DEPOIS DO FIM DO MUNDO — CLTS 24.

O último registro no diário de Lucas Zoltaire dizia o seguinte:

"Quando o fim do mundo aconteceu o dia amanheceu cinzento, o sol deixou de brilhar e fez frio. Assim como hoje..."

Era uma declaração impactante e nada otimista, quase um presságio da cadeia dramática de acontecimentos que estava prestes a ocorrer.

Ano 2023

Lucas e a filha Frankie de treze anos estavam abrigados no banheiro de um antigo terminal de ônibus interurbano que usavam como moradia temporária. Lá fora, uma tempestade de areia altamente tóxica com uma coloração escura varria da sua frente tudo o que restou do mundo com uma violência avassaladora, podia levar a morte quem entrasse em contato com ela, causando terríveis e dolorosas úlceras por todo o corpo das vítimas.

O mundo como pai e filha conheciam não existia mais tinha muito tempo, o planeta Terra acabou destruído por algum evento apocalíptico indeterminado. O resultado disso tudo foi a morte progressiva da maior parte dos seres humanos, animais e da vegetação num todo. Transformando o planeta num cenário de guerra futurista, um mundo pós-apocalíptico caótico e repleto de perigos, onde a infraestrutura deixou de existir, dando lugar a barbárie e a bestialidade. Aqueles que não recorreram a atos extremos, como suicídio, tiveram que aprender a escapar de gangues de canibais, sobreviverem buscando alimentos em lugares ermos sem sentir a compulsão de comer seus semelhantes e, por fim, mas não menos importante e não menos perigoso, eles precisavam fugir de criaturas mutantes monstruosas que espreitavam na surdina sempre esperando o momento certo para atacar.

Frankie Zoltaire olhou pelo vão de uma janela o exterior do terminal e disse:

— A tempestade parou, pai.

— Fique aqui dentro, eu vou lá fora olhar se é seguro sairmos — respondeu Lucas para a filha.

Frankie fez o que o pai pediu, ficou escondida no último mictório agachada, enquanto Lucas saiu para sondar se o exterior do terminal estava livre de alguma ameaça, uma vez que a tempestade de areia venenosa havia dado uma trégua para a dupla. Os prédios comerciais no entorno do velho terminal de ônibus continuavam lá, abandonados, quietos e silenciosos — tão silenciosos quanto os mortos em seus túmulos. Pelo menos não havia sinal de nenhum grupo de canibais mal-intencionados por perto, nem tão pouco mutantes sinistros espreitando nas sombras esperando uma oportunidade para atacar. O céu estava escuro, apesar de ainda serem 15h.

O pai de Frankie notou com surpresa e espanto a presença suspeita de um grupo de pessoas próximas da parte sul do velho terminal, em salas comerciais onde no passado funcionavam os postos de emissões de bilhetes e cartões de ônibus. O grupo tinha três homens e duas mulheres com roupas sujas e maltrapilhos que lembravam zumbis de filmes. Por suas características incomuns aquele era um grupo de canibais, o que deixou Lucas Zoltaire totalmente alerta e preocupado principalmente com a segurança da filha. Naquele horário do dia, pouco mais de 15h, ele não precisava se preocupar com os mutantes, era um perigo a menos, pois eles evitavam por algum motivo desconhecido para os últimos humanos sobreviventes a luz do sol, assim como fazem os vampiros na literatura e cinema, apesar do tempo nublado, os monstros preferiam a escuridão total da noite para saírem de seus esconderijos sombrios para caçarem humanos desavisados.

Lucas olhou com espanto para o grupo ao constatar que eles haviam notando sua presença no local, e se dirigiam apressadamente para onde ele se encontrava. O pai de Frankie estava armado apenas com um pedaço de pau revestido com arame farpado e gritou:

— Frankie, vem rápido, canibais!

