TENEBRIS - CLTS 19

"Profundamente nesse espreitar da

escuridão, tempo fiquei ali,

perguntando, temendo, duvidando,

sonhando sonhos que nenhum

mortal jamais se atreveu a sonhar

antes."

Edgar Allan Poe

Num lugar cheio de mistérios, que traduz em sua sina que a tristeza pode durar uma noite, imaginava ele junto a seus sonhos estranhos, exacerbado de sentimentos, que só restava deixar o pensamento vagar. Em algumas épocas, a alma se agita, ainda mais a dele que desde muito vive sem colo. No entanto, não foge da realidade, por mais que, para ele, todo o momento seja noite.

Tudo era escuro, sempre, piorado com a chuva fria correndo pelos furos da cobertura improvisada, feita de lona, que cobria parte da carroça. Telmo mantinha-se coberto por pelegos de ovelha nas costas e nas pernas. O caminho árduo, por longas estradas de terra, era o único de sua casa até a feira. Nunca soube a distância correta, mas sabia que precisava revezar os cavalos durante a viagem, necessária pelo menos uma vez por semana.

Depois que ficou sozinho e sem habilidades necessárias para plantar, Telmo precisava buscar o que comer. Escolheu ficar, dizia que nunca deixaria Tenebris. Faria seu próprio destino, ainda mais no momento em que se tornara o homem mais rico do vilarejo. Não havia dinheiro, mas joias, móveis e madeira tinha o suficiente para trocar pelos legumes e grãos. Resolveu trilhar essa selva que lhe foi dada sem nunca reclamar. Todos os outros foram embora sem olhar para trás, abandonaram suas casas e as histórias contidas nela. Diziam ver coisas estranhas rondando e assombrando as residências de Tenebris, o pequeno vilarejo de ruas de terra esburacadas, casebres de madeira visivelmente de outro século, com estruturas fortes e, na maioria, pequenas.

Telmo dizia não ter esse privilégio, nunca viu nada que o fizesse querer sair de sua casa, abandonar tudo, nunca foi uma alternativa. Todos deixaram a vila no silêncio da madrugada. Quando dormiu naquela noite quente do verão, não imaginava que estaria sozinho no cantar do galo. Ainda escutava as vozes dos antigos moradores, às vezes até sentia suas presenças, contudo, gritos não o assustava, choros não o entristecia, nada parecia abalar o solitário de Tenebris. Cresceu sozinho, e assim ficou, desde que seus pais morreram quando ele tinha apenas doze anos. Teve que trabalhar desde então, cuidava dos cavalos da família Cruz, a mais abastada do lugar. Moravam na maior casa, com escadas e sótão, talvez a única com dois andares. Telmo andou por lá, mas como sua amiga Julia ainda aparecia de vez em quando, ele não tirara um móvel sequer. Além dessa casa, a igreja também permanecia fechada e intacta, havia respeito religioso. Tudo isso durou pouco mais de

um ano até o sumiço cabal dos moradores.

Mais alguns anos passaram, não tinha certeza de quantos, não contava os dias e as horas não importavam, o que interessava a ele era a sensação de ser um homem. Vivia apenas com o cão e os cavalos que, além de companhia, são os guias que o levavam aos lugares que precisava. Acostumaram com o caminho quando levavam toda a família Cruz ao mesmo lugar de compras. Dias iam os pais, José e Joana Cruz, o casal amoroso e respeitado na região e dias iam os filhos, Juca, o filho mais velho, e Julia, a caçula e melhor amiga de Telmo. Em suas orações sempre agradecia à Julia por ensinarem o caminho da feira aos cavalos.

Sentia a aproximação da noite pelo som dos grilos e a sensação do véu astroso da madrugada caindo sobre sua cabeça. Na feira, sempre era questionado sobre a situação do vilarejo. Perguntavam se ele iria embora também, e riam muito sobre isso. Falavam que o lugar era assombrado. Nunca acreditou nisso. O que os fez ir embora foi a onda de pobreza que assolou os moradores, pobreza que levou à fome, fome que levou ao desespero e à fuga. Telmo não tinha outra explicação, acreditava nessa razão.

— Conte-me então, meu caro Telmo, por que a família Cruz que não tinha onde socar dinheiro, fugiria daqui sem deixar rastros? — Perguntou o vendedor de alface.

— Quem ficaria num lugar vazio? — Questionou Telmo.

— É verdade — Disse o vendedor de cebola, e completou. — Apenas o Telmo ficou, parece que não vê nada.

Caíram todos na risada. Telmo não se abalava com tudo que era dito, sentia-se o protetor de Tenebris.

— Quando todos voltarem, ficarão contentes por ver que cuidei de tudo. — Disse Telmo.

