As Artes do Fogo - CLTS 20

De certo modo, o jovem ferreiro estava sendo purificado junto com o metal fundido que era derramado em moldes de argila após ser retirado das chamas causticantes.

Calebe também era forjado pelo calor opressivo, pelas vibrações e estampidos agudos que se propagavam a cada impacto do martelo na bigorna e pelas nuvens quentes de vapor que subiam e inundavam a oficina sempre que uma peça incandescente era mergulhada em um barril cheio de água.

Apesar da idade, seus braços eram musculosos; as mãos, calejadas. Rios de suor marcavam a pele impregnada de fuligem.

Tanta brutalidade contrastava com a musa inspiradora de todo aquele trabalho árduo. Tratava-se de uma moça de longos e cintilantes cabelos louros que, muito raramente, era vista passar montada em um palafrém da mesma cor da mais branca nuvem.

Uma vez, Calebe chegou relativamente perto dela, questão de alguns metros, quando foi chamado para consertar a ferradura do cavalo de um dos integrantes do séquito da princesa. Na ocasião, Dereline estava de costas, contemplando distraidamente o horizonte; ao que tudo indicava, nesse dia, a exemplo de todos os outros dias, ela não reparou o mínimo que fosse nele.

Na verdade, Calebe passou muito tempo pensando que a herdeira do trono sequer desconfiava de sua existência, mas ser levado para trabalhar no castelo e incubido de uma encomenda tão nobre devia significar alguma coisa.

Antes ele era um reles aprendiz que ficava apenas com a parte mais dura e nada glamurosa do ofício, inclusive tendo de passar o dia bombeando o ar através do fole para não deixar as brasas perderem o vigor. Contudo, sem que nada fizesse para isso, simplesmente apareceu no interior de um castelo desconhecido e, ao falar como ganhava a vida, foi levado por homens da corte a uma oficina onde ordenaram que criasse uma arma cujos requisitos foram ditados pela própria princesa.

Não adiantava perguntar nada para quem quer que fosse. Todos ali, assim como ele, haviam sido simplesmente arrebatados para aquele lugar e portavam um ar distante, de quem não sabia muito bem o que estava acontecendo.

A única pessoa que aparentava possuir as respostas era Dereline, mas ela saía pouco dos aposentos reais e, quando abençoava os súditos com a graça de sua presença, resumia-se invariavelmente às mesmas falas evasivas sobre cada um fazer a sua parte para o bem comum.

Em todas as aparições, vestia o mesmo vestido branco esvoaçante e tinha as feições ligeiramente encovadas, o que lhe dava um ar espectral. Parecia muito preocupada, embora se esforçasse para manter todos animados e esperançosos.

Calebe desejava com ardor se aproximar e falar com ela, consolá-la e dizer que ela merecia alguém que a ouvisse. Havia um homem que poderia compreender seus temores, com quem ela poderia despir aquela armadura de monarca com deveres e ser apenas uma mulher. Havia alguém que a amava.

A distância entre ambos, porém, continuava inexpugnável, embora estivessem confinados no mesmo edifício de grossas paredes de pedra, cujo centro era um salão amplo e alongado, semelhante à nave principal de uma catedral.

Quem entrava pela grande porta arqueada, via duas fileiras de grossos pilares ladeando o caminho para o extremo oposto do recinto, onde havia uma parede de rocha nua, no meio da qual uma grande cavidade estava no lugar em que deveria estar o altar.

Pulsante e vivo feito um coração, estava incrustado nesse nicho rudimentar um fogo especial em volta do qual uma assembleia formada pelos moradores do castelo frequentemente se reunia em uma espécie de culto àquela luz. Esse fogo não precisava de carvão ou lenha, nem espalhava fumaça ou cinzas, mas suas labaredas, ao invés de consumir, criavam matéria.

