Reflexos

O sinal irrompeu o silêncio e alertava o final da aula, as crianças correram como numa prova de atletismo, indo o mais rápido que podiam, algumas mochilas abertas davam o tom da vontade de irem embora, as férias haviam chegado e era sempre um momento de alegria, porém depois da última semana o clima andava tenso o que justificativa toda aquela vontade de ir para bem longe daquela escola.

Jamie quase não percebeu o que ocorria ao seu redor, vidrado olhando o pátio pela janela, Júlio ainda estava lá no mesmo local, continuava com um semblante vazio e sangue seco que havia escorrido pelos ouvidos, quando caiu após uma brincadeira boba e deu com a cabeça no chão parecia um tombo qualquer, talvez ele ainda estivesse vivendo aquele dia e tendo a esperança de ir para casa, não Jamie sabia que os mortos não tinham mais nada, nem sentimentos e muito menos amarras, poderiam responder qualquer pergunta que fosse feita sem mentir, mas não havia nada a ser perguntado ao Júlio, sua imagem começava a sumir e daqui alguns dias não teria mais nada dele neste mundo.

Desde o último verão que Jamie aceitará seu dom ou como ele mesmo dizia maldição, no começo morria de medo e achava que queriam lhe fazer mal, porém não demorou a perceber que aquelas pessoas ou o que havia sobrado delas nem sabiam que estavam mortas, estavam em todos os lugares, se ele poderia dizer que aprendeu algo era que fazer perguntas aos mortos não era um jeito fácil de descobrir as coisas.

Jamie morava com a mãe, Claudia era colunista e ganhou renome nos chamados " movimentos conservadores modernos " explicava sempre ao filho como pessoas de bem lutaram pelo mundo que ele vivia, o pai militar morreu antes que ele pudesse ter qualquer lembrança, mas haviam fotos e medalhas espalhadas pelas paredes da sala o que dava a ele o peso da sua contribuição a todo aquele cenário.

-Já tomou banho Jamie?

-Já mãe se eu não tomo a senhora arranca meu coro. Respondeu enquanto riu e sentou-se a mesa.

-Aí aí viu menino, se o teu pai estivesse aqui ele iria arrancar essa tua orelha, sabe que fiquei pensando naquele menino da tua escola hoje, que coisa boba, já pensou morrer numa coisa tão idiota, o que você acha da gente viajar nessas férias sei lá andar sabe só eu e você?

-Como se a senhora saísse né mãe.

Desde que tornou-se viúva Claudia foi se fechando como uma aranha ao perder a vida, tirando o filho e o jornal poucas coisas ainda a motivava, mesmo depois de tudo que ela e o marido fizeram, talvez numa ótica diferente tudo fosse questionado, mas esperavam o que? Deixar aqueles desordeiros destruírem tudo? E as crianças o que seriam delas se não tivéssemos tomado as rédeas, sim valia a pena tudo que foi feito.

O barulho da rua demonstrava que algo não estava normal, entenda bem, tirando as crianças que brincavam na rua o resto do tempo era de um silêncio até certo ponto assustador, mas não naquele dia. Ao acordar pela manhã com a conversa que beirava a janela ele olhou e mal conseguiu contar quantas pessoas se amontoavam como se brigassem para ter um espaço numa exposição de arte.

-O seu Paulo parece que se matou, velho estranho. Disse Carol enquanto os policiais iam saindo com o corpo do pobre senhor enrolado num plástico prateado.

O velho era tão ranzinza que por muito tempo diziam que ele era um vampiro, mal viam ele na rua, mas parecia estar sempre assustado, o homem era alto quase um poste e tão magro que parecia que poderia quebrar a qualquer momento, porém tinha aquele olhar que todas as crianças da rua tinham pesadelos, com o tempo as fofocas diziam que ele havia sido um militar de influência, mas que era tão casca grossa que tiveram de tirar o homem a força antes que fizesse algo tão errado que pudesse manchar a imagem dos outros.

Jamie poderia não confessar, mas sempre sentiu medo dele também quando era pequeno, no entanto e se fosse verdade o que diziam sobre ele, talvez conhecesse seu pai, quem sabe poderia até contar histórias da época que combateram os rebeldes e como seu pai havia morrido, sim sua mãe já havia lhe contado isso, mas mesmo assim o que é uma história se não existe uma pessoa que possa confirma-la.

Quando anoiteceu Jaime saiu pela janela do quarto, a altura até que não era tanto, mas teve um medo danado do que sua mãe pensaria se o pegasse saindo aquela hora da noite, ele sempre foi obediente e sabia do toque de recolher das vinte horas, mas talvez fosse o único momento que poderia entrar na casa do Senhor Paulo sem que ninguém o visse e achasse que estaria cometendo algo de mais errado.

