MONSTROS DO ID - CLTS 22

- Mãe, as coisas que estão lá fora nunca vão entrar aqui, não é? – Toda noite Elisa fazia essa mesma pergunta.

- Eles não vão entrar filha. Agora tente dormir um pouquinho que eu ainda vou ficar acordada aqui. – A voz de Fernanda mal conseguia esconder a sua insegurança, sentia-se cansada e tudo o que gostaria agora era deitar-se em uma cama macia e dormir, mas isso é uma coisa quase impossível agora. A qualquer momento algo pode surgir com uma intenção assassina e ela tem que estar alerta. O simples ato de dormir havia se transformado em algo muito temerário.

Essa noite Fernanda não queria rezar, ela já havia perdido as contas de quantas vezes clamou aos céus por uma resposta que acalmasse a sua alma destroçada. O mundo lá fora estava um caos. A morte, a destruição e a loucura espreitavam cada rua e cada casa. Ela sabe que seu frágil esconderijo pode ser descoberto de uma hora para outra e isso a exaspera. Mesmo não querendo rezar Fernanda terminou por formular uma oração...

Seus olhos pousam sobre a criança pequena que dorme ao seu lado. Ela só tem nove anos. Ter uma filha para cuidar e proteger no inferno que o mundo havia se transformado era tudo aquilo que ela não precisava agora. Fernanda observa os cabelos encaracolados de sua filha e sorri ao lembrar que eles são idênticos aos do pai. Por um breve momento, essa constatação a faz esboçar um tênue sorriso.

Um leve barulho vindo de algum lugar faz seu coração disparar. Ela rapidamente empunha a velha espingarda que estava em seu colo. O facão nunca sai de sua cintura mesmo. Sua respiração fica suspensa. Ela não sabe o que pode ser. Se for algo maligno talvez não haja uma defesa possível. Apenas seis cartuchos ela possui: quatro para a defesa e dois para ela e sua filha. Há muito tempo que já havia decidido que nunca seriam pegas vivas...

O alivio chega como se fosse pequenas ondas massageando seus pés ao ver um rato cinzento andando e derrubando alguma coisa no porão. Há alguns dias seria impossível imaginar que um bicho sujo e fedorento como aquele a deixaria feliz.

Os mantimentos que ela tão cuidadosamente estocou não irão durar para sempre. Só de imaginar que em algum momento elas terão que sair daquele esconderijo improvisado já enche seu coração de terror e desespero.

As horas transcorrem lentamente e ela termina adormecendo.

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No limiar do século XXII uma equipe de prospecção lunar encontrou um estranho artefato enterrado em uma grande cratera localizada em Mare Imbrium. O tempo que aquele objeto estava ali na Lua talvez remontasse a um período anterior ao surgimento da espécie humana.

Essa descoberta deixou a comunidade científica estupefata e causou um alvoroço sem precedentes no mundo. Aquilo era a constatação definitiva de que o ser humano não estava sozinho no universo. Em algum lugar entre as estrelas havia uma espécie inteligente que, em algum momento, foi capaz de cruzar a imensidão interestelar e enterrar algo em nosso satélite.

O motivo de o estranho objeto ter sido enterrado gerava discussões apaixonadas. Por que uma civilização desconhecida atravessaria o oceano entre as estrelas para enterrar aquela coisa?

Vários anos transcorreram até a ciência humana finalmente descobrir qual era a finalidade do estranho artefato. O que estava diante dos cientistas era algo que beirava a magia. O objeto se mostrou ser uma máquina capaz de alterar a estrutura atômica de qualquer coisa e reconfigurar tudo em algo completamente diferente.

A máquina era capaz de, como em um passe de mágica, materializar qualquer desejo. A mais fantástica e maravilhosa descoberta descortinava-se aos olhos da humanidade. Do dia para a noite a miséria e a doença poderiam deixar de existir. A violência e as muitas mazelas sociais seriam coisas do passado. Um problema surgiu em meio à euforia pela inusitada descoberta: um mundo em que todos poderiam ter o poder de mudar qualquer coisa de acordo com a sua vontade correria o risco de ser um mundo caótico. Para evitar que isso ocorresse tornou-se necessário a criação do mais rígido protocolo técnico-jurídico-financeiro já construído na história da humanidade, de maneira a limitar tal poder e estabelecer diretrizes de segurança. Sendo assim, como medida de proteção, estabeleceu-se que cada pessoa só poderia materializar três desejos por mês e nenhum deles deveria causar qualquer tipo de mal ou danos físicos a pessoas, propriedades ou instituições.

Um nano dispositivo foi desenvolvido com as mesmas especificações daquele encontrado na Lua e seria implantado no córtex cerebral entre o lobos frontal e parietal das pessoas. A formulação de um desejo por parte de um indivíduo geraria uma força de natureza desconhecida capaz de causar um rearranjo na estrutura atômica de qualquer coisa. Em segundos o desejo de saborear um bom Vinho do Porto, mudar a mobília de sua casa ou mesmo remover uma cicatriz indesejada estaria ao alcance da vontade de qualquer pessoa.

A criação desses implantes cerebrais representou a maior revolução cientifica e social da historia humana e suas implicações teriam proporções inimagináveis. Muitos falavam que aquilo era um presente dos céus, outros pregavam a desconfiança. A humanidade estaria preparada para uma mudança tão repentina e drástica?

