SOBRE MENINAS E ESCORPIÕES - CLTS 21

A luz do sol não era muito intensa e a tarde já cedia lugar para a noite quando a primeira pedra atingiu o ombro da mulher. Ela não gemeu, mas em um gesto que demonstrava dor levou a mão ao lugar atingido. Os cabelos desgrenhados encobriam parcialmente seu rosto, ocultando um pouco o terror intenso que devastava suas feições.

Tentou fugir, mas soldados com longas baionetas a empurraram de volta ao muro que servia como seu cadafalso.

Em desespero a pobre mulher implorou por clemência. Clamou aos céus por piedade. Tudo em vão. Seu destino já estava decidido.

A segunda pedrada acertou a mulher bem entre seus seios e arrancou-lhe um forte gemido. Uma terceira pedra acertou-lhe o rosto fazendo o sangue escorrer do nariz quebrado. Em poucos segundos as pedradas cobriam-lhe o corpo. Os gritos e gemidos que escapavam de sua garganta foram substituídos pelo silêncio que significava a morte de mais um profano.

Lentamente as pessoas foram se afastando. Apedrejadores e expectadores seguiram o seu caminho deixando atrás de si um corpo mutilado. Em pouco tempo os pequenos robôs da limpeza pública levariam aqueles restos mortais para serem incinerados.

Era o quarto apedrejamento esta semana. No dia anterior haviam sido apedrejados dois homens que foram flagrados deitados juntos. Havia sido algo muito violento. As pessoas gostavam desses espetáculos que envolviam pedras e sangue.

Lara dirigiu um último olhar para a mulher morta. Percebeu que ela tinha um lado do rosto amassado e deformado pela violência das pedradas. Viu ainda que só lhe restara um olho e que este permaneceu aberto mesmo após a sua morte.

Ela havia participado do apedrejamento. Assim como as demais pessoas ela também gritou um monte de impropérios para a mulher profana, mas disfarçadamente havia errado as pedradas que havia desferido. Se uma só pedra sua tivesse atingido aquela mulher ela não se perdoaria para o resto de sua miserável vida.

Caminhando pela via expressa, impecavelmente limpa e arborizada, reparou que ainda estava segurando uma grande pedra cinzenta. Sentiu como se sua mão fosse queimar a qualquer momento ao contato com a superfície rugosa daquela coisa. Discretamente jogou-a em um cesto de lixo.

Era a primeira vez que participava de um apedrejamento. Havia sido sorteada e deveria sentir-se feliz por ter sido contemplada com tal graça, mas não estava. A imagem do olho aberto da mulher apedrejada não lhe saia da mente e, com certeza, iria acompanhá-la por muito tempo.

Havia pensado em inventar uma desculpa qualquer e não ir, mas negar-se a participar implicava em grave ofensa ao Sagrado Clero. O medo de um desterro ou coisa pior terminou empurrando-a para o apedrejamento. Lara, mesmo sem ter acertado uma única pedrada, havia ajudado a matar aquela mulher...

Ainda com o pensamento na mulher morta caminhou até o ponto onde pegaria o coletivo para sua casa.

Mal se acomodou em uma poltrona e o ônibus decolou suavemente. Era uma viagem curta e em pouco tempo estaria no quarto e sala onde morava. Tinha esperanças que a companhia de Caifás, seu gordo e preguiçoso gato de estimação, lhe ajudasse a desanuviar os pensamentos.

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Gotículas de suor porejam em sua testa, seu corpo está tenso e rígido, um terror muito grande impede que ela esboce qualquer movimento um pouco mais brusco. É preferível ficar o mais imóvel possível. O lençol rasgado que cobre sua velha cama está empapado de suor. O quarto cheira a medo.

Todas as noites é a mesma coisa. Sempre o pavor de que venham buscá-la enquanto está dormindo. Muitas vezes sonhos recorrentes em que mãos fortes e brutais a amordaçam invadem seu sono. Desde o dia em que participou do apedrejamento daquela mulher profana que os pesadelos a perseguem. Quantas vezes ela passou a maior parte do dia com a horrível sensação de que iriam jogá-la em um buraco sem fundo?

Nem sempre foi assim. Ela tem vagas lembranças de sua bisavó contando histórias de como as coisas eram diferentes antigamente. Escondida em uma velha caixa em seu quarto existem ainda fotografias antigas de um mundo que ela não conheceu e que não existe mais.

Lá em meio a tantas velharias estava a sua fotografia favorita, uma que mostrava uma moça oferecendo uma flor para um soldado. Sua bisavó dizia que aquela fotografia era do tempo em que as pessoas acreditavam que poderiam mudar o mundo.

Aos seus olhos de criança ela se perguntava como alguém poderia mudar o mundo oferecendo uma flor?

