A HERANÇA DO TERROR.

A caminhonete azul estacionou, finalmente. -"Chegamos, querida . Finalmente chegamos a mansão do tio Ben." A mulher tirou os óculos escuros. -"Depois de uma reforma poderemos chamar isso de casa." Leonard sorriu. -"O tio Ben era muito rico. Uma boa pessoa mas de gosto duvidoso." Ele saiu e, todo cavalheiro , abriu a porta do carro pra esposa. -"Confio em você, Stella. Vai transformar essa casa assombrada em uma mansão de fazer inveja a Kim Kardashian." A mulher com a cadelinha no colo. A poodle tinha um colar de pérolas e um laço dourado na cabeça. -"Terá que liberar seu cartão pra isso." Leonard abriu a casa, na Alameda Devem, em Louisville, Califórnia. -"Será todo seu, assim que o dinheiro da herança de tio Ben cair na nossa conta." Benjamin Stuart Smith, ou tio Ben, era um ator medíocre mas seus olhos verdes encantaram a doce Lilibel, uma cantora de ópera. O casamento deles aconteceu em 1963, em Memphis. Benjamin abandonou a carreira de ator e passou a empresariar a esposa. Lilibel ganhava projeção e sua voz era cobiçada. As excursões a Europa, após o sucesso dos primeiros discos. Benjamin era um fumante inveterado, um apostador viciado em corridas de cavalo. O casal comprou a mansão em Louisville. Tinham outras casas em Miami e em Los Angeles. Lilibel brilhava e tinha uma legião de fãs. Era figurinha carimbada nas revistas e jornais. O auge da cantora foi uma participação numa canção com Frank Sinatra, a voz. -"Seis milhões de dólares, senhor Benjamin?! Que acha desse valor e uma porcentagem na vendagem do disco? É pegar ou largar." Disse o empresário de Sinatra a Benjamin. Lilibel concordou. Benjamin queria mais. -"Aceite, Ben. Somos nós que precisamos de Sinatra, não o contrário. Essa parceria vai abrir portas." Benjamin aceitou a oferta e ligou para o empresário de Sinatra. Ele estava irado, dias depois. Anos 80, os rumores de um affair entre Sinatra e Lilibel corriam por Hollywood. As gravações do disco. As fotos de Sinatra e Lilibel na capa do disco e nas revistas. Lilibel acompanhou Sinatra em programas de televisão. Benjamin não desgrudava da esposa. Lilibel estava cansada da vigilância e do ciúmes exagerado de Ben. Ela pediu o divórcio. Lilibel passou três semanas num hotel. Sinatra visitou Benjamin, numa noite chuvosa. Eles conversaram. Dividiram cigarros e uma garrafa de rum. -"Adeus, Ben. Cuide-se, a Lilibel precisa de você." Benjamin percebeu que tinha exagerado com Sinatra. Tinha sido injusto e cruel com Lilibel. Benjamin foi ao hotel. Viu, de longe , sua Lilibel se despedindo de um rapaz. Eles se abraçaram e se beijaram. Lilibel viajou pra África. Tinha compromissos em Angola, África do Sul e no Egito. Uma semana depois, Benjamin ligou para Lilibel. -"Vou sim, Ben." O homem sorriu. -"Perfeito. Mandarei Charles te pegar com o Rolls Royce. Amanhã às duas horas." Era uma batalha para a cantora voltar aquela casa. Benjamin tinha encomendado vinte e oito buquês de rosas, mesmo número de anos da cantora. O bolo de aniversário na mesa. A champanhe no gelo. -"Feliz aniversário, Lilibel." Ela chorou. Achava que ele a chamara pra assinar o divórcio. O casal se abraçou. -"Sempre velejamos no seu aniversário." Ele estava diferente, mais gentil e carinhoso. Lilibel quis outra taça de champanhe. -"Preciso da energia e do ar puro do mar." Benjamin foi ao telefone. -"Eu só preciso de você." Ele discou. -"Ramos?! Arruma o nosso iate. Sim, vamos para a baía." Uma hora depois, o casal chegava a marina. A noite caiu. O motorista estava feliz pois viu o casal se beijando no banco traseiro. Benjamin e Lilibel subiram no iate. Ramos levou o iate para o meio da baía. Benjamin e Lilibel beberam muito. A mulher quis nadar. Benjamin pulou