AS CAÇADORAS DE SOMBRAS

Gertrudes acordava todos os dias, exceto aos finais de semana, às 05 da manhã. Colocava sua roupa de ginástica, seus tênis caros e enchia sua garrafa d’água. Fazia uma caminhada de 10 km ida e volta. Nesse dia, ela escolheu uma playlist dos anos 80 e embalada por: Take on Me do Aha, iniciou uma corrida de aproximadamente 10 minutos.

Na volta ela passou na verdureira, comprou frutas, legumes e coisas para o café. Claro que teve esse caso, do moleque, que a irritou muito, a chamando de tia, só porque demorou um pouco entre escolher os sabores de chicletes sem açúcar e pagar a conta. Mas tentou não levar para o coração. Embora a visualizasse indo atrás dele até o carro da mamãe que o esperava e arremessar a sua cabeça contra o vidro perguntando: Quem é a tia agora, pirralho?

Tomando seu café, não deixava de pensar, entre os goles da bebida e as mordidas no pão, o que faria agora que concluiu, com as gravações da câmera de segurança instalada há um mês, que como desconfiava, foi mesmo a Mônica quem matou o seu gato Hades?

Nesse dia, no salão, Gertrudes dispôs o seu material de trabalho sobre a bancada e deixou tudo pronto para abrir a loja. Isso ficava a cargo de Perla, mas ela foi dispensada mais cedo no dia anterior, reclamando de dores e avisou ao seu chefe, que por sua vez avisou a Gertrudes sobre o resultado dos exames: dengue.

Quando a sineta ressoou, ela já imaginava que era a Mônica e buscou conter a raiva, embora fosse difícil para ela ser tão falsa quanto a rival.

—Bom dia, amiga. E a Perla, heim? Nossa, que coisa. Espero que não seja a do tipo mais grave.

—Tá sério mesmo essa situação. Só de clientes nossos, três pegaram essa desgraça também.

—E por falar neles, tá chegando aí o nosso primeiro. —Replicou Mônica, com um sorriso largo e reluzente, expondo seus bem cuidados dentes, que como pérolas, decoravam o conjunto de lábios carnudos e rosados.

—Pois não, senhor?

—Minha jovem dama. Permita-me, —Insinuou o homem, fazendo a reverência, antes de tomar a mão de Gertrudes e a beijar. Tal ato de cavalheirismo tão demodê nos dias de hoje, chamou a atenção delas, —sou Sirineu, represento um cosmético único, cujos benefícios são exclusivos e permitidos a um seleto número de beneficiários. Gostaria de uma demonstração?

—Sinto muito, mas esses negócios são tratados com o nosso gerente, o Senhor Norman e ele não está no momento. Só à tarde.

—Não, senhorita, vejo que não me entendeu. É com você que quero tratar. Você é a minha cliente exclusiva. Percebe?

O homem misterioso se aproximou e cochichou essas palavras no ouvido dela. Mônica esticou o seu pescoço como uma girafa para tentar ouvir o que o homem dizia e ao perceber sua indiscrição, perante o olhar severo dele sobre ela, riu nervosa, pegando um spray qualquer sobre a bancada.

—Então, o que o senhor vende? Fale sobre o seu produto. —Insistiu Mônica.

O homem, reticente, recuou um passo, pegou na mão de Gertrudes, deslizando tão rapidamente entre sua mão e a dela, um cartão, de forma que nem o mais habilidoso observador pudesse notar.

—Me ligue, —e piscou para Gertrudes, —quando o senhor Norman estiver disponível. Eu voltarei. —disse enfático nessa última parte e fechou o casaco num movimento rápido dos braços e juntando as pernas, como algum tipo de cumprimento militar brusco.

—Credo. Cada um, heim? Esse aí é biruta das ideias. Nossa!

Os clientes chegavam e iam; o dia correu como qualquer outro. Mas não para Gertrudes. Porque aquele homem tocou a sua alma do jeito que ninguém mais fez antes. Ele causava-lhe calafrios e no final do expediente, depois que Mônica correu para não perder seu ônibus, ela colocou o cartão sobre a bancada da recepção e o observou atentamente.