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Inúmeras vezes criou todo tipo de artifício mental dizendo para si mesma que era igual as outras pessoas. Nunca funcionou. Quando era ainda uma menina, gostava de observar o corpo das outras amigas, sentia um prazer intenso em acompanhar as curvas dos pequenos seios que se formavam e tinha que fazer um esforço enorme para desviar o olhar.

Mesmo sem entender muito bem o que aquilo significava, sabia que era errado, afinal mulheres nasceram para gostar de homens e homens nasceram para gostar de mulheres e qualquer coisa além disso era pecado ou uma doença que deveria ser tratada e extirpada.

Então ela lutou. Como ela lutou contra aquele sentimento sujo e pecaminoso. Ela até se deitou com garotos quando o momento chegou, mas aquilo que todos chamavam de fazer amor para ela não passava de algo sujo, agressivo, humilhante.

Ela fingia gostar, não podia deixar que suspeitassem que havia algo de diferente, mas todas as vezes que acontecia, ela se sentia morta por dentro. Nunca havia sentido o menor prazer durante uma relação até aquela noite em que ela e Anna haviam ficado estudando juntas até tarde, beberam algumas cervejas e, sem saber ao certo como aconteceu, acabaram se beijando.

O que ocorreu depois foi muito bom e veio de maneira tão natural que ela enfim compreendeu a verdade: sempre gostou de mulheres. Aquele foi o melhor e o pior dia de sua vida. Pela primeira vez havia sentido o prazer de tocar e ser tocada, mas ao mesmo tempo descobrira que nunca mais estaria em segurança, pois aquele pecado que pulsava dentro dela a tornava uma invertida e, para o Sagrado Clero, isso era algo passível de punição com a morte.

Em todos os seus vinte e sete anos a pessoa mais importante em sua vida havia sido a sua bisavó Matilde. Uma pena ter convivido com ela somente até os nove anos de idade. “Bisa”, como ela chamava sua bisavó, sempre lhe contava histórias de fadas, gnomos, de aventuras, de bichos, das coisas do mundo de antes.

Quando seu desejo começou a despertar para o corpo das outras meninas sempre lhe vinha à mente uma das histórias de sua bisavó, uma que falava de um escorpião que queria atravessar um rio, mas que por não saber nadar terminava pedindo para uma tartaruga ajudá-lo a chegar ao outro lado. Recordava que a tartaruga com medo do escorpião lhe picar durante a travessia dizia que não iria ajudá-lo, ao que este retrucava que, se assim o fizesse, ele morreria também já que não sabia nadar. Convencida pelo argumento do escorpião a tartaruga decidiu ajudá-lo. Eis que no meio do rio o escorpião pica a tartaruga e ela sentindo a morte chegar perguntava-lhe por que havia feito aquilo se agora ele também morreria. O escorpião responde-lhe que fez aquilo porque não poderia fugir da sua natureza de escorpião.

O fim dessa história sempre lhe causou uma sensação de estranheza e ficava pedindo para sua bisa lhe dizer por que tinha que ser daquele jeito. Era-lhe muito difícil entender por que o escorpião agira daquela maneira.

Hoje finalmente entende porque aquela história terminava daquele jeito. Hoje ela se sente como o escorpião da fábula: não há como fugir da sua natureza.

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Todos os dias Lara tem que conviver com o medo de ser descoberta. Ela trabalha em uma grande repartição pública, cumpre plenamente suas funções, ri e conversa com todos, mas sempre imaginando se alguém estará desconfiando de algo.

Os dias passaram e o apedrejamento de que tomara parte foi ficando cada vez mais para trás. Será que um dia aquele fato terrível seria uma pagina virada em sua vida? Perguntava-se sobre isso quando, ao manusear vários documentos que precisavam ser protocolados e despachados, encontrou algo que fez seu sangue gelar nas veias. Em meio a papelada estava um pequeno papel com uma única palavra escrita em tinta vermelha: INVERTIDA.

Agora o horror instalara-se de vez. Alguém sabia que ela era uma invertida. Olhou discretamente ao redor mas tudo o que via eram pessoas mergulhadas em seus afazeres. Quem era? Como souberam? Ela sempre foi muito cuidadosa, sempre tomara todas as precauções possíveis, namorara com vários rapazes, fazia questão de ser flagrada olhando para os homens, provocava eles. Como alguém soubera?

Os dias passavam e o medo parecia ter se transformado em uma segunda pele. Dormia com medo, acordava com medo.

Mais um dia no trabalho convivendo com pessoas de todos os tipos e agora uma delas sabe que ela é uma invertida. Isso a apavora e faz com que um frio de horror lhe atravesse a espinha dorsal. Sua respiração fica ofegante ao se imaginar sendo levada pelas autoridades eclesiásticas para um lugar de onde nunca mais voltaria ou então para um muro qualquer onde seria apedrejada.

