas profundezas sem luta ou esperança, diretamente para a boca escancarada do animal.

O  H O R R O R

Ulisses passou entre as presas do monstro e continuou sendo sugado por um longo tubo largo o suficiente para que um homem alto e robusto como ele passasse com folga até chegar a um espaço muito grande e revestido completamente por uma substância brilhante e acinzentada.

As paredes daquele organismo ondulavam em intervalos regulares, então ele podia sentir um estremecimento contínuo sob as suas costas. Ulisses passou muitas horas com o corpo ainda inerte, jogado sobre a camada de lodo que revestia o local.

Sonhou que estava em casa, e sentia muito frio, porém não alcançava o lençol para se cobrir. Foi acordado por um jato de água do mar com grandes peixes que haviam tido um destino igual ao seu. Conseguiu se sentar e agarrou um dos menores que se debatia sobre a gosma.

Não seria a primeira vez que comia um peixe cru, e vivo. Lembrou-se de quando era pequeno e o primo Francisco havia dado um pedaço de peixe minúsculo que escapara da rede do tio.  
Agora, dentro do ventre daquele animal medonho., sozinho, sem esperança, tentava agarrar o peixe que ainda vivo, se debatia. Era difícil abrir o bicho sem uma faca. Tentou arrancar a pele, mas a gosma que envolvia o corpo já liso tornava impossível a tarefa.  Sabia que em algum momento acabaria perecendo de sede ou fome, então resolveu explorar o local onde estava e,  se tivesse sorte,  até encontrar uma saída.

Não era fácil andar sobre o lodo.

À medida que avançava, um estranho odor adocicado e levemente enjoativo ia dominando o ambiente. Passou por uma parte que a passagem se estreitava de tal forma a ponto de seu corpo avançar com dificuldade, arrastando os ombros pelas úmidas paredes. A câmara seguinte era menos escura. O brilho da gosma cinzenta era mais intenso. Havia um movimento perfeitamente perceptível ali.

O lugar era habitado por vermes de consistência mole e forma humanoide. Uns maiores, e outros pequenos como crianças, andando em várias direções e emitido sons animalescos, todos recobertos pela mesma substância que havia visto no buraco anterior. Ulisses caminhou tentando não escorregar ou esbarrar em qualquer um dos seres medonhos e repugnantes.

Andou por entre os seres que pareciam todos iguais até que, em uma das muitas dobras internas daquele enorme organismo, encontrou um deles  que chamou sua atenção. A criatura era pequena, estava encolhida em um canto e abraçava as próprias pernas.  Diferente dos demais, seu corpo não estava completamente gelatinoso, e, além de conservar alguns traços do rosto original, era possível distinguir seus pequenos e brilhantes olhos humanos, demasiadamente humanos.

 
Naquilo que deveria ser a sua cabeça, ainda havia um revestimento que um dia fora pele. Um resto de nariz tremia num arremedo de respiração,  a coisa levantou o rosto e o viu. Por um momento os dois ficaram se reconhecendo em suas mosntruosidade e humanidade. Havia muito a falar, mas as palavras se formavam com extrema dificuldade na boca do menino.

- Papai! – Ele conseguiu dizer.

Enfim, Jonas!  Havia esperado tanto por aquele momento e quando enfim ele se concretizou, não havia mais esperança para os dois. Ainda que encontrasse uma saída daquele inferno onde estavam definitivamente encerrados,  como levaria o filho para morar no mundo real com aquela aparência?

Naquele dia Ulisses chorou. Abraçou o filho e decidiu ficar por ali vivendo como fosse possível. Aprenderia com o pequeno Jonas a o que comer, onde dormir, como viver entre aqueles outros seres. Sabia que logo começaria a se transformar em um deles, Perderia a forma, a natureza, mas estaria com o filho e a eterna saudades da esposa amada até que todos sucumbissem enterrados para sempre no túmulo vivo de horror e desolação.

N E R E I D A

O mar estava estranhamente calmo. O povo da vila dos pescadores sentou-se em esteiras de palha para observar a água. Numa parte mais isolada da praia, Nereida se cobria com uma das muitas toalhas bordadas com imagens marinhas. Uma que ninguém quis comprar. Acabou vencida pelo sono e acabou dormindo na areia. Pela primeira vez ela sonhou com o filho. No sonho ele estava abraçado ao marido,  os dois estavam em uma estranha caverna e mexiam a boca como se quisessem dizer algo. Então os rostos deles iam ficando embaçados até que suas imagens desapareciam.
 


Iolanda Pinheiro e Gabriel Craveiro.

Leiam este menino que eu amo.
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