A janela dos fundos estava aberta, na vizinhança não havia o costume de trancar as casas, faziam anos que não se falavam em assaltos, muito menos assassinatos, as vezes algumas pessoas desapareciam, mas era de conhecimento popular o tanto de gente que viaja para longe para recomeçar algo além daquela chatice de cidade.

A casa era extremamente organizada, haviam móveis antigos e que pareciam tão pesados que mal conseguiria imaginar a idade que tinham, queria ascender as luzes, mas chamaria demais a atenção e alguém poderia achar que estavam saqueando a casa, então foi devagar até o quarto, ele estava lá, não viu quando a polícia chegou, mas tinha a certeza que viram a mesma cena do que se apresentava ali, pendurado por uma corda presa ao batente do teto, usando uma cueca bege apenas e os olhos tão vermelhos que não conseguia nem distinguir para onde estava olhando.

-Senhor Paulo eu sou o Jamie o senhor lembra de mim ? Não sabia se ele ao menos o reconheceria, sim eram vizinhos desde que poderia se lembrar, mas nunca havia sequer dito o próprio nome mesmo quando gritava enquanto jogava bola na rua.

-Jamie, Jamie, sim sim filho do Antônio, eu quero que você suma da minha casa moleque. Sim o maldito havia levado até depois de morto a mesma simpatia de sempre.

-Isso sou eu mesmo, então o senhor conheceu mesmo o meu pai, caramba sabe que achava que isso era mentira, o senhor era um militar mesmo ?

-Eu já fui muita coisa moleque, vocês não entendem o que tem, não sabem e nem imaginam o que precisamos fazer para dar numa bandeja de prata o que vocês hoje vomitam sem consideração alguma. A voz dele começava a ganhar uma entonação diferente como se todo o rancor misturado com uma vitalidade que não condizia com sua aparência tomava conta dele.

-Seu Paulo eu sinto muito de verdade, mas preciso saber do meu pai o que aconteceu com ele, por mais que eu pergunte ou não sabem dizer ou é sempre a mesma coisa de que era um herói sabe.

-Moleque o seu pai era um idiota, quem em sã consciência jogaria aquele jogo duplo e acharia que sairia ileso, sorte sua foi a puta da sua mãe, caso contrário você estaria junto dele.

A cada palavra o ar parecia se tornar mais pesado, começava a sentir dificuldade para respirar, nunca havia presenciado uma sensação tão ruim, era como se aquele homem conseguisse machuca-lo mesmo não estando mais vivo.

-Seu Pai foi morto como todo comunista deveria ser menino. Meu pai não poderia ser um rebelde, ele era um herói, as medalhas, as fotos e como esse velho poderia dizer algo do tipo, mas ele já estava morto, não existia necessidade de mentir e mesmo que quisesse não era algo que poderia fazer.

Ao se virar ele tentava esconder as lágrimas que caiam, mas quanto mais se esforçava parecia cada vez mais inútil conter todas elas. -As vozes moleque, elas não param, eu queria que elas me deixassem em paz, mas elas não param nunca.

Talvez devesse ter perguntando o que as vozes queriam, mas no fundo não era algo que quisesse levar consigo, o que tivesse acontecido para aquilo ele tinha certeza que não deveria mais ser vasculhado.

Quando descobriu que poderia ver pessoas que já haviam partido a primeira coisa que pensou foi em contar a mãe, sábia que ela teria algo inteligente para dizer como sempre fazia, mas e se ela achasse que ele estava doente? as vezes sentia vergonha do que escondia dela, mas com o tempo não contar foi se tornando tão natural que mal se permitia lembrar-se de que ela não sabia.

-Seu leite vai esfriar filho. Disse enquanto foleava o jornal

-Mãe o meu pai era um rebelde ? a pergunta foi direta, mesmo que já soubesse a resposta ele precisava de alguma forma mostrar que não havia mais o que ser escondido.

Ela abaixou o jornal e o encarou, o tempo parecia estar parado, e ela talvez tenha ficado uma eternidade caçando respostas para aquela pergunta, de alguma forma e isso deveria ser essas coisa de mãe, mas ela sentiu que ele já sabia, o quanto talvez ainda precisasse de um tempo para descobrir, porém ela sabia que ele era inteligente demais para não perceber as coisas.

-Quem te falou isso Jamie ? Aposto que foram essas velha fofocando na rua.

-O Senhor Paulo me contou.

-Você falava com aquele velho maluco? Quantas vezes eu disse para você que ele era estranho meu Deus.

-Mãe eu falei com ele ontem. As lágrimas voltavam e começou a chorar, chorou mais em uma semana do que já havia feito na vida toda.

-Ele me contou que o mataram como rebelde e que eu só não morri por causa da senhora. Claudia ficou tão confusa que levantou e veio até a cadeira do filho, se ajoelhou e perguntou porque estava buscando aquilo, cada coisa que ia explicando o semblante dela começava a demonstrar uma fraqueza que não contrastava com a pessoa forte que sempre demonstrou, era como se ela sentisse um medo tão grande que mal sabia como lidar.