O único momento onde sua natureza de escorpião podia se manifestar era quando estava deitada na penumbra do seu quarto e mergulhava em mil pensamentos dissonantes. Mas agora até isso estava comprometido porque passara a ter horríveis pesadelos e muitas vezes se pegava lutando para não dormir.

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Trabalhar naquela repartição passou a ser a antessala do inferno. Todas as vezes que vai aproximando-se do prédio seus passos vão ficando mais lentos em uma inútil tentativa de ganhar uns poucos minutos antes de mergulhar na tensão total. Ela sabe que isso é só um recurso idiota. Tem alguém que é invisível, que pode estar em qualquer canto. Em algum lugar daquela repartição existe alguém que pode levá-la à morte...

Lara tentava se concentrar em seu trabalho, evitava olhar para os lados. Rir e conversar tornou-se um perpétuo martírio pois alguém poderia estar à espreita interpretando e julgando cada gesto seu.

Passou a evitar olhar constantemente para o relógio, pois alguém poderia achar que tal gesto significava uma vontade de querer escapar de olhares inquisitivos. Pensou em arranjar um namorado qualquer que despertasse fofocas dentro da repartição e a desviasse de possíveis desconfianças. Uma miríade de estratégias passavam pela sua cabeça, mas o medo constante continuava a lhe cortar a alma.

Não havia um lugar onde pudesse se esconder, restava seguir em frente e aparentar a maior tranquilidade possível.

A leitura da revista Conservação, de distribuição gratuita, é obrigatória para todos os funcionários e não estar a par do seu conteúdo pode implicar em pesadas sanções. Uma rápida folheada e entre suas páginas lá estava mais um pequeno papel com uma frase escrita na cor lilás: EU SEI QUE VOCÊ GOSTA DE MENINAS.

O horror personificado nas palavras escritas em um pedaço de papel! Não haveria mais escapatória. Já se imaginava sumindo do seu trabalho e os colegas fazendo mil comentários sarcásticos, piadinhas ou tecendo frases do tipo “eu sempre soube que ela era uma invertida” ou então “ela nunca me enganou com aquele jeitinho dela”.

Os dias passavam e Lara seguia em sua secreta, íntima e selvagem luta para manter-se longe de olhares furtivos. Não adiantou. Um outro pequeno papel surgiu em meio as suas coisas

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EU TAMBÉM SOU ASSIM, era o que estava escrito em letras azuis. Lara ficou surpresa com o conteúdo do bilhete. Não esperava aquilo, mas também não baixaria a guarda, pois tudo poderia ser somente um artifício para que ela terminasse por se revelar. Continuaria em estado de alerta e com vigilância constante sobre todo e qualquer olhar ou atitude suspeita que pudesse lhe denunciar.

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As filas para o almoço andavam lentamente e o barulho das muitas conversas cansavam-lhe a paciência. Não estava com fome, mas sabia que se obrigaria a comer e ainda faria uma piadinha qualquer sobre a qualidade da comida apenas para despistar qualquer olhar.

Estava com o pensamento nisso quando percebeu na fila ao lado uma moça vestindo uma blusa com listas vermelhas, lilás e azuis. Ela não era especialmente bonita, possuía um rosto comum e cabelos que já tinham visto dias melhores. Lara já a conhecia de vista, mas algo nela chamou-lhe a atenção. O que era?

Discretamente passou a olhar para a moça. Alguma coisa naquela figura despertara os seus sentidos, mas por mais que espremesse seu cérebro não conseguia atinar com o que era.

Mais uma noite em sua velha cama com Caifás ressonando ao seu lado. Lara tem medo de dormir e sonhar que a levam embora. Tentando expulsar os pensamentos ruins de sua mente finalmente consegue descobrir o que havia chamado a sua atenção para a moça na fila do almoço: a blusa que ela vestia tinha as mesmas cores em que os bilhetes foram escritos...

Seria algum tipo de código? A moça da blusa listrada seria a pessoa que lhe deixava secretamente os bilhetes?

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O dia seguinte, no portão de entrada para a grande repartição, viu acontecer um rápido e discreto encontro de olhares entre ambas. O coração de Lara bateu de maneira descompassada, foi necessário um esforço hercúleo para demonstrar tranquilidade pois havia percebido alguma coisa de cumplicidade no olhar da outra.

Nessa noite Lara dormiu e bem e não teve pesadelos, ao contrário, sonhou que passeava em uma praça amplamente arborizada com uma mulher. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas a sensação de prazer, leveza e felicidade era de uma tal magnitude que, mesmo um bom tempo depois de estar desperta, ainda sentia em seu corpo a vivência onírica.

Quem sabe em algum momento não passaria a sonhar mais vezes com um mundo um pouco melhor do que o seu?

Com a mente atravessada por esses pensamentos Lara levantou-se para enfrentar mais um dia de trabalho. Ao seu lado Caifás dormia a sono solto.

TEMA: LGBT

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 16/11/2022
Código do texto: T7651346
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