AMOR SACRIFICIAL

À MINHA QUERIDA AMIGA DAIANA, POR TUDO QUE SIGNIFICA PARA MIM.

AMOR SACRIFICIAL

-Qual seu nome?

-Daiana, muito prazer.

Aquela festa estava um porre, até que ela surgiu pra mudar toda minha vida.

Era irmã de uma velha amiga e veio a convite dela para visitar-nos depois do trabalho. Costumávamos nos reunir semanalmente entre uma ou outra aula do curso de semântica brasileira na casa de Gina. Era bem mais ampla que nossos cubículos no campus. Por isso era lá que trocávamos nossos livros pelas piadas sem graça e as falsas risadas. Para mim tudo aquilo era um tédio, mas como Carol fazia questão de minha presença, suportava vez ou outra compartilhar daquele baile de fantasias sem máscaras onde um parecia ser mais feliz que o outro. Ao menos tentavam desesperadamente insinuar isso.

Carol nunca me contou que tinha irmãos. Muito menos que eram interessantes e inteligentes como Daiana.

Possuía não mais que um metro e sessenta e cinco de altura e um belo sorriso branco que me lembrava aqueles comerciais de creme dental. Seu corpo era robusto e atraente naquela blusa de alça com um pequeno decote que delineava a simetria dos seios perfeitamente, bem como as tenras pernas envoltas por uma jeans típica das moças que andam nos parques e shoppings da cidade.

Não sei dizer ao certo se foi a solidão ou a monotonia daquele lugar, mas o certo é que cada movimento daquela mulher me parecia único. Desde o modo como jogava os cabelos morenos para trás até os leves movimentos da mão cada vez que pronunciava uma frase irônica. Um quadro perfeito para alguém que há muito tempo não possuía mais que lembranças de relacionamentos fracassados.

-Quantos anos você tem?

-Tenho vinte, mas isso não é pergunta que se faça a uma dama.

-Então me perdoe. A partir de agora serei seu cavalheiro e vou cuidar de você.

Ela observava tudo com um ar inocente, como se fosse a primeira vez que visse o mundo diante de si. Impressionou-me tanto que conversamos a noite inteira. Cada palavra, cada história. Tudo me atraía mais.

Saí daquele transe com a voz de Carol nos chamando. Já eram quase seis e meia do dia seguinte.

-Tenho que ir. Foi um prazer conhecer você.

-Imagine. O prazer com certeza foi todo meu, senhora dama.

Para alguém que horas antes tinha vontade de sumir do mapa e esquecer completamente da própria vida, as coisas agora pareciam ter ganhar uma nova perspectiva. Tudo o que me vinha na cabeça era aquela delicada criatura presente em meus sonhos. Com certeza não era perfeita, mas isso é que lhe dava um toque especial. Certa vez ouvi um de meus professores falando acerca das imperfeições que nos fazem humanos, que nos diferenciam uns dos outros. Daiana tornou-se para mim o sentido daquela frase. Passei a semana toda falando perturbando Carol, tentando disfarçar meu interesse em sua irmã. Mas como enganar uma mulher quando se está interessado em outra tão próxima dela?

-Marcos, ela é casada!

Aquilo foi como uma bomba atômica lançada sobre meus sentimentos.

-Como casada? Porque não me disse nada? Está mentindo, Carol! Está com ciúmes!

Os homens ficam ainda mais tolos quando estão apaixonados.

-Mentindo, eu? Ligue pra ela então. Fale com seu marido. Se não confia em mim que sou sua amiga há dois anos, como vai confiar nela que conheceu a poucas noites?

Liguei para Daiana naquela madrugada. Não só era casada como tinha um filho de quatro anos.

Aquilo foi o suficiente pra me jogar novamente na vala suja e ingrata que chamamos de realidade. Lá, tudo não passa de lixo. E era como eu me sentia agora. Um completo lixo desesperado pelo que não podia ter. Toda minha vida passou diante dos meus olhos enquanto eu tentava entender o que se estava acontecendo comigo. Como uma mulher poderia transtornar tanto meu estado de espírito? Meus amigos sempre disseram que eu possuía uma personalidade muito centrada. Serena. Será possível que em uma noite apenas tudo isso fora por água abaixo? Como aconteceu não sei. Só sei que aconteceu.

-Mas não pode se verdade, Daiana. A verdade é que eu te amo demais!

-Também gostei de você Marcos, mas eu tenho um marido, uma família. Não posso jogar tudo fora!

-Eu faço qualquer coisa por você. Eu preciso de você. Sou capaz de... De... De até matar por você!

A frase saiu de ímpeto, e me calei instantaneamente. O que eu estou fazendo! Simplesmente estava fora de mim.

-O que você disse Marcos? Será que ouvi mal ou você falou em...

-Matar!

A última coisa que ouvi foi o barulho do telefone caindo sobre o gancho. Mas em meus pensamentos aquela voz interior não se calava. “Matar, matar, matar, MATAR!”

Isso é loucura! Por mais que a amasse, por mais que estivesse disposto a tudo... Qual o preço desse “tudo”? Não conseguia mais comer, nem beber. Deixei o curso, os amigos, as festas. Tudo. Bem que Carol me procurou duas ou três vezes, mas percebeu que era tarde. Eu já estava condenado.

-Você está louco Marcos, o que faz aqui?

