MASTERCHEFE DO ALÉM.

-"Você provou?!" Bernardo sentiu o rosto esquentar. Não era nada fácil ficar frente a frente com o renomado chefe Fogaça, em rede nacional no programa Masterchefe, da Band. -"Sim, chefe!" Ele respondeu, com olhar fixo no jurado que experimentava seu prato. Uma garfada apenas. -"O que tem aqui?" Bernardo gaguejando. O suor escorrendo. -"Camarão, espuma de manga, quiabo salteado com iscas de lula, açafrão, molho de soja e tomate cereja." Fogaça deu um passo atrás. Os outros jurados esperando a vez de experimentar o prato do moço de Recife. -"Tá ruim. Não limpou o camarão direito. A porta está aberta, se quiser ficar vai ter que melhorar." Bernardo fechou o punho, nervoso. Na sua opinião, era sua melhor atuação no programa. Os seis melhores cozinheiros no mezanino, onde ele nunca estivera nos seis primeiros programas da temporada. Sempre entre os seis piores candidatos ao título de melhor cozinheiro do famoso programa. O avental preto, com o símbolo do programa, estava suado. As luzes fortes do estúdio, a correria pra terminar o prato no prazo apertado. A escolha dos ingredientes. Paola Carossela, a argentina dona de restaurante na capital paulista e renomada cozinheira sorriu. -"Estou com medo." Bernardo sorriu. Ela pegou um pouco de comida no prato. O pano de prato na boca. Ela se afastou. -"Tá com saudades de casa? Das praias de Recife?" Ela voltou ao seu lugar. Era a vez do chefe francês. O rapaz tremia as pernas. Tinha se arrependido de fazer a inscrição do programa. Ganhou o avental por sua moqueca recifense mas abandonou os pratos regionais pra mostrar tudo o que rinha aprendido nos sete cursos de culinária que carregava no currículo. Bernardo trabalhava num quiosque a beira mar. Foi auxiliar de cozinha num restaurante em Salvador durante três anos. Vendeu um carro e foi pra França, onde lavou pratos antes de ser admitido como ajudante de cozinha num restaurante. Seis meses depois, estava de volta a Recife. O programa de culinária mais famoso do Brasil era a chance de mudar de vida. Incentivado pelos amigos, Bernardo resolveu se arriscar. -"Vai lá, você é bom!" Diziam os amigos após os banquetes que ele dava no apartamento da rua do Ouvidor. E ele acreditou mesmo que era bom, alruim." muito bom cozinheiro. O chefe Jacquin fez uma careta. Torceu o nariz ao mirar a criação de Bernardo. -"Falta tomperro...falta tudo. Falta você ir pra casa. Você não serve nem porteiro do meu restaurante, é." Bernardo foi educado. -"Obrigado, chefe." Ele se juntou aos demais candidatos a eliminação. Estava de novo entre os piores. Segurou as lágrimas. Tinha preparado camarão desde a adolescência e sabia do riscado. -"Bernardo. Você deixa o programa." Anunciou Fogaça, sem demonstrar surpresa e emoção. A apresentadora Ana Paula Padrão tentou motivar o rapaz. -"Eu provei, não tava ruim." Bernardo sorriu pra moça, antiga âncora do jornal da Globo. -"Quer falar alguma coisa?" Perguntou Paola. Bernardo não abriu a boca. Era o fim. O rapaz tirou o avental e saiu do estúdio. Sorria mas por dentro estava arrasado. Saiu da sede da emissora e pegou um táxi até a Paulista. -"Meu sonho era ter um restaurante aqui. É o fim." Entrou numa lanchonete e pediu uma coxinha e uma coca cola. -"Isso é comida de verdade, jurados de meia tigela." Estava nervoso. Um alto edifício de escritórios. Ele entrou. Vigésimo terceiro andar. Apertou o botão do elevador com raiva. O elevador parou no doze. -"Estou com Covid. Pega outro elevador, velho." Gritou ao senhor engravatado com pastas de documentos nas mãos. O último andar. O topo. Meteu o pé no portão e viu uma escada que dava pra laje. O parapeito. Os carros lá embaixo, pequeninos e parecendo de brinquedos. Olhou para o céu cinzento da metrópole paulista. Chorou tudo que podia ter chorado pouco tempo atrás no programa. O riso de Paola. A cara de nojo do francês Jacquin. A voz grossa e a barba do Fogaça. As palavras de Ana Paula. -"Não tá ruim." Bernardo socou a laje e quase quebrou a mão no concreto. Tinha vontade de socar aqueles jurados. -"Eu sou Masterchefe!" Gritou com todas as forças. O filme da vida passou na tela da sua cabeça naquele momento. Bernardo