Vie de classe moyenne

"Ignorante: uma pessoa que desconhece certas coisas que nos são familiares, conhecendo outras coisas das quais nunca ouvimos falar." (Ambrose Bierce)

A família Rebouças havia conquistado sua posição com o esforço notório daqueles que dispõe de muito privilégio e pouca condição de enxergar a desproporção figadal entre direitos e deveres que existe num extrato da sociedade historicamente pelo butim criminoso de seus ancestrais caucasianos.

O patriarca, Melquíades, participava , a todos, seus valores naturais, e incorruptíveis. E, suas entrevistas, sempre, encaixavam observações judiciosas sobre como para a família, para uma que faça jus entre cidadãos probos, era inegociável transir todos com os mesmos princípios.

Uma salva estudada se materializava imediatamente ao ponto final de seu monólogo. Sorrisos discretos e aristocráticos vertiam das bocas de sua platéia.

Voltavam de suas férias, todos os anos estudadas para dar em cima dum depósito turístico regular para famílias de bem, onde eram servidas num mundo cercado da realidade, com as tripas sendo entupidas por mais refeições que apetites, quando Melquíades, em sua SUV de sete lugares, com tecnologia a flertar alienígena, descuidado da necessária atenção, me atropela um veado a cruzar a rodovia. Como não ia lá muito veloz, conseguiu manter o controle do nababesco veículo e foram parar no acostamento. O pobre do cervídeo, contudo, sorte igual não logrou. Teve as ancas defenestradas do resto do corpo e agonizou eternos minutos, até que a morte lhe concedeu misericórdia.

Família imaculada, todos os trâmites cumpridos, seguro comunicado, acertos acertados, carro em condições de seguir, voltam todos à rodovia.

Agora Melquíades está mais atencioso. Seus sentidos sensíveis o colocam em alerta extraordinário. Mercedes, a matriarca, ao celular, continua a reportar o grupo da família e a ver, no grupo das amigas, fotos de homens viris, espadaúdos, e suspira como todas que também o fazem naquele sítio, compartilhando todo tipo de tédio, e putaria que nunca tiveram.

As crianças, no banco de trás, parecem que morreram há muito, pois olha lá quanta falta de tesão em cada.

Então, pois é então que vemos a vida dar o próximo passo, Melquíades resolve olhar no retrovisor, como todo bom motorista. Um quarto de segundo. Não precisou mais.

O veado, metade pra lá, outra, que não era bem metade, pracolá, iniciava as boas vindas aos carniceiros naturais. Do ar, urubus iam mergulhando nos despojos. O sol a pino recrescia a putrefata tendência de tecidos não irrigados dá maneira mais adequada.

Uma raposa pequena, chafurdando na pança inchada do cervídeo, tirou a cabecinha, por um segundo, das vísceras, para uma breve respiradinha, quando olhou nos olhinhos mortos do mamífero e viu, por um átimo, ela jurava, um sorriso cheio de malícia.