— Cuidou? Você tá desmontando as casas para trocar aqui na feira. — Disse o verdureiro.

— Pagarei tudo quando voltarem. — Finalizou Telmo, já virando as costas.

As gargalhadas continuavam. Os vendedores da feira sabiam de várias histórias sobre o lugar, mas nada explicava o sumiço daquelas pessoas. Duas equipes de policiais teriam ido lá investigar, mas nunca mais voltaram. Preferiram cercar a vila e manter apenas uma saída para que Telmo pudesse fugir também, tinham convicção que mais cedo ou mais tarde ele desistiria daquela solidão.

O tempo passava sempre igual, no entanto, naquela noite em especial, na volta para casa, ao passar em frente à igreja, Telmo sentiu um frio na espinha e um arrepio que eriçou os pelos da nuca e o fizeram sentir um medo que nunca havia sentido. Nem um som, cavalos e o cão em total silêncio e a penumbra da noite cada vez mais densa, deixaram-no consideravelmente mais nervoso do que esperava ficar. Sem dúvida, aquilo era uma situação diferente. Mas aquele não seria ele se não retomasse o fôlego e fosse em frente.

— Não há nada em Tenebris! — Sussurrou. E continuou. — Além de mim, apenas os animais andam nesse lugar. — Falou a si mesmo, empossando a voz e tocando os cavalos que obedeceram, mas caminhavam vagarosamente e com bastante cautela pela escuridão da noite, seguindo a mesma estrada rural de um vilarejo silencioso.

Nunca se sentiu tão observado. A sensação lhe fazia tremer, suas mãos estavam encharcadas de suor, o cachorro soltava uivos baixinhos e o cavalo começou a relinchar diferente do habitual.

— Só estou impressionado pelas coisas que ouvi na feira. Está tudo tranquilo. — Falava quase gritando, tentando manter a lucidez.

O silêncio da madrugada soava estranho e Telmo questionava a sua sanidade. Não escutava nada e, ao mesmo tempo, tudo. O barulho dos troncos das laranjeiras estalando, o vento balançando e arrancando as folhas e a sensação de que pessoas se faziam presentes ao longe, mantiveram-no concentrado nas rédeas da carroça. Pela primeira vez, sentia a necessidade de chegar em casa, desencilhar o cavalo, colocar o cão para dentro e voltar a se sentir seguro. Por mais solitário que fosse, dentro de sua residência, era o local que se sentia protegido.

O cavalo andava meio de lado, nunca havia sentido esse trotar. As rodas de ferro por vezes trancavam e soltavam dos buracos da estrada e o barulho de uma respiração pesada passava por seu ouvido. Cada passo custoso, dado no gélido caminho de terra, que parecia infinito, era como se estivesse andando no mesmo lugar em meio à escuridão.

Depois de cerca de dez minutos, que mais pareciam dias, chegaram ao destino. Ainda impactado pelo que acabara de passar, lembrou-se de sua amiga Julia e talvez ela sentisse o mesmo quando voltasse a visitar a sua casa.

Telmo, então, desceu da carroça e, ainda com as pernas bambas, tentou retomar o controle da situação. Respirou fundo e pensou consigo mesmo, que agora estava seguro. Levou o cavalo até o cercado e entrou na casa. Puxou a cadeira que ficava ao lado do fogão à lenha e pôs-se a pensar no que acabara de acontecer. Levantou e andou de um lado para o outro questionando a sua solidão, questionando suas escolhas, questionando sua coragem.

Resolveu que deveria voltar e saber de uma vez por todas que tudo aquilo não passou de imaginação fértil e que suas dúvidas demonstraram desconfianças para os animais, que agiram de acordo com seus gestos amedrontados.

Dessa vez, iria sozinho, não colocaria seus animais em possível risco, tiraria suas conclusões como alguém que está acostumado com a escuridão e deixaria no passado aquele menino órfão que um dia dependeu de ajuda.

Foi a passos largos, determinado a enfrentar seus medos, suas angústias e provar a ele mesmo que estar sozinho não é um problema. A vida tem destinos, e o dele é proteger seu lar, mesmo não sabendo o que de fato causou o desaparecimento das pessoas e, principalmente, o porquê de apenas ele ter ficado para trás. Quando se aproximou da igreja, o sentimento de que estava sendo observado voltou à tona. Ele sabia que poderia não ser nada, mas em sua cabeça tinha a dúvida se estava mesmo desacompanhado.

Chegando até a escadaria da entrada, percebeu estar no lugar certo, agora era só prosseguir. Depois de alguns degraus, ele alcançou a porta da igreja, uma porta de madeira antiga e pesada, consumida pelo tempo e pelos mais variados insetos, era o último obstáculo. Levou a mão pela extensão da porta, tateando a madeira áspera até encontrar a maçaneta. Telmo respirou fundo e, lentamente, abriu a porta. O ar pesado e o cheiro de morte o deixou ansiado por alguns segundos.