A dupla pulou as catracas e saiu correndo desesperadamente pelas ruas vazias de uma cidade fantasma que nem se deram o trabalho de lembrar o nome, alcançando alguns metros adiando um prédio comercial aparentemente vazio da presença de outros humanos, onde pai e filha entraram e baixaram suas portas rapidamente, bloquearam a entrada com objetos pesados encontrados no lugar, uma antiga loja de material de construção, isolando dessa forma "aquele" perigo do lado de fora temporariamente. Lá dentro, entanto, outro tipo de ameaça muito mais sinistra aguardava pelos dois.

***

Naquela tarde Lucas Zoltaire escreveu a primeira anotação em seu novo diário:

"Esta manhã o céu amanheceu cinzento e um vento gelado sobrava copiosamente, antes da tempestade de areia mortífera sobrevir inesperadamente sobre nós com uma violência brutal. Mas essa não é a primeira vez que vemos uma tempestade de areia tóxica depois que toda essa merda começou, mas nos últimos tempos elas estão ficando mais violentas e também mais frequentes, por isso é sempre arriscado estar em locais abertos, pois além dos canibais, dos mutantes, também temos que nos preocupar com as tempestades de areia, pois são um outro tipo de perigo tão mortal para nós quanto esses outros dois..."

Lucas era um pai dedicado, que cuidava para que a filha Frankie tivesse uma vida feliz e agradável, e esse sentimento de super-proteção se intensificou ainda mais depois do início do apocalipse e da perda da mãe da garota. No decorrer dos primeiros meses de apocalipse, Lucas observou a esposa ficar mais e mais retraída. Perdendo todo e qualquer interesse pela vida. Até decidir que não queria mais viver. Na época Frankie estava com oito anos de idade, e a perda abrupta da mãe e de forma tão banal deixou a garota abalada, pois mesmo tão jovem ainda ela já entendia que as coisas haviam mudado de maneira brutal no planeta. O mesmo aconteceu com Lucas, que levou tempo para se recuperar totalmente da tragédia familiar, guardando secretamente na memória lembranças da esposa para não entristecer a filha.

"Hoje está fazendo uma semana e meia que vivemos um período de aparente "normalidade", se posso chamar essa droga de vida assim, em que não somos confrontados com nenhum grupo de canibais ou mutantes. Não sei até quando vai continuar assim..."

Lucas escrevia enquanto lá fora ventos arenosos começavam a soprar no horizonte, cobrindo o céu de terra escura.

***

Lucas e Frankie estavam familiarizados com aquele som intimidador e aterrorizante, quase um sussurro estrangulado, era o som que os mutantes faziam e que levava medo e causava calafrios em quem o ouvia. Pai e filha ficaram imóveis e totalmente mudos, até a respiração de ambos era controlada para evitar o mínimo de barulho possível para não chamar a atenção dos monstros comedores de gente. Era visível o medo nos olhos de Frankie, e por mais que tentasse manter calma e confiança diante da filha, Lucas também estava apavorado. Os dois já haviam passado por diversos apuros nestes cinco anos de apocalipse, mas nenhum se comparava a ficarem presos literalmente no mesmo espaço juntos com mutantes que poderiam atacar eles a qualquer momento.

Lucas fez sinal com os olhos para a filha como se dissesse para a garota: "não faça nenhuma estupidez, por favor!"

Pai e filha estavam literalmente numa enrascada, com o perigo exterior representado por uma gangue de canibais só esperando a oportunidade perfeita de atacar, e ali dentro daquele imóvel abandonado no tempo, ambos estavam prestes a virar comida de monstros mutantes.

Enquanto segurava firme o pedaço de madeira envolvido com arame farpado e observava atentamente cada canto daquele lugar tentando adivinhar de onde o ataque dos vilões viria, Lucas também buscava encontrar uma saída para aquele pesadelo infernal em que foi jogado juntamente com a filha. Nesse momento um barulho no andar superior chamou a atenção da dupla, os deixando em posição de alerta. O monstro ou (os monstros) estavam se movimentando de forma sorrateira, Lucas e Frankie já haviam visto alguns mutantes durante suas andanças, mas nunca em hipótese alguma tinham ficado cara a cara com nenhum deles tão de perto como parecia estar prestes a acontecer a qualquer momento.

***

15 de abril de 2018.