"Gertrudes,

Você é a cliente número 17. Estamos muito felizes e sabemos que fizemos a escolha certa. Amanhã pela manhã, nosso representante Sirineu, estará na sua casa com um frasco do nosso produto, o manual de uso e lhe dará todo o suporte necessário. Até lá!"

Seu nome estava impresso no cartão e o sujeito dirigiu-se diretamente a ela. Que estranho. Isso estava mesmo acontecendo? A sensação era a de se estar sonhando, como se não pisasse no chão ou se não tateasse a matéria. Tão irritante, como tosse seca ou nariz escorrendo.

Subiu na sua bicicleta e seguiu seu caminho até em casa, pensando o tempo todo naquele convite, como se ela fosse a predestinada em algum plano diabólico orquestrado por deuses ocultos em alguma aposta macabra.

Gertrudes chegou em casa. Colocou sua bicicleta em pé, pendurada no quartinho, guardou suas coisas, foi tirando as roupas e as jogando no chão até chegar ao quarto. Pegou a toalha, uma calcinha limpa e foi tomar banho. Essa doideira toda tinha mexido com ela e a deixado meio zomba, dispersa. Mas a água quente caindo em sua pele a fazia tão bem que por dez minutos ela só se deixou estar, enquanto a água caía. Estava muito ansiosa sobre a visita que receberia pela manhã. O que era aquele produto do qual ela era uma cliente felizarda e porque ela? O que ela tinha de especial? Não seria uma cilada? Parecia um golpe. Sabia que deveria tomar todas as precauções antes de assinar ou concordar com qualquer coisa.

Depois do banho demorado, Gertrudes preparou um café solúvel com leite fervido, sem açúcar. Ficou apenas de calcinha andando pela casa. Sentou-se no sofá com seu café e ligou a tv. Zapeou no streaming até encontrar qualquer coisa que lhe distraísse. Por fim, sem paciência para escolher algo novo, optou pela série The Office. Nesse dia, pela primeira vez em anos, ela dormiu no sofá e não acordou às 5h como era de costume, para a sua caminhada matinal. Acordou com as batidas na porta, soltando uma interjeição de espanto e um "Meu Deus".

Correu para o quarto, se cobriu com um roupão e foi atender a porta. O senhor Sirineu, todo cheio de cerimônias, pavoneava-se na frente dela com aqueles trejeitos e esquisitices. Ela o via com um personagem das histórias de Sherlock Holmes ou qualquer personagem das clássicas histórias da era vitoriana.

—Este frasco, —disse o homem o depositando sobre a mesa com as duas mãos. —Contém o líquido capaz de tornar quem o ingerir, jovem e saudável e isso não é propaganda enganosa como fazem nos comerciais de produtos para fazer crescer cabelo nem nos anti-rugas. Você verá.

—Antes de prosseguir com isso, tem umas coisas que eu queria perguntar. —questionou Gertrudes olhando aquele homem imponente diretamente no fundo dos seus olhos cinzentos. —Por exemplo, porque o senhor me procurou no salão e não aqui na minha casa se iria tratar diretamente comigo e por que sou tão especial? Meu nome já estava impresso no cartão.

—Minha cara, suas perguntas são pertinentes e serão respondidas na hora certa. Eu prometo. Mas por hora vou deixar com você este fraco e o conteúdo milagroso que ele contém. Também uma bula com todas as instruções, contraindicações, etc. Voltamos a nos falar depois de uma semana. Você não me deve nada por enquanto e pode confiar em mim. Os resultados são rápidos e visíveis.

O homem colocou suas mãos nos joelhos, deu um sorriso medonho, levantou-se e saiu. Gertrudes abriu a porta e se despediu dele rapidamente, como quem se livra de um inseto, quase o enxotando, porque mais uma vez aquela sensação estranha foi crescendo dentro dela.