A atmosfera na igreja, nada reconfortante, passou a ser muito tensa, conforme ele explorava o local. Já nos primeiros passos, tropeçou e caiu em cima de algo mole sentindo o que pareciam vermes rastejando pelas mãos. Levantou-se rapidamente balançando os braços e esfregando as mãos no corpo para que aqueles bichos caíssem. Abaixou-se novamente e, enquanto tateava e examinava o que havia no chão, escutou um grunhido vindo do alto da igreja. O coração disparou e, de uma hora para outra, milhares de hipóteses tenebrosas lhe passavam pela cabeça. Ele não entendia de onde vinha o barulho, até que teve a sensação de algo tocar em seu ombro. Virou-se rapidamente tentando descobrir o que era, mas não acertou em nada. Respirou fundo e voltou a tatear, percebendo então ser um corpo aparentemente apodrecido.

O medo chegou ao fundo de sua alma: mesmo vivendo sozinho por tanto tempo em um vilarejo, nunca havia sentido essa sensação tão terrível; mas, de alguma forma, sem ao menos pensar no que estava fazendo, Telmo continuou seu caminho que foi novamente encurtado por mais um obstáculo, mais um corpo. Preferiu rastejar para não arriscar uma queda, no entanto, desistiu imediatamente ao não conseguir passar pelo que parecia um amontoado de corpos. Desde a morte de seus pais, Telmo nunca havia se sentido tão desesperado. Pensava em chegar ao altar, necessitava encostar em algo que lhe trouxesse um pouco de paz. Imaginava a imagem dos santos que sempre se fizeram presentes nas rezas de sua mãe e o pequeno crucifixo que Julia usava no pescoço. Praticamente, precisou escalar os corpos e depois caminhar vagarosamente sobre os restos mortais do que ele já percebia ser muitos defuntos. Com muita dificuldade chegou até a escadaria em frente ao altar.

Passo após passo, subiu os degraus, novamente sentindo o decompor e o cheiro dos cadáveres, imaginando qual dos moradores poderia ser. O silêncio abismal passou a tomar conta do ambiente ao seu redor, até um choro de criança retumbar. Telmo encolheu-se agarrando as pernas e colocando uma das mãos no chão para tentar se equilibrar. Nesse momento, algo mexeu com seu interior e algo brilhante fez seus olhos enxergarem por um instante. Havia o corpo de um bebê a sua frente. Tentou agarrar em seu colo, de tantos corpos, esse lhe parecia especial, mas ao colocar as mãos embaixo do pequeno e frágil corpinho, sentiu os membros se desmanchando, ficando apenas com os vermes em suas mãos. A escuridão novamente o encontrou. Voltou a limpar os braços desistindo do corpo e continuou sua subida até o altar. Parou assim que sentiu o que parecia ser uma mesa a sua frente. Um cheiro de enxofre e o ar quente pareciam vir de poucos centímetros de seu rosto, aquela coragem se transformou em medo; algo que nunca sentira com tamanha força. O medo por saber que era sua realidade.

Percebera agora o porquê do sumiço repentino de todas as pessoas da vila e sabia também que alguém o puxara para dentro da igreja. Com todo aquele horror fritando seu cérebro, a curiosidade aumentava cada vez mais, estava prestes a constatar a verdade. Respirou fundo e esticou os braços, tocaria no que estivesse à sua frente. Agarraria o mal da mesma forma que tentou agarrar o bebê.

Assim que esticou o braço direito, sentiu algo pegajoso e quente. Não se abalou, seguiu tateando, seja lá o que fosse, ainda estava vivo. Parecia a pele de sapo molhado, com grandes escamas afiadas. Levou a mão esquerda mais para cima, mas a sensação era a mesma, não conseguia chegar ao topo. Subiu lentamente na mesa sem tirar as mãos do que tocava. Espichou o braço até que sentiu em suas mãos o que parecia ser um chifre. A imagem do diabo que sua mãe tanto temia veio rapidamente em sua lembrança, fazendo com que vagarosamente deixasse de tocar e desistiu de tentar senti-lo.

Aquela lembrança tornou todo aquele ambiente demasiadamente mais perturbador para o homem solitário. Ainda em pé, supondo que o que estava a sua frente, via-o como a mais nova presa, se recompôs, respirou fundo o ar fedorento e quente e pôs-se a voltar. No primeiro passo, caiu de costas, esquecera da escada. Seu tombo foi amortecido pelos corpos apodrecidos. Levantou rapidamente cuspindo os vermes, sacudindo a cabeça rapidamente para que nada entrasse em seus orifícios.