não viu o porteiro chegar com dois guardas civis. Os gritos deles não entravam por um ouvido e saiam por outro. -"Sai daí, rapaz. A vida é bela! Deus te ama e nós também." Bernardo deu um sorriso e um passo pra trás para o vazio. -"É o rapaz do Masterchefe, minha mulher assiste sempre." Gritou um dos guardas. Algumas pessoas viram um corpo caindo, pelas janelas dos escritórios. O toldo do prédio rasgou, não amortecendo a queda vertiginosa e horrenda do rapaz. O ruído seco do corpo na calçada. Os pedestres horrorizados. A avenida parou mas só por alguns segundos. A polícia chamada. O porteiro cobriu o cadáver com uma lona preta. A notícia da morte do candidato a Masterchefe ganhou só uma nota rápida no jornal da noite de outra emissora. Os jurados do programa sequer comentaram o fato. Os demais participantes estavam proibidos de falarem do assunto e citarem o nome de Bernardo. Sem parentes e sem contato de algum amigo próximo, Bernardo foi enterrado como indigente. Uma semana depois, Bernardo saiu, finalmente, do túmulo. As costas doíam muito e mal se colocava de pé. -"Rapaz, você tá feio. Parece que foi atropelado." Ele olhou em volta. -"Quem está aqui?! Quem é você?" A moça apareceu do nada. -"Sônia. Eu fui atraída pra cá, não sei porquê. Eu estou mortinha da Silva e parece que você também." Bernardo riu. -"Não me lembro de nada. Aqui é um cemitério." A moça olhou-o dos pés a cabeça. -"Adivinhão. É pra onde trazem os mortos mas essa ala é dos indigentes. Maluco, você não tinha família nem amigos? Não foi identificado." Bernardo sentiu a cabeça rodar. -"Não me lembro." -"Você tá morto, mané. Pode andar, levitar e até voar. Terá que aprender a dominar tudo isso. Pensa num lugar e vai pra lá num segundo, sabia?!" Bernardo estava muito confuso. Ele se afundou na terra da sepultura, com medo. -"Estou te vendo, maluco. Estamos noutra realidade, somos corpo e espírito. No nosso caso, só espírito agora. Aos poucos suas memórias vão voltar mas não poderá fazer mais nada já que morreu, bateu as botas." Bernardo gritou. -"Sai daqui, assombração." A moça riu. -"Eu, assombração? Olha pra mim e olha pra você, todo quebrado e sangrando. Tu que é assombração, Bernardo." O rapaz saiu. -"Como sabe meu nome?!" Ela deu de ombros. -"Sei lá, me veio na mente. Já te vi em algum lugar, na tevê talvez!" Ele ficou triste. -"Minha cabeça dói. Não me lembro de coisa nenhuma." Uma semana depois, Bernardo aprendeu, com Sônia, a levitar. -"Pensa numa roupa limpa e sua aparência vai mudar. O que pensar, vai acontecer." Ele sorriu. -"Mesmo? Até se vingar do Jacquin?!" Sônia deu um grito. -"Aham... você é o Bernardo do Masterchefe. Caraca moleque!" Ela o abraçou. -"Sua memória está voltando. Sentiu raiva e alguma coisa voltou. Vamos, sinta raiva, amigo." Bernardo se esforçando e as memórias voltando num passe de mágica. Recife e a infância, Salvador, Paris e a inscrição no programa. A alegria de ser escolhido no início da temporada. As decepções com os falsos amigos e outros concorrentes. Os pratos elaborados mas que não deram certo e culminaram na eliminação do programa. Sônia o amparou pois ele chorava muito. -"Cara, você se jogou do prédio." Bernardo estava arrasado. -"Por isso fui atraída pra cá. Fiz parte da segunda temporada e fui eliminada injustamente. Primeira eliminada fui eu. Minha padaria faliu e fiquei possessa . Seis anos depois tive um AVC e culpo o programa por isso. Aqui estou." Eles se olharam. -"Vingança!" Gritaram juntos. -"Paola. Vamos mentalizar a casa dela. Força, Bernardo." Sônia e Bernardo se viram no quarto da chefe argentina. -"Que fazem aqui? Sônia? Bernardo?" Gritou Paola. -"Vai ter que provar nosso prato, querida." Bernardo estava vestindo uma roupa de chefe francês. O avental de um famoso restaurante de Paris. Sônia era sua assistente. Bela com uma roupa toda branca e o chapéu de chefe. Ela tirou a tampa de inox do prato. -"Meu pai. O que é isso?" Bernardo riu. -"Um prato elegante e caro. Um manjar dos deuses feito especialmente pra jurada mais amada do Masterchefe. Paola cortou a carne e comeu. Uma batata. Uma cenoura. Aspargos e cogumelos macios. -"Hum, magnífico. Nunca comi nada