Mas quando não era uma coisa, era outra. Mônica povoava os seus pesadelos. A proximidade das duas agora, deixava nítida, quase insuportável, a inveja que a outra tinha dela e o episódio do gato era substancial o bastante para fazê-la ir para a cadeia ou fazê-la pagar uma bela indenização. Não entendia porque não agia nesse sentido. A coisa chegou ao ponto de Gertrudes dizer pra essa tal ordinária, que ela deveria arrumar um homem e parar de se preocupar com a felicidade alheia. O que pelo menos deu certo até o final do expediente e assim foi mais um dia.

No caminho até em casa, Gertrudes parou no semáforo e enquanto aguardava ficou observando uma senhora muito velha em seu andador. A decrepitude da anciã causou repulsa nela e o desconforto foi tão grande que ela desviou o olhar. Percorreu o resto do caminho pensando em como um dia também ficaria assim e tal visão, dela tão velha, tomou sua mente a ponto de não conseguir mais pensar em outra coisa.

O rumo que as coisas tinham tomado fizeram dela, uma mulher organizada e pragmática, em desleixada e preguiçosa, que passava seu tempo fazendo sandices das quais mesmo uma adolescente se envergonharia.

Abriu a geladeira e apanhou algumas coisas que encontrou. Pepinos em conserva, farofa e torresmos. Misturou tudo e pegou uma cerveja, sentando na frente da TV. Começou a assistir uma animação adulta no streaming, chamada Bojack Horseman. Depois do quarto episódio foi se dispersando. Não que não estivesse gostando. Achou a série muito boa. Mas sua atenção foi se voltando para o frasco sobre o hack. Principalmente porque não se lembrava de tê-lo colocado ali. Mas ela voltou sua atenção ao episódio em questão, que abordava duas personalidades distintas. Zoe e Zelda, irmãs gêmeas, mas bem diferentes uma da outra, sendo a Zoe a irmã boa e Zelda a contraventora ou má. Mas os episódios curtos, de 25 minutos cada, não ajudavam a distraí-la por muito tempo e o frasco não pode mais ser ignorado. Ela o abriu e virou de uma só vez seu conteúdo. Dormiu quase que imediatamente, agarrando o seu travesseiro, com um sorriso satisfeito nos lábios.

Passou o final de semana ignorando as ligações e mensagens, trancada em casa assistindo TV e tomando energéticos (hábito esse assimilado recentemente) e cervejas e comendo bobagens. No trabalho não foi diferente. Sua aparência cada vez mais desleixada e seu aspecto cansado, chamaram a atenção de todos no salão. Até dos clientes. No entanto, o mesmo não se podia dizer quanto a sua beleza. O viço e o frescor da sua pele refletiam-se mesmo debaixo de todo o cansaço e desleixo. E foi no salão que ela teve a revelação. Perla, que retornara de seu atestado de dengue, a fez ver.

—Olha para você, bem? —disse Perla, puxando seus cabelos para trás e os amarrando num rabo de cavalo. —Me conta qual o seu segredo? Olha essa pele. Cadê as rugas? Sem marcas, linhas de expressão. Qual é o produto, conta?

—Eu sei, —intrometeu-se Mônica, enquanto Gertrudes encarava seu reflexo no espelho, se dando conta pela primeira vez que o milagre que aquele frasco prometia finalmente havia se realizado, —foi aquele senhorzinho esquisito, não foi, Gê? O homem teve aqui Perla, semana passada, querendo vender o produto dele, mas ela não abriu pra ninguém. Ficou só pra ela. Não foi? Heim? Fala?

Mas Gertrudes não absorveu mais nada daquela conversa tola. Simplesmente não ouvia. Ela pegou a sua bolsa e mesmo com o Norman lá, ela saiu sem dar uma explicação.

Em casa, correu para a penteadeira, pegou seu kit de maquiagem, escova de cabelo e se penteou e maquiou como nunca antes e ao se confrontar novamente com seu reflexo, tomou outro susto, pois parecia ainda mais jovem do que da última vez, há uma hora atrás.