-Filho a gente precisa ir ao médico eu não sei o que você tem e eu não sei, não sei o que falar. Ir ao médico não fazia qualquer sentido, porém para uma mulher tão sensata nada daquilo parecia ter algum nexo.

-Mãe a tia disse que sentia muito e que queria ter pedido desculpas, mas que você não deixou ela falar, que virou as costas e ela sentia muito por tudo. Quando a tia de Jaime morreu após um ataque cardíaco o garoto encontrou sua tia antes que ela partisse de vez, ela contou sobre como era difícil lidar com uma pessoa que não demonstrava fraquezas, as duas haviam brigado a anos e ele nunca soube o motivo, queria ter contado antes, mas e se não desse certo ? talvez ele só não quisesse revelar o quanto de tristeza poderia haver em sua mãe.

-Eu sei filho, eu também sinto muito, eu queria ter falado com ela, mas eu precisava proteger você Jamie. Ela soluçava enquanto questionava tudo, mas não importava o que eu dissesse ela sempre perguntava sobre até onde eu sabia das coisas.

A relação com a mãe nunca mais foi a mesma, mesmo que ainda sentisse latente o amor dela sobre o filho, porém ela tinha sempre aquele ar de tristeza, quando ingressou na polícia ela disse que seu pai mesmo com tudo estaria feliz. Os anos lhe davam destaque na corporação, em pouco tempo já era responsável por todo setor de investigação, descobriu que as pessoas não sumiam, mas que para um mundo melhor você precisa separar o joio do trigo, se tornou um caçador nato, mesmo que ninguém além da própria mãe saberia que usava do dom que tinha para interrogar os mortos, foi assim que desencadeou a destruição de uma rede rebelde que poderiam colocar em risco toda a sociedade que construíram, que minha mãe construiu, se você vem de uma linhagem tão forte talvez possa mudar seu destino, porém alguns apenas seguem o pré-determinado

-Jamie é do hospital no telefone puxa ai a ligação. Quando atendeu seu coração pareceu congelar, mesmo que distante da mãe ele mantinha conversas diárias, ela era seu mentor, a pessoa que o ensinava como agir, fez de forma dura o homem admirado que era, não tocavam nos assuntos do passado, mas respeitavam como aquilo pode ajudar a manter aquela utopia e quando o hospital lhe pediu para comparecer com urgência ele já sábia o que iria encontrar.

Quando entrou no quarto do hospital um corpo inanimado que nada mais representava que uma casca vazia e sua mãe sentada na ponta da cama, ele sabia que não existiria mais amor naquele semblante, não existia muita coisa na verdade, e só queria terminar com aquilo e deixar que ela pudesse descansar em paz.

-Mãe eu queria tanto que a senhora aguentasse mais um pouco, logo não existirá mais resquícios de perigo, queria que estivesse comigo quando a última esperança rebelde for excluída e eu terminar o que a gente tanto almejou.

Ela olhava e ele poderia jurar que em algum lugar ela se orgulhava, um filho é a imagem de sua criação, os garotos tentam imitar seus pais, mas não existia um pedaço dele que não fosse espelho daquela mulher, mesmo que precisasse omitir alguns traços, o trabalho de manter a ordem as vezes se torna limar até seus instintos mais íntimos.

-Sabe mãe meu pai estaria orgulhoso de tudo que você conseguiu.

-Seu pai teria vergonha de você Jamie, ele nunca desejaria ver você onde está, um fraco como ele não merecia viver. A voz serena parecia dilacerar lentamente o rapaz, por muitos anos que pensou em perguntar o que havia acontecido de fato com ele, mas não sentia que deveria.

-Quando descobrimos que seu pai era um comunista a primeira ideia era executar ele e toda família que ele tinha, sim seu pai havia se envolvido tanto com aquela pária que já tinha constituído uma vida alternativa, como era burro acreditar que poderia dar certo algo do tipo, decidimos transformá-lo num herói, as pessoas precisam de narrativas que tornam suas atrocidades ações legítimas, mas ele tinha você, eu sempre quis uma criança e Deus me negou a genética, porém você estava lá, queriam apagar tudo, mas eu sabia que você não tinha culpa, só precisava do direcionamento correto, uma mãe como aquela puta que seu pai arrumou só condenaria você. Quando parou de falar eu entendi o quanto ela se anulou para me dar uma chance, eu não tinha o sangue dela, mais que isso eu tinha seus ideais e não teria como deixá-la mais satisfeita, não derramei uma única lágrima, meu pai não merecia e eu ainda tinha muito o que fazer.

Conto que fiz como homenagem ao livro Depois de Stephen King onde um menino consegue falar com os mortos porém se a criação dele fosse num mundo mais intolerante e assolado por uma paz comprada.

Eduardo Haraki
Enviado por Eduardo Haraki em 22/05/2023
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