igual. Soberbo. Bernardo, suba ao mezanino." O rapaz agradeceu. As larvas começaram a sair da carne e caiam do prato. Insetos e moscas devoraram os legumes. Paola quis cuspir mas larvas saiam de sua boca. Ela caiu desmaiada. Bernardo e Sônia davam longas e tenebrosas gargalhadas. Pensaram em Fogaça e logo estavam na cobertura onde o chefe estava hospedado. -"Bernardo?! Sônia?! Quem permitiu que entrassem?" Bernardo estava elegante, vestido como um real cozinheiro da rainha da Inglaterra. -"Trouxemos um prato para nosso querido jurado. Uma jóia da culinária européia." Sônia tirou a tampa do prato. -"Olha. Escolheram a porcelana correta dessa vez. Um bife Wellington? Vocês provaram?!" Fogaça cortou o pão que envolvia a carne. -"Sim, chefe." Bernardo e Sônia responderam ao mesmo tempo. O jurado comeu com gosto. Repetiu a garfada. -"Não vou dizer que está fantástico pois faria propaganda da outra emissora do plim plim. Acho que temos os campeões dessa temporada. Genial. Se a rainha comesse isso, ela daria cambalhotas de alegria. Subam ao mezanino." Bernardo e Sônia agradeceram. Fogaça engasgou ao ver as larvas e formigas saírem do pão. Uma mão saiu da carne e grudou no pescoço do jurado marombado. -"Coma tudo, Fogaça! Coma!" Gritava Bernardo. Fogaça desmaiou. Ele e Sônia riam da cena. -"Jacquin!" Gritou Bernardo. -"O melhor estava reservado pro final. O francês gordinho de língua afiada pra humilhar os cozinheiros. Encontraram o francês dormindo, na sala dos fundos de seu restaurante. Tinha dado uma recepção pra trezentas pessoas e estava muito cansado. -"Acorda, francês. Hora de provar nossa iguaria." Jacquin viu o casal todo de branco. -"Bernardo? Que faz com a roupa de chefe do meu restaurante?!" Bernardo riu. -"Eu consegui, oras. No astral sou o que quiser, até chefe da sua espelunca. Ele levantou a tampa e mostrou o prato. -"Pato com laranja e creme brule de sobremesa." Jacquin sorriu. -"Culinária francesa pra me agradar, einh." Uma garfada. Outra garfada e o francês já chorava. -"Pato perfeito, no ponto certo. Eu não faria igual. Agorra, o sobremesa." Bernardo e Sônia de mãos dadas, esperando o julgamento. -"Lembrei da França, da comida da mamãe, da primeira namorada. Isso é colossal. Isso vai levar vocês pra final. Maravilhoso." Jacquin passou o lenço nos olhos e viu centenas de larvas saindo do pato. A ave pulou do prato e saiu correndo. Bernardo e Sônia pegaram o francês pelos suspensórios. Bernardo vomitou larvas sobre o jurado, desmaiado no chão. Bernardo e Sônia tinham se vingado dos jurados. Fogaça, Paola e Jacquin se reuniram pra discutir a pauta do programa. -"Está com uma cara péssima, Fogaça." Ele riu. -"Tive um sonho ruim, estranho. Não lembro direito mas acho que estou pegando pesado com os candidatos." Paola disse ter a mesma sensação. -"As palavras tem poder, não?! Não devemos baixar o nível mas reconhecer o esforço deles. Eu pego pesado as vezes mas é para melhorarem." Admitiu o chefe francês. Bernardo tomou um tabefe na nuca. -"Acorda, molenga. Tem cliente esperando." Bernardo se levantou. -"Já vou, Péricles. Trabalhei no quiosque de Beto a noite toda, viu? Estou aqui só pra lhe ajudar no carnaval." Ele pegou a comanda com o pedido. Em minutos empanou peixe e o fritou. O papel toalha. O limão bem cortado. Em segundos fez a caipirinha. O guarda chuvas de enfeite no copo. O gelo. -"Cara, você estava tendo um sonho maluco." Disse Péricles, rindo muito. Bernardo saiu do quiosque e ganhou a areia da praia de Recife. Entre as quatro amigas na mesa protegida pelo guarda sol, ele reconheceu Sônia. Lembrava dela das primeiras temporadas de Masterchefe mas ficou calado. Ele voltou a mesa delas, tempo depois, pra levar outras bebidas. -"Rapaz. Isso está divino. Parabéns." Disse uma das moças. -"Já pensou em se inscrever no Masterchefe?" Perguntou Sônia, sorrindo pra ele. -"Eu?! Já mas é melhor não. É muita humilhação com os participantes." Ele se retirou, com a bandeja no peito. Sônia deu um sorriso amarelo e chamou as amigas pra água. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 27/03/2023
Reeditado em 27/03/2023
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