- P O N T O C E G O - IOLANDINHA PINHEIRO

Um conto para comemorar oito anos de Recanto das Letras, e sessenta e cinco mil leituras. Obrigada a cada um de vocês que fez parte deste dia.



 

Depois de vinte anos de cegueira absoluta, voltei a enxergar.

Havia perdido a visão aos cinco anos de idade e em todos os exames feitos à época, os médicos nada detectaram.

– É psicológico, eles diziam.

Depois de ficar cega, precisei aprender tudo novamente. Como andar sem esbarrar nas coisas, reconhecer sinais através dos outros sentidos, suportar viver na solidão eterna de não poder ver nada ou ninguém.

Chorava todos os dias e desejava estar morta. Aos poucos, os lugares, os rostos, objetos, árvores, tudo ia se esgarçando no tecido cada vez mais fino das minhas lembranças. Por causa da cegueira, tivemos que sair da roça minúscula onde havíamos vivido até então, e foi desta forma que perdi o resto das referências que tinha.

A minha nova vida na cidade grande se resumia ao instituto dos cegos, às idas ao hospital e à presença da minha mãe. Nela eu guardava todo o amor que ainda sentia, alguma esperança e o consolo de poder sentir o carinho de alguém por mim. Era ela que me acalmava dos pesadelos assustadores que tinha, e foi graças a ela que descobri um novo sentido para viver.

Por insistência de minha mãe comecei a ter aulas de música e depois de alguns anos de estudo, consegui me tornar uma violoncelista de sucesso.

O tempo me fez encontrar sossego nos dias invisíveis, mas plenos de sabores, cheiros e principalmente, nos sons. Um mundo à parte ao qual eu pertencia como sua única habitante. Talvez fosse até feliz dentro dos limites estreitos que dispunha, mas chegou o dia em que a terrível luz voltou para atormentar a minha vida.

Foi durante uma apresentação que tudo aconteceu. Eu estava completamente concentrada em harmonizar meu instrumento com o resto da orquestra, quando uma luminosidade intensa atingiu meu rosto.

Senti o impacto inesperado e desagradável que me forçava a apertar os olhos e desejar ter as mãos livres para poder escapar daquela invasão iridescente.

Não me lembrava de como era poder ver as coisas. Depois de alguns minutos fui me acostumando com o brilho ao redor, as cores e as formas, porém, ainda eram um universo caótico em minha cabeça. Fui levada pelo nosso patrocinador, e instantes depois eu já estava no hospital aguardando o oftalmologista concluir o seu trabalho.

Gradativamente meus olhos se adaptaram a um novo estado, após vários exames o médico me liberou para ir embora. Tudo o que eu queria naquele momento era ver a minha mãe de novo. Olhei para o corredor, mas ela não estava lá. Demorei para entender que a mulher de cabelos grisalhos e semblante cansado e me encarando era aquilo em que minha mãe havia se transformado. Uma culpa imensa e a saudade de tudo que havia perdido me atingiu como uma flecha, nunca mais veria a mãe jovem de cujo rosto me recordava, nunca mais recuperaria aqueles anos passados na escuridão.

Não demorou para que eu enxergasse quase com perfeição. Eu diria até que enxergava muito mais nítido do que no tempo em que ainda não havia ficado cega. Tudo era profundamente belo e detalhado.

Passadas duas semanas que voltara a enxergar, fomos a um shopping para comprar roupas novas. Entramos em algumas lojas e escolhemos as peças. Enquanto a vendedora embrulhava nossas compras, percebi que ela possuía um defeito na mão esquerda. Não um defeito qualquer, mas uma ferida estranha e tão aberta que me permitia ver seus tendões e ossos. Minha cara de perplexidade deve ter chamado a atenção da moça e ela falou comigo.

– Algum problema?

