JANTAR A TRÊS - CLTS 25

— Eu não disse que seria fácil. Mas você topou, lembre-se!

Cid sentenciou num sussurro ao telefone, como se pretendesse esconder até de si, todo o segredo envolvido naquele jantar.

— Sim, lembro! Mas agora, diante da possibilidade de fazer de verdade... deu medo!

Rogério tinha suas obrigações no restaurante e também baixou o tom de voz. A possibilidade referida, surgira numa sequência de liberdades difícil de se repetir no quotidiano de ambos. Do lado de Aparecido, o mal-estar atacou seus dois auxiliares e o deixou sozinho. Para sua sorte, o dia estava bastante tranquilo. Já no restaurante, extraordinariamente, não haveria expediente para o jantar. Os trabalhos se encerrariam tão logo a última mesa do almoço se esvaziasse. Perfeito para a ávida necessidade de experimentar inovações culinárias do aspirante a Chef.

— Deixe de ser bobo! Da outra vez você conseguiu, não foi? Levei, experimentamos e ficou tudo bem. Ninguém se transformou em lagartixa!

Rogério sorriu. A brincadeira entre os dois era antiga. Na verdade, nem era coisa deles. A política de tolerância a homossexuais ainda era uma dúvida pairando no ar. O mundo estava mais compreensivo, era verdade. Mas de maneira nenhuma se podia baixar a guarda. Sempre haveria um resquício de homofobia no ar. A permissividade da coexistência era coisa de uma década no máximo. A visão do macho alfa superior vinha de milênios. Não se muda algo assim da noite para o dia.

— Bom, você quem sabe, Gel. Se não quiser mesmo, passe no açougue então, e leve algo para fazer hoje à noite. Eu nem passo na casa de materiais de construção — disse Cid.

— Passa, sim, oras! Se não der hoje, outro dia nós fazemos.

— Sem chance. Deve ser caro e pode estragar se ficar guardada.

— Não estraga, seu bobo. Basta manter embalada. Mistura na água na hora e pronto.

— Ah, não? Endurece, vira um tijolo. Saco de cimento é igual, sabia? Depois de aberto tem de usar.

A conversa se estendeu por outro minuto, para as despedidas. Ambos se encantaram com um prato preparado em uma série de TV. Cansaram de reprisar o vídeo “motivacional” e também os outros, com receitas similares, no YouTube. A vontade de executar a receita, conforme exposto por “aquele” Chef, só fazia crescer. Já estavam levando a idolatria pelo protagonista e seus pratos exóticos, mais longe que qualquer outro fã.

Não era novidade, no entanto. Na primeira vez, levaram um tempo considerável, para criar coragem de provar. Os bifes quase gelaram sobre os pratos, antes de se atreverem a cortar o primeiro pedaço. Os condimentos, o molho com mel e cravo em pó, acabou por transformar a experiência gustativa em algo diferente — e realmente era — de tudo o que já se pensou em comer no jantar.

Rogério não cansava de rever os olhos espremidos de Cid, enquanto mastigava. “ele vai cuspir e vomitar tudo, quer ver?” — pensou na ocasião. Mas aquele modo de agir, indicava a tentativa de descobrir quais os temperos utilizados no preparo. Conhecia-o bem. A cena ficou gravada em sua memória, porém.

— Você colocou cominho? — perguntou Aparecido.

— Sim! Não espalhei sobre a carne, dessa vez. Lembrei do frango indiano. Dessa vez fiz o certo, no meio dos outros temperos. Mas e o gosto? — Rogério ainda estava apreensivo e evitava tocar nos talheres.

— Carne de porco, bem condimentada e com um travo doce, por conta do mel. Delicioso, como só você sabe fazer, amor! — Aparecido serviu-se de arroz e feijão, demonstrando estar totalmente tranquilo em relação ao prato.

Só então Rogério cortou seu filé. O pedaço caberia inteiro em uma colher de chá. Mastigou com cuidado. Ao ver as sobrancelhas do amante reprovando seu receio, saboreou o petisco, mastigando até engolir. O segundo bocado foi mais fácil. Terminou por ser o maior entusiasta, entre os dois, para a próxima investida.

— É seguro você conseguir um lombo como aquele? — perguntou após despir-se e se enfiar sobre os lençóis, algumas noites depois.

— Você está falando sério? Estou me tornando um contraventor por sua causa, sabia?

— Nunca fiz assado na argila. Nada. E já que houve a sugestão... why not?

Aparecido pesou os prós e contras e como sempre fazia, procurou o alto do muro para emitir sua opinião.

— Perigo sempre tem. Comando aquele lugar e não fazem nada por lá sem minhas ordens. Mas há limites. Posso fazer um procedimento sozinho, eles não. O difícil é isso acontecer, com aqueles dois CDF. Nunca faltam ao trabalho, você sabe como são.