Saiu para comprar energéticos e assimilar outro mau hábito, o qual nunca em sua vida inteira foi adepta, o cigarro. Pensou que podia voltar com os seus velhos hábitos saudáveis como as caminhadas e as receitas para emagrecer do seu canal favorito no Instagram, mas a vontade dessas coisas simplesmente se extinguira e ela não sabia como voltar a ser como antes. Sabia no entanto que amanhã Sirineu bateria na sua porta e a daria mais daquele elixir, do qual agora ela dependia tanto. Como uma droga. A noite regada com as suas esquisitices adolescentes se desenrolou como as últimas. Sempre fazia alguma coisa inusitada agora, como essa novidade de tomar banho com a luz apagada.

Acordou cedo para os seus padrões atuais. Às 07h da manhã. Pois estava ansiosa demais com a visita de Sirineu. Fez café e o frescor daquela manhã agradável trouxe um vigor nostálgico que a fez sorrir e se regozijar com o anúncio da chegada do portador do elixir, batendo na porta.

Os seus trejeitos e tiques, como chupar o lábio inferior e a postura sempre ereta, hoje, irritaram-na a ponto de fazê-la apertar as mãos de impaciência.

—A senhorita não leu a bula, não é? Cometeu o mesmo erro que todos eles. Será que eu não acerto uma? —desabafou o homem, bravo, cruzando as pernas e em seguida as mãos sobre elas.

—É, hum-hum, —reagiu Gertrudes, meio desconcertada. Mexia-se de um lado para o outro, não o encarava nos olhos.

—Bem. Esse é o problema das pessoas de hoje. Não é? Não sabem esperar. Muito menos ler. E quando uma coisa depende da outra, então?

—E o senhor parece que nem é deste mundo. Muito menos deste século. Não é? —Concluiu. Esperando que ele fosse rir. Mas ficou com a cara fechada. O que a fez fingir uma tosse.

—Bom. É o seguinte. Não vai ser fácil. Mas trocando em miúdos. O elixir que a senhora tomou é a mitológica água encontrada na fonte da juventude. O que por si só não significa nada. A poção tem que ser completada com toda a essência vital de uma senhora bem velhinha. Ou seja, tem que se matar uma mulher avançada em idade e colher todo o seu sangue. Cada dez anos da idade da dama, reverterá em um ano de rejuvenescimento para você. É isso. Ficou claro?

Ela franziu o cenho, apertou os lábios, levantou-se, foi até a janela, olhou para fora, na sequência encarou aquele homem bizarro e depois, tão inusitadamente como tudo que acabara de ouvir, pediu o frasco do elixir e abriu a porta para dispensá-lo. Ele depositou o chapéu na cabeça, fez uma vênia, sorriu e disse:

—Ao menos aqui um mistério. Você foi a primeira a não me perguntar nada depois de ouvir tudo que acabou de ouvir. Amanhã estarei no Café Margot se quiser falar comigo. Mas lembre-se. O primeiro elixir que tomou já estava pronto. Este você terá que misturar. Agora sabe como fazer.

Aquela incumbência ingrata a tinha deixado acordada a noite toda. Foi trabalhar com olheiras, ainda que o frescor da pele, revitalizada por mais um dia, fosse aparente. Mônica a encarava querendo dizer algo mas sempre se calava. As duas quase não disseram nada uma à outra, exceto coisas do trabalho. Norman saiu mais cedo e entregou as chaves da loja à Perla.

—Gurias, eu vou ao café. Querem alguma coisa de lá?

—Eu, não. Obrigado.

—Pode me trazer um café? —respondeu, Gertrudes, —Depois eu te faço um pix.

Assim que Perla saiu, Mônica, parecendo segurar uma gana há muito contida, partiu para cima de sua colega de trabalho. Gertrudes recuou assustada, pegou uma tesoura para se defender.

—O que você quer? Sai daqui. Eu não estou pra brincadeira.

—Eu quero saber do seu segredo. O que você está fazendo para ficar tão jovem? Achou que ninguém notaria? Aquele senhor outro dia. Ele não voltou aqui pra vender os produtos dele. Vi ele piscando pra você.