Quando olhei então para o seu rosto não pude conter o grito. A pele dela havia sumido e eu podia enxergar cada músculo se movendo enquanto os olhos sem pálpebras moviam-se meio soltos nas órbitas descobertas.

Saí correndo dali e logo que encontrei a minha mãe, pedi para ir embora imediatamente. Estava apavorada. Naquela noite voltei a ter meus terríveis pesadelos, os mesmos que tinha quando era criança e um monstro corria atrás de mim com uma pá. Fomos ao médico que fez questão de trocar toda a medicação prescrita e passou novos exames, sem que nada de irregular fosse detectado.

Na segunda-feira da semana seguinte fui a uma reunião com o maestro do meu grupo. Ele estava muito curioso e fez várias perguntas sobre o que eu estava sentindo. O escritório ficava no quinto andar de um prédio comercial no centro da cidade. Quando peguei o elevador para descer, reconheci o velho ascensorista pela voz. Naquele dia, enquanto descíamos, vi que era careca quando retirou o quepe vermelho combinando com o uniforme elegante. Conversávamos amenidades quando notei que sua cabeça mudava gradativamente de cor, do bege claro natural para uma cor laranja que irradiava do seu corpo inteiro. Meu coração batia freneticamente pelo medo dele se transformar em algum tipo de monstro. Mas a cor laranja apenas se expandiu formando uma espécie de halo em torno de seu corpo, até começar a esmaecer gradativamente. Saí do prédio o mais rápido que pude e fui correndo até uma pracinha para me acalmar. Do banco onde estava sentada vi o mesmo fenômeno acontecer com outras pessoas, porém as cores que saíam de seus corpos variavam de uma pessoa para as outras.

O tempo só fez os sintomas se agravarem cada vez mais, ao ponto de não conseguir enxergar mais ninguém no seu invólucro humano de normalidade. Via passarem diante de mim anjos e demônios, não sabia mais quem eram, e sentia pavor de um dia não conseguir mais reconhecer minha própria mãe. Parei de estudar e trabalhar e as ideias suicidas voltaram a fazer parte dos meus pensamentos.

Contei tudo para a minha mãe e procuramos ajuda tanto na ciência quanto na espiritualidade. Uma esperança surgiu com um neurologista que havia criado um método inovador para controlar episódios de alucinação. O médico fazia o procedimento de forma gratuita, mas era preciso pagar a equipe e a sala de cirurgia.

Nunca teríamos todo aquele dinheiro, e diante de tudo o que estava acontecendo eu já havia me retirado da orquestra e vivíamos agora da aposentadoria bastante limitada que mamãe recebia. No dia seguinte quando eu fui ao seu quarto ela estava em pé em um banco, procurando algo na parte de cima do seu armário de roupas. Então tirou um envelope da pilha de documentos, e desceu sorrindo.

- Olha isso aqui, e agitava um documento de algumas folhas. Era a matrícula do sítio onde vivíamos antes de vir morar na cidade.

- Vamos vender!

Não vi um único traço de hesitação em seu semblante. Estava disposta a se desfazer de seu passado, da casa onde havia morado desde criança para me curar. Sempre havia amado a minha mãe, mas naquele momento eu senti a dimensão do que ela sacrificaria por mim.

No mesmo dia ela entrou em contato com um corretor e explicou a ele como chegar ao local. Na manhã seguinte nós partimos.

Não calculei o tanto de quilômetros que dirigimos durante a viagem, sei que era o final da tarde quando viramos em uma estradinha vicinal tão estreita que era possível tocar nos galhos das árvores que cresciam na beirada.

O caminho ia ficando familiar à medida que me aproximava da casinha que era o nosso destino. Tinha certeza de que já havia morado ali.

Mamãe apertou a buzina algumas vezes, como ninguém apareceu ela foi até a porteira, procurou uma chave no arbusto baixo que crescia encostado nas toras, e abriu o cadeado da corrente.

O cenário de todos os meus pesadelos era aquele. Olhei para a minha mãe sem saber se deveria sentir medo. Descemos do carro caladas.