"Hoje vimos pela primeira vez uma daquelas coisas, um mutante. Confesso que foi uma experiência muito perturbadora e igualmente assustadora para mim e a minha família (esposa e filha) estarmos diante daqueles bichos medonhos. Eram seres realmente aterrorizantes, monstruosidades que pareciam saídas na mente fértil e criativa de um escritor de histórias de terror de tão bizarras que eles eram..."

O mundo vivia as primeiras semanas do apocalipse quando os primeiros relatos sobre criaturas mutantes que caçavam seres humanos na calada da noite começaram a se espalhar feito rastro de pólvora. De início muitos custaram a acreditar na história, até que os relatos de ataques e avistamentos se tornaram muitos, e o que começou como uma "lenda urbana" desacreditada por alguns acabou se tornando uma assustadora realidade para todos.

"Por sorte aquelas aberrações não nos viram, eles eram cinco, e andavam pelas ruas escuras e desertas igual animais selvagens caçando uma presa indefesa numa savana africana. É difícil descrever com palavras com o que aquelas coisas se pareciam, pois, eu fiquei muito abalado e com medo de que um deles visse onde minha família e eu estávamos nos escondendo, um pequeno apartamento num bloco de prédios abandonados as pressas por seus moradores..."

Lucas pegou na mão da filha e apertou com força, Frankie estava com lágrimas nos olhos. Ele percebeu pelo canto do olho quando a primeira criatura se materializou feito um fantasma na sua esquerda, e ficou parada na sombra observando pai e filha. À direita de Frankie apareceu mais dois mutantes, que também ficaram parados sem esboçar nenhuma reação. Lucas notou que ele e Frankie estavam muito próximos de uma grande janela que levava, por mais fraca que fosse, um pouco de claridade lá para dentro, mesmo com o tempo nublado, impedindo assim que os monstros se aproximassem demais deles para atacar.

"Eles eram deformados, suas cabeças eram grandes demais, seus corpos eram desengonçados e robustos. Aquelas coisas andavam de maneira engraçada, lembrava pinguins andando no gelo. Era difícil enxergar com clareza a fisionomia de seus rostos, mesmo com a luz da lua os iluminando, mas dava para vê que eles possuíam olhos grandes e quase juntos, como se fosse um único olho no centro do rosto: um ciclope..."

— Frankie, vamos para perto da janela — disse Lucas — Lá eles não podem nos pegar, eles realmente têm medo da luz. Eu não entendo!

Ele ficou surpreso com aquele fato ser verdadeiro. Olhando agora mais de perto para os mutantes, Lucas pôde notar o quão assustadores eles eram de verdade. Além dos grandes olhos próximos quase formando um único olho no centro do rosto, os mutantes possuíam uma boca com dentes serrilhados que parecia ter sido rasgada de orelha a orelha lembrando o sorriso macabro de um palhaço-demônio. Lucas e Frankie ficaram parados próximos da janela colados ao vidro.

— O que a gente faz agora, pai? — perguntou Frankie.

— Não vejo outra saída querida, vamos ter que pular daqui de cima, Frankie.

— Mais é muito alto para a gente pular, pai, nós vamos morrer.

— A gente vai morrer de qualquer jeito também se ficarmos aqui, eles estão só esperando a noite cair para atacar.

— Está bem então — disse Frankie.

Quando Lucas fez menção de quebrar o vidro da janela com o pedaço de madeira que tinha nas mãos, eles ouviram um forte barulho seguido de coisas caindo. Olhando para a entrada, a dupla viu a gangue de canibais invadindo o lugar decididos a pegar os dois sem se darem conta da presença dos três mutantes no local também. Quando os dois grupos de vilões se encontraram cara a cara se iniciou um combate entre canibais e mutantes, e Lucas e Frankie aproveitaram essa distração para fugirem do local sem serem notados por nenhum dos inimigos enquanto mais um dia naquele apocalipse ia findando.

Tema abordado: (MUNDO PÓS-APOCALÍPTICO).

Emerson Júnior
Enviado por Emerson Júnior em 05/08/2023
Reeditado em 08/08/2023
Código do texto: T7853993
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.