Nas nuvens, às vezes, são vistas figuras que se desfazem com facilidade; as silhuetas vislumbradas entre as chamas, no entanto, não tardavam a ganhar mais detalhes e contornos nítidos a ponto de se tornarem palpáveis.

Árvores projetavam seus galhos e raízes a partir do fogo, e não era raro pessoas e animais serem expelidos no salão, todos incólumes, apenas um pouco aquecidos, como se tivessem passado uma tarde ao sol, e um tanto confusos quanto a onde estavam e como haviam ido parar ali.

As pessoas eram acalmadas e conduzidas para os cômodos do castelo; os animais, por sua vez, eram levados para os estábulos e criadouros, onde ficariam esperando para serem abatidos e usados na alimentação da corte.

Volta e meia água vertia das chamas, e pedras ou objetos produzidos por mãos humanas rolavam pelo assoalho. Cabia, então, a Calebe ficar à espreita e colher o que pudesse ser útil na oficina.

O ferreiro produzia itens demandados por homens e mulheres, de utensílios de cozinha a instrumentos de trabalho, mas sua função precípua era acumular o máximo de ouro possível e forjar com ele uma espada de lâmina longa.

Não se sabia ao certo o porquê de a arma precisar ser dourada, mas o uso dela não deveria ser outro que não o combate ao dragão que assolava o reino há dias.

Algumas pessoas retiradas das chamas balbuciavam febrilmente sobre enormes asas abanando verdadeiros vendavais, garras capazes de perfurar muralhas e uma boca cavernosa cujo bafo incinerava o que encontrasse pela frente.

Certamente era daquela abominação que se escondiam tão profundamente naquele castelo sem portas ou janelas. Nem mesmo se podia cogitar tentar perfurar as paredes para abrir mais espaço e arejar o ambiente com tanta gente confinada. O medo de que as barreiras que os separavam do monstro se rompessem era enregelante, e Dereline reforçava que deviam cuidar do refúgio que estava servindo de casa comum.

Todos obedeciam e se comportavam tal como a bela moça pedia, embora a estima e a confiança que tinham para com a princesa não os fizessem ignorar a preocupação nos olhos dela.

As palavras doces da jovem não abafavam os rugidos ferozes que por vezes assombravam os corredores, nem sua beleza cândida ofuscava completamente as rachaduras que se ramificavam cada vez mais em diversos lugares. Tremores e estranhas reverberações se transmitiam do castelo aos corpos dos cortesãos feito arrepios.

Era indubitável que o tempo estava acabando, e estava nas mãos rudes de Calebe a chave para a salvação de todos. Finalmente o jovem tinha a chance de ser o mais próximo de um nobre. E o melhor: era pelos méritos de seu talento, não devido à sorte de um nascimento na família certa.

A origem humilde sempre o manteve afastado dos fidalgos, chegando à presença deles apenas quando o chamavam para trocar alguma ferradura de seus cavalos ou para polir as preciosas armaduras.

Entretanto, agora que uma fera inominável martelava furiosamente o exterior do reduto em que se abrigavam, não era um cavaleiro que erguia o martelo, não era um barão que aguentava o calor das forjas. Era ele, o ferreiro, que iria salvar o dia.

Situações extremas podem provocar mudanças profundas, e não seria em vão alimentar certas esperanças naquele estado de coisas.

Com isso em mente, Calebe derretia colares, anéis e braceletes. As joias da nobreza residente no castelo, inclusive da princesa, já há muito tempo tinham sido fundidas, e toda vez que alguém emergia das chamas no Salão do Fogo eram-lhe tomados todos os pertences de ouro sem qualquer remorso.

Calebe trabalhava com afinco na destruição de adornos dourados. Se a intenção era dar um presente a uma donzela, a beleza delicada das joias, no momento, valia menos que a letalidade de uma lâmina. Assim, o suor investido foi recompensado pelo brilho faiscante cortando a fumaça e o vapor.