-Eu cuido de você Daiana. Eu cuido de seu filho. Abandone-o e fique comigo. Eu preciso de você!

-Não posso. O que você está fazendo não é certo! Não percebe a loucura? Só há um jeito de ficarmos juntos, mas não posso pedir que faça nada por mim!

Eu não tinha mais dúvidas em mente. Tudo o que via me lembrava seu rosto. O que tocava, o que ouvia, o que fazia. TUDO! Só haviam lembranças dela. E foi numa madrugada de insônia que peguei que rumei em direção ao leste da cidade.

Sua casa era pequena e ainda recordava a última vez que estive ali naquela janela, observando. Um jovem rapaz beijava sua boca enquanto uma voz infantil chamava do quarto. “Papai, papai. Venha ver!” Desta vez, só a noite me fazia companhia.

Foi fácil romper o cadeado que segurava o vidro. O destino conspirava ao meu favor. Cada cômodo da casa transpirava seu cheiro e aquilo me deixava mais alucinado. Peguei uma faca na pia da cozinha e caminhei para o quarto. Do outro lado da porta estava aquele casal tão tranqüilo. Como era belo o rosto daquela jovem banhado pelo luar que entrava pelas frestas do cômodo! Daiana era simplesmente exuberante. Seus alvos braços entornavam o corpo de um desconhecido que ressonava feliz ao seu lado. Era eu quem deveria sentir aqueles braços delicados me abraçando!

Daiana acordou.

-Não posso Daiana. Não posso. Te amo mais que minha vida,mas não posso tirar outra vida por isso!

-O que está fazendo com esta faca Marcos? Não precisa disso. Venha cá!

Ela levantou-se da cama, deixando á mostra a camisola transparente. Seu corpo quente me cercou como uma mãe faria ao filho nas noites de chuva. Vi uma lágrima rolar pelo meu pescoço enquanto a faca caía no chão. Momentos de paz eterna...

Foi quando me senti diferente.

Tudo começou a girar ao meu redor e em meu peito uma dor aguda espalhou-se rapidamente. Uma sensação desconfortante tomou meu corpo, fazendo com que eu ficasse tonto e tivesse náuseas. Minha visão embaçou-se e meus pés cambalearam para frente.

-O que está acontecendo Daiana?

-Fique calmo meu amor. Já vai acabar. Obrigado por me amar assim. Todos nós agradecemos!

Agora minha visão obscurecia-se e me senti pesado, com muito sono. Percebi que o líquido empoçado ao meu lado não eram lágrimas, mas meu sangue correndo vultosamente pelo chão.

O teto de seu quarto era cor de púrpura, isso me lembrou da festa onde a conheci.

Olhei para o jovem em pé limpando a faca suja na borda de seu pijama. Ele segurava as mãos de Daiana enquanto os dois se beijavam.

-Obrigado Marcos.

Eu apaguei.

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Acordei com uma forte tontura, numa sala escura e fria. Uma corrente de aço presa ao chão de mármore me impedia de levantar. Tentei erguer a cabeça, mas ela parecia que ia estourar de tanta dor. Todo meu corpo latejava e me sentia completamente exausto. Perto dali, alguém cantarolava uma suave cantiga de ninar.

-Quem está aí? Ajude-me, por favor. Estou preso!

A voz saiu um pouco embargada, mas alguém me ouviu.

O rapazinho soltou uma risadinha inocente, enquanto dava alguns passos em minha direção. Era uma criança. O filho de Daiana.

-Onde está sua mãe, filho? Pode ir buscar ajuda?

-Você não pode sair, seu bobo. Papai e mamãe precisam de você.

Ele segurava um objeto nas mãos pequeninas, ora balançando, ora pondo na boca. Seus traços lembravam o rosto dela. O mesmo sorriso de creme dental. Quando fosse mais velho, seria a imagem perfeita da mãe

-Venha cá me ajudar garoto. Por favor! Minha cabeça está doendo muito. O que tens na mãos, filho?

Ele sorriu docemente, apontando em minha direção.

Com muito esforço, ignorei as pontadas agudas na cabeça e observei o rumo daquele dedinho que tentava me indicar alguma coisa.

-Por Deus, meu corpo! O que aconteceu com meus membros! Socorro!

Meu peito estava aberto e me faltava uma das pernas. A criança do outro lado das grades segurava um dedo humano enquanto dançava de alegria:

-Eles chegaram, eles chegaram. Papai e mamãe chegaram!

-Meu pequenino. O que faz aí! Deixe o moço descansar. Vá pro seu quarto, vá!

O garotinho sumiu de minha visão e em seu lugar surgiu uma mulher bem vestida, os cabelos soltos, aquele sorriso de comercial me olhando fixamente, ela segurava um cutelo em uma das mãos.

-Daiana?

-Sacrifícios são necessários em nome do amor, caro Marcos. Logo tudo estará terminado. Descanse, e ficará bem.

-Sua louca, o que vocês fizeram comigo? Eu te amei Daiana. Eu te amei com toda minha alma! Como pôde fazer isso?

-Eu sei disso, Marcos. Por isso toda minha família te agradece. Graças ao seu amor, teremos alimento fresco por mais este mês. Por falar nisso, é melhor você dormir logo. Meu marido está faminto e tenho que preparar o jantar. Você conseguiu o que queria Marcos. Cuidou de mim. Seu amor está me sustentando! Agora fará parte de mim, para sempre!