Fiz um café e abri o pacote de biscoitos que havíamos trazido. A casa não estava em mau estado. Durante os anos que vivemos na cidade, mamãe havia pago uma pessoa para manter tudo limpo e em ordem. Sentamos à velha mesa e ficamos em silêncio. O sol terminava de se pôr, e as lâmpadas fracas pelos cômodos eram um convite para o sono.

Fui até o meu antigo quarto e a cama pequena e estreita deixava meus pés do lado de fora. Do quarto ao lado eu ouvia o ressonar tranquilo da minha mãe enquanto dormia.

A chuva começou a jogar mansamente as suas águas sobre o velho telhado e a sua música foi me levando a um sono profundo e cheio de esperanças.

No dia seguinte minha mãe acordou muito cedo e quando levantei ela já estava na cozinha instalando o botijão de gás que havia trocado pelo seco no nosso fogão.

Esperávamos o corretor para o almoço, mas já eram duas horas da tarde e ele não aparecia. Tentamos ligar mas os celulares não respondiam. No local onde o sítio ficava não havia cobertura.

Às quatro mamãe resolveu ir até a vila para ligar de um telefone público. Fiquei esperando sentada na cadeira da varanda mas ela demorava a voltar, então adormeci, e sonhei.

O crepúsculo se transformava em noite quando vi uma silhueta se aproximando da porteira. Era uma criatura alta, corpulenta e um pouco encurvada.

Senti um arrepio percorrer meu corpo quando reconheci. Era o ser que me assombrava nos pesadelos. Ele veio vindo lentamente em minha direção e depois correu. Fiquei atordoada pois a minha vista deficiente prejudicava meus movimentos. Corri para me esconder no mesmo lugar onde ficava quando era criança. Pouco depois eu o vi entrando, suas patas com grandes unhas arranhavam o piso de madeira, o focinho farejava, me procurando sob a cama. A enorme cabeça de olhos amarelos tentava alcançar a minha perna. A boca invadindo o curto espaço entre meu corpo e sua garganta faminta.

Fechei os olhos e gritei. Gritei com a voz fina de criança, as pernas pequenas se agitando para bater na mão grande de dorso peludo que me puxava pelo tornozelo.  Fui retirada do meu esconderijo e jogada sobre a cama com violência. Desmaiei. Depois de algum tempo abri os olhos sentindo o frio do vento forte e gelado que balançava as cortinas e as milhões de gotas de chuva que entravam pela janela e molhavam meu pequeno e indefeso corpo, tão absolutamente vulnerável. O monstro havia ido embora.


Ouvi um rangido nas dobradiças de ferro na porteira lá fora. Ouvi gritos e pancadas. Quis ir ver o que acontecia, mas meu corpo dolorido não permitia que me levantasse.  Não sei precisar quanto tempo passou até que eu conseguisse ir até lá fora a tempo de ver um corpo sendo empurrado para dentro de uma cova rasa. Então me aproximei e vi o monstro no fundo do buraco, enquanto ouvia gritos de alguém que repetia nos meus ouvidos:

- Você não viu nada, você não lembra de nada, esqueça tudo!

Acordei, finalmente, do meu último pesadelo, acordei com a voz da minha mãe me dando bom dia. Pensei em perguntar para ela onde estivera e sobre as coisas com as quais eu havia sonhado, mas entendi que não precisava.  Depois de todos aqueles anos escondendo a verdade de mim mesma, meus olhos e minha memória se abriam para a redenção final.

Fui até o jardim e olhei para a roseira que fenecia onde havia sido plantada. Era uma terra ruim para qualquer planta. Naquele local, sem cruz, sem lápide, estava enterrado o
meu avô, e era ali que para sempre estaria. Esquecido e sepultado junto com seus crimes.

Fomos embora sem vender o sítio.


Iolandinha Pinheiro.