na água. Lilibel o imitou. As ondas levaram o casal para longe do iate. Ramos estava alheio a tudo. Benjamin nadou até o iate. Ele subiu. Estava exausto. Ele deixou o corpo cair e dormiu no convés. -"Senhor. Onde está a senhora Lilibel?" Benjamin estava assustado. -"Está no quarto, lá embaixo." Ramos estava aterrorizado. -"Não está. Foram nadar sem me avisar? Sem a luz do iate?!" Benjamin olhou para a água. -"Meu Deus. Lilibel?!" Ele gritou com todas as suas forças. Ramos deu várias voltas com o iate. As luzes acesas. O sol iluminou os barcos da guarda costeira. As equipes de bombeiros procurando pela cantora. Os pescadores ajudavam a polícia. As equipes de tevê a beira da baía. Benjamin não queria dar entrevista nenhuma. Estava desolado. O corpo de Lilibel foi encontrado por pescadores, nas pedras da baía, dois dias depois. Nenhum ferimento no cadáver. Benjamin depôs a polícia e foi liberado. -"Um acidente." Foi a declaração do delegado a imprensa. Sem filhos, Benjamin herdou toda a fortuna da esposa. O divórcio não tinha sido concluído e Benjamin ainda era casado com Lilibel no papel. Era o dono dos direitos autorais das canções de Lilibel, tocando muito devido a sua morte. Tinha formalizado um seguro milionário pela voz da cantora. No velório, Benjamin, muito triste e desolado, precisou de auxílio médico e de uma cadeira de rodas. Três meses depois, ele vendeu o iate, o helicóptero, duas mansões e sete carros de luxo. Viveu recluso na mansão de Louisville por seis meses. Passou a viajar pelo mundo, frequentando casinos e hotéis de luxo. Sedentário e setentão, Benjamin não resistiu a Covid e foi pra terra dos pés juntos. Leonard estava desempregado quando soube da herança. -"Minha finada mãe falava pouco desse tio. É uma pena." O advogado mostrou-lhe as fotos da mansão. -"Você e mais sete pessoas dividirão a herança do senhor Benjamin. Cabe a você a mansão de Louisville e quarenta milhões." Leonardo sentiu a visão escurecer. -"Puxa. Essa mansão vale muito?" O advogado riu. -"Certamente. Está precisando de uma reforma pois o seu tio não cuidava dela. Por baixo, vale uns setecentos." Leonard estava feliz. -"Setecentos milhões?! Por uma casa velha?! Essa herança veio em boa hora. Onde estiver, muito obrigado, tio Benjamin." Stella abriu as malas. -"Essa casa parou no tempo, Leo. Os móveis são retrôs, da década de 60. Vamos ter que mudar tudo." Ele concordou. -"Vamos ter que dormir aqui. Aquela piscina precisa de uma reforma, assim como a edícula e a adega." A campainha soou. -"Nossa pizza." Exultou a mulher. Mais tarde, sem tevê e cansados, Leonard e Stella foram dormir. Abraçada ao marido, Stella adormeceu. O iate. Stella viu o iate no meio da baía. A mulher elegante tinha uma taça na mão. Um homem estava atrás dela. Stella sorriu ao vê -los se beijando. O homem empurrou a mulher na água. Ele se jogou na água e passou a agredir a mulher. Stella gritou. Leonard acordou. -"Que foi? Está tudo bem." Stella tentou dormir. Escutava uma música ao longe. Uma voz feminina. -"Leonard, desliga esse rádio." Ela olhou para o esposo dormindo. Stella se levantou e foi até a copa. Precisava de água. -"Que coisa, ainda escuto a música." Ela se virou e gritou. O copo caiu no chão de madeira. -"Sou eu, Stella. Também quero água." Ela abraçou o marido. -"Que susto. Essa casa é assombrada." Leonard sorriu. -"Vamos dormir no sofá, agarradinhos. Vou deixar o abajur ligado." A mulher dormiu. No dia seguinte, o casal recebeu a visita de um engenheiro da cidade. Stella organizava caixas de livros e fotos da mansão. -"Meu Deus. É a mulher do meu sonho. É ela." Leonard entrou. Stella estava pálida. -"Que foi? Viu o espírito de Elvis?" Ela fez uma careta. Mostrou o porta