A Morte Simbólica

Ela irrompeu pela porta após um estrondo ensurdecedor. Talvez com um pontapé ou algum objeto pesado conseguira quebrar a maçaneta. O fato é que ela estava ali, de pé, diante de seu próprio criador, a sorrir. Enquanto escrevia uma nova estória, a única reação do escritor foi, de olhos arregalados e trêmulo de medo, tartamudear algumas palavras de difícil compreensão.

- Surpreso? - ela perguntou, ao percebê-lo encarando-a de cima a baixo.

- C-como pode isso ser? Você não existe - exclamou ele, horrorizado. - Eu acabei de pensar isso...

Ela hesitou ao dar um primeiro passo sala adentro. Ele permanecia imóvel no sofá. Por fim, ela sentou-se em uma poltrona diante dele.

- Estou cansada, sabe? - começou. - Em todas as suas histórias - quando você torna a escrever

- eu morro. Todas! Sem exceções!

- Mas Julia... a tua morte é simbólica! Não é nada pessoal.

- Minha vinda é extremamente pessoal, Guilherme - exclamou ela. - Nessa história aí - apontou ela aos calhamaços sobre a mesa de centro da sala - sinto que irei morrer. É o único desfecho possível.

- Não, deixe-me explicar: você não irá morrer, mas desaparecer após...

Colérica, Julia o interrompeu:

- Eu não quero morrer, nem desaparecer... não mais!

Ela levantou-se de súbito, armou-se com um objeto cujo autor não conseguiu decifrar qual seria e desferiu-o com extrema violência em sua cabeça. Ele caiu, desmaiado, sobre o sofá.

Ao despertar, percebeu-se atado a cordas sobre sua própria cama e com a boca cheia de meias usadas - que impediam-no de gritar e pedir por socorro. Estava sozinho, em desespero. Esperava que tudo aquilo não se passasse além de um sonho - ou melhor, um pesadelo.

Instantes depois, Julia adentrou a porta do quarto munida com alguns objetos cortantes. Sorria de um modo estranho, malicioso. Seu olhar penetrava os do escritor como agulhas voadoras.

- Escolha - mostrou ela uma faca, um cutelo e um espeto de churrasco - a forma como irá morrer.

Ele começou a espernear-se, embora estivesse tão bem atado que mal se mexesse enquanto transparecia seu desespero. Os olhos esbugalharam-se, a fitar a faca e o cutelo. Apercebida disso, Julia separou os dois objetos e aproximou-os a Guilherme.

- Anda, aponte com a cabeça qual dos dois quer que eu use!

O autor chorava copiosamente - tamanho o medo que sentia. Julia, então, impaciente, atirou o cutelo para longe.

- Adeus, Guilherme - exclamou, a enfiar-lhe a faca na barriga. O sangue começou a jogar, mas não impediu a violência com que a personagem-antropomorfizada desferisse inúmeros golpes em seu criador. Tamanha a violência das facadas que podia-se ouvir a lâmina penetrar e cortar a carne, a atingir os órgãos internos de Guilherme.

Ele tombou à esquerda e seu corpo morto rolou até atingir o chão. Uma cena terrível. Julia deliciou-se com o que viu. Ela, contudo, começou a desaparecer como se num passe de mágica. A faca - que estava em sua mão - caiu em direção da porta.

Uma ventania derribou as folhas do conto que jaziam sobre a mesa de centro.

A polícia nunca descobriu a autoria do crime nem as motivações que levaram a tal ato de violência.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 31/05/2023
Reeditado em 31/05/2023
Código do texto: T7801766
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