Descarregado

O sol invadiu o quarto, mesmo com as cortinas a luz parecia transcender qualquer que fosse a barreira ali, gostaria de passar o resto do dia deitado, mas a sensação de dormir com esse maldito sol tiraria qualquer um do lugar, coloco um roupão e preparo o café, lembro que antes adorava esse aroma e o pão de queijo ganhando forma enquanto assava, a casa tinha barulho, cheirava a limpeza e não esse cheiro insuportável de mofo, mas quem sou eu para reclamar de odores.

Quando a Paula foi embora não houve discussão, ela apenas pegou suas coisas e partiu, calada, apenas me olhou e mesmo que tenha durado poucos segundos ,foi como se olhasse toda minha vida nos olhos dela, penso que deveria ter dito algo, quem sabe o efeito que isso levaria, mas eu só deixei que fosse.

Na maioria dos dias eu apenas sento no sofá, ligo a TV e não sei nem explicar o que ela está passando, talvez os mesmos programas sensacionalistas que todo mundo vê, lembro das pessoas dizerem que os dias passam rápidos e concordo, nem percebo e o céu já escureceu, tem dias que preciso olhar um calendário e me localizar, engraçado o quanto um calendário de papel pode te trazer de volta para o mundo, fazem cinco anos que meu pequeno Lucas partiu, prefiro usar este termo, fica mais sensível do que dizer que após o barulho haviam pedaços da cabeça dele espalhados pelo quarto, todo, Lucas era um menino esperto e mesmo hoje ainda me pergunto porque deixei a arma tão acessível, talvez não acreditasse, na verdade quem imagina uma coisa dessas, aquela arma era para nos proteger, era para cuidar da nossa casa e talvez ela tenha feito seu papel com louvor, ao menos aquilo para o que foi criada.

O quarto do Lucas continua intacto, claro após a equipe de limpeza tirar todo o sangue e a Paula deixar tudo do jeito dele, não entro mais lá, na verdade não entro em quarto algum, eu já sei o que eles guardam e até o cheiro que tem, então fico entre a sala e a cozinha, ao lado do sofá deixo a maldita arma, não preciso escondê-la mais e levei um bom tempo até ir buscá-la na delegacia, odiava pensar que todos sentiriam dó de mim, ninguém me culpou pelo Lucas ser inteligente o suficiente para abrir um cofre, mas em cada rosto eu via a culpa estampada, então eu acreditava que a arma precisava estar comigo, como uma cruz ela era minha condenação interna e o que sobrou das minhas convicções.

Flerto com suicídio todos os dias se é que posso dizer, porém primeiro que não tenho coragem para tanto, já pensei em me jogar numa ribanceira, me afogar no mar e até mesmo entrar na delegacia armado esperando que me matem, no entanto e se houver um céu? E se existir um Deus, se ele for tão firme quanto dizem, não eu não acredito em nada disso, porém ainda assim é uma possibilidade, então preciso obedecer suas regras se quiser ver meu menino novamente.

O barulho da porta abrindo é leve, mas meu sono é tão ruim que precisaria menos que aquilo para me acordar, os dois rapazes se assustam ao verem que eu estava na sala, o que se sucede é tão rápido e instintivo que dificilmente em outras ocasiões seria diferente, ao apontar a arma para eles o barulho é seco, o corpo bate ao chão com violência e só tenho tempo de ouvir um deles dizer "que cara louco de apontar uma arma sem munição".