O rumor da conclusão da sonhada espada espalhou-se pelo castelo, dos patamares mais baixos aos mais altos, com a presteza de um incêndio em meio a folhas secas; por outro lado, antes de se discutir uma estratégia exata para o uso, foi levantada a questão de quem iria empunhá-la.

Cavaleiros se voluntariaram de pronto, apressando-se em desfiar sequências de feitos heroicos e aventuras, de batalhas vencidas a caçadas bem sucedidas.

Calebe era insensível aos relatos, por mais impressionantes que fossem. Para ele, ninguém era merecedor da espada, a não ser o próprio criador da arma. Não soltava o cabo por nada, ameaçava quem quer que lançasse olhares cobiçosos ao brilhante artefato e dizia para quem quisesse ouvir que apenas a princesa em pessoa poderia tirar a espada dele.

A alegria logo deu lugar ao temor, e clamores foram levados à Dereline para que ela resolvesse a contenda. A jovem, que tinha se mantido alheia ao alvoroço até então, anunciou que aceitava os termos do ferreiro e que a entrega da arma se daria em uma cerimônia solene no Salão do Fogo, na qual era imprescindível a presença de toda a corte.

Radiante com a perspectiva de encontrá-la, Calebe banhou-se com a água dos barris que tinha na oficina; pediu – ou melhor, exigiu – uma roupa adequada e um cavalo no qual pudesse marchar pelos corredores até a porta do salão. Depois da entrada, caminhou empertigado em direção às chamas, cujo brilho refletia na lâmina dourada da espada em suas mãos.

Em frente ao fogo, o ferreiro virou-se e viu os moradores do castelo abrindo passagem para a princesa, que desfilava com o habitual vestido branco. O recinto estava em absoluto silêncio, mas Calebe imaginou notas nupciais soando a cada passo de Dereline enquanto ela se aproximava.

Quando ela chegou até ele, o jovem ajoelhou-se e ergueu a espada de ouro.

– Majestade, tenho a honra de apresentar diante de vossa gloriosa presença a espada áurea, feita por este humilde servo para a derrocada da abominação que nos aflige noite e dia.

Calebe ousou erguer o olhar para Dereline. O rosto dela não transparecia alegria, surpresa, medo ou tristeza. Apenas uma resignação pétrea. Ela virou-se para o público que olhava para as duas silhuetas recortadas pelo fogo e falou com voz alta e compreensível:

– Queridos súditos, após esse tempo de provação e angústia, finalmente temos a chave de nossa liberdade.

Houve brados de puro entusiasmo.

– Contudo, precisamos de braços fortes para empunhá-la e dar o golpe que selará nossa vitória sobre o dragão. Quem será o herói disposto a tão grande desafio?

Dessa vez, espalhou-se um burburinho pelo ambiente.

– Eu forjei a espada – disse Calebe – e estou disposto a fazer qualquer coisa pelo reino e por Vossa Majestade.

Dereline virou-se novamente para o ferreiro.

– Acha que está guarnecido da coragem necessária?

– Estou, Majestade. Diga-me o que preciso fazer e prometo por este fogo que nos ilumina que o farei. Mostre-me a porta para o exterior e a fera cairá.

– Para enfrentar o dragão, não será necessário sair. Ele está em toda parte.

O salão ficou inteiramente quieto. Só aos poucos os cochichos demonstraram que o ambiente não estava vazio. Perguntas sobre o significado daquelas palavras circulavam de boca em boca e, sem que resposta alguma surgisse, exclamações sobre serem todos devorados foram se avolumando.