—Escuta aqui, sua biscate, —ameaçava Gertrudes com a tesoura, avançando e fazendo Mônica recuar, —porque você não começa me explicando porque matou o meu gato? Eu vi que foi você. Coloquei uma câmera de segurança dessa vez.

—Aquele gato gordo e velho destruía a minha horta todas as vezes e revirava o lixo dos vizinhos. Fiz um favor para a comunidade e agora farei outro, livrando o mundo de outra praga, piranha e velha feito você! —ameaçou Mônica partindo pra cima dela, segurando uma chapinha de cabelo quente nas mãos. Gertrudes desferiu uma estocada com a tesoura, mas Mônica protegeu-se, fazendo a tesoura cair. Ao abaixar para a apanhá-la de volta, Gertrudes ficou mais exposta e Mônica meteu a chapinha em seu rosto o queimando terrivelmente. O chiado da queima e os gritos de dor mesclavam-se num mix perturbador e insano.

—Você não tem o direito de querer isso só pra você. Sua safada. Sempre foi a mais bonita. A preferida do chefe, dos garotos na escola também. Sempre teve tudo. Sua vaca. Isso não é justo. Não é!

De nervos exauridos, Mônica, fraca, exposta ; caiu no chão, chorando como uma louca. Quando Perla chegou com o café, foi empurrada por Gertrudes e a bebida espatifou-se no chão.

O pranto não cessava e a dor física irradiava agulhadas sentidas em sua alma. Tirou um espelho da bolsa e a desfiguração do rosto era horrível. A primeira reação deveria ser ir para o hospital, mas ela se recusava em ser vista assim por qualquer pessoa. Ficou naquela praça, sentada no banco, até anoitecer.

No salão, Perla tentava entender o desfecho da cena que presenciara. Ouvindo a versão de Mônica e a consolando.

—Já está quase na hora. Eu vou indo. Você fecha aí?

—Sim, guria. Vai lá. Hoje foi tenso mesmo. —argumentou Perla, levantando-se e pegando a vassoura, para uma última varrida no chão.

O café Margot parecia um lugar tranquilo, onde Mônica podia descansar a cabeça e apreciar uma boa bebida quente com rosquinhas. Mas ao chegar, deparou-se com a figura destoante do lugar, destoante de qualquer lugar, Sirineu.

—Vejam só. Não era você quem eu esperava. Mas virá bem a calhar. Sente-se.

—Quem é você? O demônio? É por sua causa que tudo isso está acontecendo.

—Que isso. Considero você bem mais esperta que a sua amiga Gertrudes.

—Refutou Sirineu, pondo um frasco com o elixir sobre a mesa.

—Qual foi a historinha que você contou pra ela?

—Digamos que eu só disse pra ela o que ela queria ouvir.

—E fará o mesmo comigo. Por que eu acreditaria em você?

—Vejam só. Você é uma das minhas. —Concluiu Sirineu com um largo sorriso.

Na Praça, Gertrudes teria sua oportunidade de agir.

—Com licença. Pode ajudar uma pobre velha a ter o que comer?

Era uma velhinha simpática. Usava um gorro, uma blusa de lã bem surrada e um cachecol. Ela sorriu para a senhora, que estranhou seu rosto todo queimado, mas depois sorriu de volta.

—Sim, venha. Conheço um lugar. Também estou com fome. Vamos matar nossa fome juntas. Que tal?

No embalo dessa trama formidável, Perla concluía, como no desfecho de um livro, que não havia coincidências ali e que a nossa protagonista Gertrudes talvez nem fosse a protagonista, mesmo com o seu nome impresso no cartão, o qual ela fitava com uma satisfação mórbida e um olhar curioso, sobre a bancada da recepção do salão.

—Acho que agora você conseguiu, Sirineu. — Houve uma pausa, ela desviou o olhar lá para fora e ao ver Gertrudes em desespero, batendo na porta de vidro da loja e gritando por socorro, concluiu, —É, velho. Você conseguiu.

Gertrudes implorava:

—Socorro, Perla. A velha! Me deixa entrar.

Mas Perla, parecendo alucinada, gargalhava descontroladamente, divertindo-se com a cena.