retrato. -"Esse é o tio Ben?" Leonard respondeu afirmativamente. -"Sim. É ele e sua Lilibel, a cantora." Stella se arrepiou inteira. -"Essa mulher estava no meu sonho. Seu tio a matou?" Leonard estava admirado. -"Não. Ele a amava demais e a morte dela o consumiu. Um acidente a levou." Stella estava intrigada. -"Lilibel, a cantora!" Ela escreveu o nome no Google. -"Vou atender o mestre de obras e o advogado. Eles chegaram." Stella ficou um tempo lendo sobre a vida de Lilibel e Benjamin. Os jornais da época e as manchetes da morte da cantora. -"Ele me matou." A mulher atrás dela sussurrando. Leonard entrou. -"Seu ombro, amor. O direito está pra baixo." Stella se olhou. A mulher atrás dela tirou a mão do ombro dela. -"Ah, sim. Esse celular pesado. Seu tio poderia ter matado Lilibel?" Leonard ficou furioso. -"De novo? De jeito nenhum. Mamãe dizia que tio Ben era calmo, um cavalheiro. Isso nunca foi ventilado." A noite, Stella não conseguiu dormir. Ela viu que Lilibel estava no quarto, num canto. Benjamin a encarava. -"Essa casa é minha. Fora daqui, Lilibel." Stella viu a cantora chorando. Benjamin fez um sinal e a imagem de Lilibel se dissipou, sumindo do quarto. Stella olhou para Leonard, dormindo profundamente. -"Tire esses pensamentos da cachola, menina. Formei uma redoma de energia aqui, Lilibel não poderá lhe intuir mais nada. Deixei muito dinheiro pra vocês e isso basta." Stella tremeu inteira. Ela cobriu a cabeça com o edredom. Tempo depois, a moça escutou barulho de correntes. De manhã, Leonard notou que Stella, ainda dormindo, estava quente, com febre. Ela delirava e falava palavras desconexas. Após o café, o casal foi ao posto de saúde. Stella tomou remédios. A moça estava melhor. -"Não quero morar nessa casa, Leo. O espírito de seu tio está aqui." Leonard sorriu. -"Certamente. As coisas dele estão aqui. A casa era dele." A moça foi taxativa. -"Estou falando sério. Vou voltar." Leonard ficou intrigado. -"Teve outro pesadelo?" Stella narrou seu sonho. -"Lilibel queria me falar alguma coisa. Que razão tio Ben teria pra evitar senão a tivesse matado. Na biografia de Lilibel está escrito que ela fazia natação. Seu afogamento não foi acidental. Tio Ben usufruiu do seguro de vida, além de ficar com a fortuna dela. A mídia da época ficou do lado dele pois acreditaram no suposto caso dela com Sinatra." Leonard ficou pensativo. -"Só tem um jeito de tirar essa história a limpo. Eu acho." Benjamin, perto deles na varanda, avançou sobre o sobrinho, sufocando-o com as mãos. -"Maldito. É tudo mentira. Não acredita nessa idiota." Leonard engasgou com o suco de laranja. Tossindo, se levantou. Stella o ajudou, batendo em suas costas. Ela se arrepiou. -"Tio Ben está aqui. Eu o senti, Leo. Ele captou seu pensamento." Leonard estava bem. -"Engasguei. Eu ia falar que a exumação de Lilibel poderia dar uma pista, ainda que após tanto tempo." Stella concordou. -"Será difícil ter a autorização para a exumação. Poderíamos procurar o perito que analisou o cadáver de Lilibel." Leonard a abraçou. -"Ótima idéia. Vamos para um hotel, lá vou ligar para o Bryan, meu amigo delegado. Ele poderá ter acesso aos laudos." Seis dias depois, o delegado Bryan procurou o casal. -"Tenho boas e más notícias, Leonard. Tive muita ajuda e investiguei o bom e velho tio Ben. A boa notícia é que o perito Oliver Monterrey, que recebeu e analisou o cadáver de Lilibel, vive em Orlando. Ele atestou afogamento como a causa mortis de Lilibel. Quatro meses depois, o perito comprou uma bela casa em Orlando, como podem ver nessas fotos que a polícia de lá me enviou. De onde veio tanto dinheiro para o perito?! Leonard olhou para Stella. -"O perito aposentado não quis falar comigo. Esperava por isso. O rapaz