– Queridos – Dereline tentou elevar a voz acima do alarido –, peço que se acalmem e me ouçam para entenderem a situação. Há alguns meses, o dragão chegou ao reino e não havia espada ou lança que o pudesse matar. Sem armas eficazes, recorremos à magia, e um feitiço foi lançado. A partir de então, tudo o que a fera atinge com seu hálito flamejante ou tenta engolir aparece aqui. As chamas que vocês veem não criam nada, apenas desfazem o que lá fora é feito. Todo esse lugar em que vivemos foi criado a partir do fogo e da força vital da criatura. É quase como se estivéssemos vivendo em seu interior, sem poder feri-la por dentro, não de uma forma que não nos prejudique. Vejam bem, sem poder realmente ingerir o que abocanha, ela está morrendo aos poucos, por isso os tremores e as rachaduras nas paredes. Se o monstro morrer, infelizmente pereceremos. Mas agora temos a oportunidade de resolvermos nosso problema. A espada de ouro pode nos levar de volta. Só precisamos usá-la.

– De que maneira – perguntou Calebe –, se não podemos ferir o dragão por dentro?

– De fato, não podemos. Mas não é o sangue dele que precisa ser derramado para meu plano funcionar, mas sim da pessoa que lançou o feitiço.

– Quem?

– Está olhando para ela.

Calebe ergueu-se e recuou alguns passos sem ter muita consciência do que fazia.

– Vossa Majestade?

Dereline esboçou um sorriso triste.

– Uma princesa deve fazer o que for necessário por seu povo. Depois que meus pais morreram na batalha contra a criatura, assim como a maior parte dos homens do reino, não tive outra escolha a não ser recorrer a conhecimentos ocultos para deter aquela catástrofe viva. Devido à minha inexperiência, a maldição que tentei conjurar para o dragão não saiu como eu pretendia, mas agora temos a chance de corrigir. Aliás, você tem. O meu sacrifício completo conduzirá o sortilégio do fogo para o ouro, gerando o efeito pretendido no início: conservar as vítimas e consumir a fera, ao invés de conservar vítimas e fera nessa precária existência. A minha morte é necessária, e você prometeu fazer o que for preciso.

Destinada a se tornar o receptáculo da maldição mediante tão tenebroso ato, a espada pesou nas mãos geladas e suadas de Calebe. A face dele estava lívida; seus olhos, arregalados.

– Majestade, tem que haver outro jeito.

– Não há. E não temos muito tempo. A vida de todos os sobreviventes está em jogo. – Lágrimas rolavam pelo rosto de Dereline. – Você prometeu!

Ela deu alguns passos e ficou entre o ferreiro e o fogo, os cabelos e a barra do vestido esvoaçando com uma brisa morna à medida em que as chamas crepitavam no nicho escavado na rocha. Calebe não tinha certeza se aquelas labaredas místicas poderiam queimá-la, mas preferia não descobrir da pior forma.

– Majestade!

– Faça isso pelo reino, Calebe. Faça isso por mim.

Ouvir o próprio nome pronunciado por aquela voz doce impeliu o ferreiro para o alvo de suas afeições, mas foi apenas bem perto, quanto já podia contemplar face a face os olhos de safira e os lábios de rubi escancarados em uma expressão de surpresa, que percebeu duas coisas importantes: primeiro, é claro que a princesa sabia o nome do único ferreiro disponível no castelo, assim como saberia o nome de qualquer um que estivesse nas forjas; segundo, era a mão dele que segurava o cabo da espada, enquanto a lâmina estava cravada no coração onde ele tanto sonhou ter seu próprio lugar.

Calebe pronunciou de modo trêmulo uma declaração que nem a princesa, mergulhando no fogo atrás dela, nem os súditos, aturdidos demais para ouvirem qualquer coisa que não os próprios gritos, jamais lembrariam.

O corpo vestido de branco sumiu em meio às chamas, e o fogo se expandiu como um esplendoroso nascer do sol. Quando a claridade ofuscante se dissipou, estavam todos em uma campina a céu aberto em companhia do esqueleto chamuscado de um dragão. E, sob a noite enevoada e sem estrelas, somente a espada dourada brilhava igual à última centelha de um fogo abrasador.

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Temas: Objetos amaldiçoados e paixões platônicas.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 31/07/2022
Reeditado em 01/09/2022
Código do texto: T7572008
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