Nem todas as pessoas aderiram ao implante. Por mais maravilhosas que fossem as promessas de uma vida muito melhor, houveram aqueles que não aceitaram a nova tecnologia por medo e outros por motivações religiosas ou morais as mais variadas possíveis.

O primeiro ano após o Programa Construtor Universal ser implantado representou um ganho social impensável para a humanidade. Em pouco tempo as nações experimentaram uma equidade jamais vista em toda a evolução humana. O mundo vivenciava um estado de bem estar social de tal monta que, em um tempo recorde, muitos passaram a achar que finalmente o paraíso havia sido descoberto.

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Nunca se soube em que parte do mundo começou o fim de todas as coisas. Em algum momento impreciso a violência e a loucura tomaram conta do mundo. As Pessoas simplesmente passaram a apresentar comportamentos estranhos, violentos, chocantes e grotescos. Muitos matavam e morriam das formas mais estranhas e absurdas..

Criaturas bizarras surgiam do nada causando morte e destruição. A pequena cidade de Amarante, em Portugal, viu surgir um ser faiscante que a tudo queimava. A populosa Buenos Aires defrontou-se com hordas de criaturas pequenas e vermelhas que matavam qualquer coisa que encontrassem pela frente. Em muitos locais as pessoas ficavam andando sem rumo falando coisas ininteligíveis ou agindo como se estivessem em um surto psicótico coletivo.

Em todos os cantos do mundo surgiam monstros com os formatos mais estranhos e impensáveis. Suicídios inusitados, estupros, incêndios, homicídios e destruições em larga escala completavam o cenário.

Alguma coisa havia saído errado e o mundo caminhava agora para um lugar completamente desconhecido...

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Fernanda não conseguia entender porque o seu vizinho decidiu ficar o dia todo nu e se masturbando em plena rua. Aquilo era incompreensível para todos que conheciam aquele homem de meia-idade conversador e risonho e que nunca havia dado o menor indício de que tinha alguma doença mental. A coisa ficou pior quando seu cunhado ligou informando aos gritos que sua irmã havia morto o cachorro da família e estava comendo o pobre animal.

O marido de Fernanda consertava a cerca de sua casa quando começou a falar coisas que ninguém entendia, repentinamente foi até a cozinha pegou uma faca e enterrou-a em sua própria garganta.

Não houve tempo para quase nada. Em meio aos seus gritos, correria dos vizinhos e as sirenes da polícia pouca coisa Fernanda se lembrava. Agora ela estava escondida no porão úmido de sua casa, com uma criança a tiracolo, aguardando que alguma coisa inominável surgisse para dar fim a sua existência.

Sempre que se lembrava dessas coisas o seu corpo tremia, mas também agradecia aos céus o fato de nunca ter aceitado aquele maldito implante. Muitas vezes, no mais fundo do seu ser, também se perguntava se teria valido a pena não ter colocado aquela coisa em sua cabeça. O que adiantava isso agora? Não teria sido melhor ter mergulhado na insanidade? Pelo menos ela não teria que ver o inferno em que o mundo se transformou...

Para Fernanda aquela máquina, que muitos achavam ser um passaporte para o Jardim do Éden, era na verdade uma força demoníaca que materializava os desejos mais recônditos das pessoas, como se tudo o que estivesse encoberto em algum lugar obscuro da alma humana finalmente pudesse surgir em toda a sua plenitude. Ela não sabia por que pensava isso, mas acreditava que toda aquela insanidade e bizarrice vinham de algum lugar escuro e inexplicável dentro das próprias pessoas. Tudo o que restava agora de sua vida era lutar por sobrevivência e viver um dia por vez.

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Seu relógio de pulso lhe diz que é tarde da noite. Sua filha dorme pesadamente ao seu lado sem saber que não haveria muito mais dias para as provisões estocadas. Olhando para Elisa mais uma vez ela clama aos céus com as orações que sua mãe lhe ensinou. Uma terrível solidão invade a sua alma e ela passa a desejar que o rato novamente surgisse trazendo com ele aquele sentimento de alheamento da realidade...

Daqui a algumas horas irá amanhecer e as poucas réstias de luz irão invadir as frestas do porão. Sempre que um outro dia amanhece Fernanda sente-se mais forte. Por enquanto é hora de vigiar, mas chegará o dia em que elas sairão daquele porão escuro. Algo lhe diz que aquele mal irá desaparecer em algum momento e voltar para o lugar sombrio de onde nunca deveria ter saído.

- Mãe, já amanheceu? Eu tô com fome - Os cabelos desgrenhados de Elisa cobriam-lhe parte do rosto ao falar - Quando é que a gente vai sair daqui?

- Não sei, Elisa! Um dia a gente vai deixar esse lugar sim. Agora escova os dentes ali naquele canto que eu vou fazer um café pra gente tomar...

Tema : invenções científicas

* ID - Um dos conceitos fundamentais da Psicanálise. Seria a parte da estrutura psíquica formada por processos inconscientes. O Id consistiria na parcela mais instintiva da personalidade e não seria regido por padrões lógicos, valores morais ou éticos, sendo composto por desejos e pulsões primitivas.

** Este conto tem como principais referências para a sua construção o filme Planeta Proibido (Forbidden Planet), de 1956 e o romance A Cidade e as Estrelas (1956) , de Arthur C. Clarke.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 05/03/2023
Reeditado em 08/03/2023
Código do texto: T7733362
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