Telmo percebeu que as dúvidas dos homens da feira eram mais coerentes do que ele imaginava, e algo era mais que certo para ele: não estava sozinho. Seus músculos paralisaram e lá ficou, quieto, enquanto um rosnado, parecido com os lobos que às vezes rondavam a sua casa, se aproximava cada vez mais. Tudo que lhe restava era ficar calado e torcer para que seja lá o que fosse aquilo não o matasse.

Não teria como fugir, o escuro lhe tirava essa chance, não havia como se esconder de quem o enxergava. Ficou inerte durante alguns segundos, trêmulo, no escuro que já lhe era companheiro, até que o barulho cessasse. Foi nessa hora que Telmo escutou a voz de Julia.

— Telmo, meu amigo. Abra os olhos!

— Saia daqui, Julia. É muito perigoso.

— Abra os olhos!

— Estão bem abertos, mas sabes que minha cegueira não me deixa ver.

O brilho que antes o fez enxergar por segundos, nesse momento era intenso, vindo do fundo da igreja e afetou positivamente seus olhos. Lentamente o nada foi se transformando em sombras, depois em silhueta, até que a face de Julia ficou frente a frente com Telmo, que sorriu assustado sem conseguir falar.

— Sou eu, meu amigo, Julia!

Aquela visão angelical penetrou em seu ser como um sopro de desassombro que durou poucos segundos, ao virar seu novo olhar para o altar, deparou-se com uma das cenas mais medonhas da sua vida. Mesmo sem nunca ter enxergado, as histórias de sua mãe sempre puseram muitos monstros em sua imaginação. Aquela figura vermelha com dentes grandes e afiados que trazia consigo três chifres na cabeça e grandes asas negras, saboreava lentamente o corpo podre de outro bebê. A criatura ao perceber estar sendo vista, proferiu em latim.

— Qui me videt, moriatur. (Quem me vê deve morrer).

Aquele monstro ajoelhado à mesa, satisfazia-se com os restos mortais daquela criança. Telmo ainda sem acreditar conseguir enxergar, olhou mais em sua volta, teve certeza do que o seu tato já havia lhe mostrado; os corpos dos moradores que todos pensavam ter sumido, na verdade, estavam apodrecendo na casa de Deus. De um lado, corpos espalhados, banhados por muito sangue, ossos distribuídos pelos bancos, castiçais cravados nos peitos dos idosos, imagens de santos cobertos de lama e os rostos desesperados daqueles que ainda não foram devorados, evidenciava a forma como foram mortos. Do outro lado, homens acorrentados pelos pés, sem cabeça, e mulheres deixadas apenas com o tronco em cima de pilares, como se fossem troféus ou obras de arte macabra, fizeram com que os olhos de Telmo fossem apertados e despejassem lágrimas pelo seu rosto.

O monstro chifrudo parecia não se importar com os movimentos desajeitados daquele homem que descobriu da pior maneira o que é ver o mundo com os olhos. Telmo passou a questionar a própria realidade, não acreditando no que passava à frente de seus olhos. Julia já não o acompanhava e ele cogitou fazer algo pelos corpos; porém, o medo era tanto que não tinha forças para fazer nada além de tentar salvar a si próprio. Então, abandonou o silêncio e correu em direção à saída; durante esse breve espaço de tempo, percebeu carregar o crucifixo de Julia em uma das mãos, atraindo, assim, a atenção do monstro para si, mas nem sequer prestou atenção, deu meia volta e foi na direção daquele que trouxera todo o mal e solidão para o vilarejo. Uma vez na escadaria do altar, ainda horrorizado, saiu tropeçando e cambaleando pelos degraus frios da escada de pedra, mas nada o parou. Assim que chegou no altar da igreja, ergueu o crucifixo e apontou para os olhos do chifrudo. Aquela coisa vermelha abriu os braços e as asas com uma velocidade absurda, soltou um grito estridente e cravou as garras das duas mãos no peito de Telmo, voou o mais alto que o telhado da igreja permitia e jogou seu corpo no chão. Antes do último suspiro, Telmo avistou a cruz de Jesus ainda inteira, mas coberta de corvos bicando a cabeça do crucificado.

Telmo saiu da igreja e, uma vez lá fora, deparou-se com uma chuva fina o esperando; ignorando tudo ao seu redor, caminhou na direção de sua casa. Percebendo que poderia enxergar todos os moradores do vilarejo novamente, mas seus semblantes não eram felizes, seus corpos não estavam inteiros e o vermelho-sangue decorava os seus rostos e as paredes de suas moradias. Tenebris não era mais um lugar abandonado, e por mais que estivesse conformado com a solidão, não estava mais sozinho.