que pilotava o iate, que estava com Benjamin e Lilibel naquela noite fatídica, mudou-se para o Brasil com a família. Seu tio lhe enviava cheques generosos, mensalmente. O homem morreu há seis anos, durante um passeio a floresta amazônica." Stella franziu a testa. -"Muito suspeito." O delegado concordou. -"Vamos pedir a exumação de Lilibel. Melhor fazer em sigilo pra não agitar a mídia. Pra todos os efeitos, será pra liberar espaço na sepultura da cantora. Aproveitamos e colhemos material pra análises." Leonard concordou. -"Vamos pra casa. Melhor ficar longe dessa mansão." Stella sorriu. -"Uma herança do terror, eu diria. Nos meus pesadelos, Lilibel mostrava suas unhas. As belas mãos cheias de anéis se transformavam em ossos. Era horrível." O delegado coçou o queixo. -"Sonho, pesadelo ou não, faz sentido. Nada pode ser descartado. Na biografia de Sinatra, ele pouco cita Lilibel. Essa história de que eram amantes já foi desmentida por contemporâneos deles. Você não conhecia Lilibel e Benjamin mas eles lhe apareceram na mansão. Pode ser um sinal." Tempo depois, Leonard e Stella acompanharam a exumação de Lilibel. O delegado e os peritos colheram material das unhas da ossada. -"Delegado! Olhe!" Disse o perito ao oficial. Leonard e Stella olharam os fios de cabelo no saquinho plástico. -"Cabelo dourado, como os de seu tio, Leo. Os exames vão comprovar o que pensamos que ocorreu naquela noite." Uma semana depois, os exames ficaram prontos. O delegado chamou a família de Leonard. -"Comparamos os DNA, de sua mãe e os fios nas unhas de Lilibel, não há dúvidas de que é cabelo de Benjamin. Há também pele dele, nas unhas dela, o que indica luta numa possível tentativa dela, de se livrar do afogamento. Benjamin matou a esposa." A mãe de Leonard chorou. -"No velório ele estava de cachecol. Certamente pra esconder os arranhões." Leonard e Stella estavam angustiados. -"Vou vender aquela mansão e doar o dinheiro. É o melhor a fazer." Disse Leonard. O delegado convocou uma coletiva de imprensa e anunciou o resultado dos exames e de sua investigação. A reviravolta no caso da morte da cantora repercutiu na mídia americana. Três dias depois, o delegado foi, com uma equipe de tevê, até a casa do perito Oliver. O mordomo os recebeu. -" O senhor Oliver não poderá falar com vocês pois ele se matou ontem, com um tiro na cabeça. A família está no cemitério nesse momento." A equipe de tevê se foi. O delegado foi até uma lanchonete ali perto. Três horas depois, um carro chegou a mansão. O delegado tocou a campainha. O mordomo o recebeu. -"A senhora Helen o viu pelo sistema de câmeras, delegado. Não está em condições de o receber mas me pediu para lhe entregar essa pasta. " O delegado agradeceu. -"Certo. Meus agradecimentos a ela. Vou indo." Na delegacia, ao lado dos peritos, o delegado abriu a pasta. -"Fotos do cadáver de Lilibel e cópias de atestados falsificados e alterados. Há um contrato, assinado por Benjamin, em que atesta ter matado a esposa. Esse era a garantia de que Benjamin não faria nada com Oliver. Que sujeito asqueroso." Disse o delegado a Leonard. -"Me desculpe, Leonard. Era seu tio mas a verdade apareceu." Stella, dias depois, colocou um disco de Lilibel pra tocar. Leonard veio até a sala. -"Sua mãe me deu esse disco. Não é ruim." Leonard sorriu. -"É maravilhosa a voz dela. Sinatra se encantou por essa voz. Lilibel está feliz, onde estiver. Você não teve mais pesadelos. Recebemos uma herança mas era uma herança do terror." Stella sorriu. -"Herança do terror. Parece aqueles títulos de contos de terror do Recanto das Letras." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 21/11/2022
Reeditado em 23/11/2022
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