Três dias após esse “quase” acordo, a oportunidade surgiu e colocaram em prática a experiência culinária. Rogério resolveu-se por misturar as receitas que o inspiravam. Separou e lavou as folhas de couve, enquanto Cid cuidava de abrir a garrafa de vinho. Separou todos os temperos, colocando-os num semicírculo diante da placa de acrílico. Retirou a faca de cabo branco e fio aguçado do suporte. Trocaram olhares e tão logo sacou a rolha, o amante assumiu a tarefa de cortar e preparar os temperos.

Rogério acionou o forno e, quando foi cuidar dos legumes, indagou-o:

— Quando é que você vai mandar esse forno para o seu pai dar um jeito, hein?

Os dois trocaram um olhar sério. Por um mísero instante, Cid assimilava o golpe e compreendia a mensagem subliminar. Era algo como: “seu pai está adiando o inevitável”. Fazia a contrapartida, impondo-se com as sobrancelhas dizendo: “Tem certeza? É isso mesmo que queria dizer?”. No instante seguinte, porém, a ironia emergia e os dois acabavam fazendo um pit-stop para um beijo e sorrisos. A real intenção por trás da observação de Rogério era quebrar o gelo e aliviar a tensão. A missão proposta para aquela tarde/noite os deixara tensos.

A carne foi besuntada com uma mistura de temperos. Incluía manteiga, alho picado, alecrim, cominho, sal, pimenta-do-reino e uma pitada de cravo em pó. Usara a ponta da faca no lugar do garfo, para perfurar a carne e embutir o preparado. Lavou as mãos e pegou sua taça, observando o amante deixá-lo sozinho diante da pia. Cid foi até a sala de estar e acionou o CD player. Chet Baker começou a soar pela casa.

Rogério misturou o restante da pasta de temperos aos cubos de cenoura e bacon, separando uma colher pequena de café para juntar ao molho de soja e mel. Depositou a peça de carne temperada sobre um guardanapo de pano e espalhou a cenoura e o bacon em fileiras, embrulhando tudo em um rocambole. Amarrou as duas pontas e espalhou as fatias de bacon no meio.

Bebeu o primeiro gole de sua taça e, quando a pousou sobre a pia, Cid abraçou-o pela cintura, unindo os quadris. A barba fez cócegas no pescoço e Rogério tratou de se desvencilhar com um ríspido “depois”. Envolveu a peça pronta nas folhas de couve e apontou para a argila. Cid abandonou sua taça e tratou de escorrer a água da tigela onde havia misturado o material.

Rogério depositou a peça numa assadeira com alças e começou a espalhar os bocados de argila, cobrindo as folhas de couve. Aos poucos um cilindro acinzentado surgiu.

— Quanto tempo de forno? — Cid o observava trabalhar, já na terceira taça.

— Três horas e meia, diz a receita.

Rogério abriu a porta do forno e empurrou a assadeira para o interior. Voltou para a pia e começou a lavar toda a louça envolvida no preparo. Considerou cuidar do arroz branco e da salada, mas Cid o puxou pela mão insistente até o quarto. Deitaram-se e desnudaram-se com uma carência desesperada, como se o sexo fosse um porto seguro para toda aquela apreensão diante do proibido.

A moralidade dos dois foi posta à prova na primeira vez. Se fossem interrogados a respeito de levar a cabo uma nova experiência, seria obviamente deixada de lado outra vez. Os valores já há muito, foram rompidos. Repetir era, de certa maneira, brincar com o perigo. Mas de maneira alguma havia um desvio psicótico suficientemente grave para levá-los a transformar esse tipo de jantar em um hábito.

Após um banho, voltaram à cozinha, bebendo o que restava da garrafa. Gel picou um queijo em pedaços e regou com azeite temperado em ervas e alho, para beliscarem enquanto aguardavam o assado terminar. O relógio da sala de estar tocou e Cid ergueu os olhos para o teto, contando nos dedos.

— Quarenta minutos?

— Yep! — respondeu o Mestre Cuca, girando o acendedor do fogão.

O perfume de alho e cebola dourando no azeite invadiu o local. Movendo a colher de pau em círculos na panela, Rogério temperava o arroz cru. Acrescentou a água e deu um sorriso ao amante, antes de perguntar:

— Você sabe quem era o “prato principal”? — Moveu a cabeça para a direita, apontando o forno com as sobrancelhas.

Cid balançou a cabeça em negativa, com um gole de vinho na boca.

— Nenhum psiquiatra chamado Abel Gideon, né? — completou Rogério, alterando a voz, brincalhão.

O gole de vinho desceu machucando o esôfago, enquanto Cid controlava a respiração para explodir em uma gargalhada. Tapou a boca com as costas da mão, temendo encontrar gotas ali, mas nada escapou. Quando conseguiu se recompor, Rogério ainda ria, equilibrando a tampa e mantendo a panela semiaberta para cozinhar o arroz.

— Cuidei de tudo, fique tranquilo. — Anunciou Cid — Será enterrado como indigente e os registros já sumiram do banco de dados do IML.

TEMA: TERRIR

Vladimir Ferrari
Enviado por Vladimir Ferrari em 04/11/2023
Reeditado em 04/11/2023
Código do texto: T7924345
Classificação de conteúdo: seguro
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