ANOMALIA

Acordei ouvindo gritos em algum lugar distante. Gritos que repercutiam com eco através das paredes brancas e desbotadas daquele quarto. Percebi que estava com soro no braço esquerdo e com a perna direita engessada. Tiras de couro prendiam meus braços e pernas à cama. Imaginei que estava num hospital. Uma dor na testa me fez lembrar que estava viajando para o interior do estado, quando ouvi um estouro, perdi o controle do carro e depois mais nada.

Imaginei que tinha sofrido um acidente e alguém me socorreu, levando para o hospital. Mas por que eu estava amarrado? Comecei a gritar.

─ Ei! Tem alguém aí? Pode me ajudar? Oi!

Não demorou muito, surgiu uma enfermeira mascando chicletes. O batom vermelho de seus lábios se destacavam no rosto branco. A brancura da pele parecia a de alguém que não tomava sol há muito tempo. Usava uma blusa apertada, deixando em evidencia os seios grandes, num decote largo.

─ Fique calmo. O doutor Dragos já vem conversar com o senhor. Meu nome é Jasmine. Sou a sua enfermeira.

Ela terminou a frase esboçando um sorriso e foi conferir o soro.

Dragos chegou em seguida. Tinha cerca de 40 anos. Parecia calmo, honesto e benevolente, mas eu iria descobrir mais tarde que, por trás daquele olhar manso e inteligente, se escondia uma mente perturbada, analítica e impiedosa.

─ Como o senhor está se sentindo?

─ Bem, apenas com um pouco de dor de cabeça.

─ Isso porque o senhor levou uma pancada na cabeça e também quebrou a perna. O senhor sofreu um acidente com o carro. Sou o doutor Sebastian Dragos. Estamos numa clínica psiquiátrica, por isso não estranhe os gritos por aqui. Temos alguns pacientes agitados.

Ele tirou a mão do bolso do jaleco e exibiu minha carteira, onde estavam meus documentos e algum dinheiro. ─ Tivemos que pegar seus documentos para avisar algum parente e também para preencher a ficha de internação. Descobri que o senhor é doutor em engenharia genética. Doutor Marcos Leonardo Moreau?

─ Sim, mas por que estou preso a essa cama?

─ Ah! Desculpe. – ele e a enfermeira me desamarraram. ─Tivemos que fazer isso porque o senhor sofreu uma concussão no crânio e temi que tivesse convulsões. Mas não se preocupe, os exames tomográficos não revelaram nenhum dano mais grave no cérebro. Foi apenas uma precaução. O mais grave mesmo é a perna quebrada, a fíbula mais precisamente. Por enquanto o senhor vai precisar usar muletas.

Tentei me levantar, mas me senti fraco e tonto. Voltei a deitar.

─ É melhor descansar mais um pouco. Acho até que seria melhor ficar mais alguns dias internado. Tem alguém que eu possa avisar da sua internação?

─ Não. Estou de férias, portanto não tenho pressa para chegar a lugar nenhum.

Dragos e a enfermeira sorriram, satisfeitos. E eu nem imagina o horror que iria passar naquele hospital.

***

Na manhã seguinte acordei com Dragos de pé, ao lado da cama.

─ Bom dia! Então, como está se sentindo hoje, doutor Leonardo?

─ Um pouco melhor.

Jasmine surgiu com um par de muletas.

─ Vamos tomar um café? – disse Dragos. ─ Antes vamos trocar o seu curativo na cabeça.

A enfermeira, com seu irritante mascar de chicletes, limpou o ferimento, passou uma pomada e colocou nova bandagem. Me levantei e segui Dragos. Ele me levou ao refeitório, onde tomamos café.

O médico falou de sua juventude no interior de São Paulo. Contou que sua família era humilde, pobre, as dificuldades eram grandes, mas ele não desistiu de estudar para se tornar médico. Perguntou se eu era casado, se tinha filhos e eu disse que não. Preferi não falar muito de mim. Alguma coisa me incomodava naquele lugar.

─ Eu gostaria de fazer um pedido – disse Dragos, erguendo-se ─ Primeiro vou lhe mostrar nossas instalações. Cuidamos de doentes mentais e também pesquisamos novos remédios para tratamento de doenças incuráveis. O hospital psiquiátrico fica ao lado direito, no esquerdo temos o Pronto Socorro, é onde estamos e nos fundos temos uma fábrica de medicamentos e um laboratório. Vamos?

Ele me guiou pelos corredores e salas, mostrando cada setor.

─ Estamos desenvolvendo pesquisas para encontrar a cura para várias doenças, como o câncer, senilidade e distúrbios mentais.

Parou diante de uma janela, olhando para fora. Nos fundos do pátio havia uma torre de concreto. Dela saiam canos e tubos de plásticos que se conectavam a um setor do prédio.

─ Aquela torre tem três andares, é um viveiro de baratas. Equipamentos computadorizados controlam a umidade, o ar, a luminosidade e alimentação. Sabia que a barata é o inseto que resiste a radiação, vinte vezes mais que o ser humano? Tem milhões delas ali. Os chineses descobriram que a barata é um excelente remédio para curar várias doenças. Elas nascem, vivem e se reproduzem naquela torre. Quando adultas, alcançam os canos e vão por eles para o prédio, onde tem um equipamento que as tritura, processa e transforma em pastas, pomadas, cremes e pílulas. O trabalho todo é mecanizado, controlado por computador. Esse é um projeto que pertence à mesma firma que nos patrocina. Venha, quero lhe mostrar o nosso laboratório.

Seguimos por um longo corredor e chegamos a uma ala separada do prédio, onde estava o laboratório, um laboratório com equipamentos de última geração. Imaginei que a tal empresa devia ser rica e poderosa para arcar com as despesas, especialmente na área de pesquisas. Talvez uma empresa que não queria propaganda, por isso permanecia no anonimato já que as experiências do doutor Dragos quebrava algumas regras e ignorava a moral e ética científica.

─ Estamos procurando modificar células simples que sejam capazes de suportar radiação, absorver e processar compostos químicos.

Drago fez uma pausa, parou diante de um monitor de vídeo e mostrou uma imagem.

─ Eu lhe disse que a barata é um dos insetos que resiste, até certo ponto, a radiação nuclear, mas o ser mais resistente é uma bactéria que também estamos estudando. Enquanto nós humanos resistimos mil rads, a bactéria deinococcus radiodurans, resiste um milhão de rads.

Drago meteu as mãos nos bolsos do jaleco e me encarou.

─ Estou tendo uma certa dificuldade em fundir célula da bactéria com uma célula de barata. O objetivo é modificar uma geração de baratas capazes de suportar radiação igual à bactéria. Depois faremos testes em animais. O objetivo final é dar condições para que no futuro, a raça humana possa viver em outros planetas onde a percentagem de oxigênio é baixa e a radiação cósmica é alta.

Eu tinha saído de férias com a expectativa de passar alguns dias na serra, mas acabei sofrendo um acidente, o carro capotou e quebrei uma perna. Acordei numa clínica que fazia experiências genéticas e tinha uma fábrica de remédios de... baratas! Alguém me socorreu e me levou para uma clínica psiquiátrica, onde havia um laboratório que fazia experimentos genéticos. Muito estranho, bizarro, mesmo!

Resolvi aceitar a oferta de emprego só para ganhar tempo e encontrar um meio de ir embora. Falei que começaria a trabalhar no dia seguinte e voltei ao quarto, alegando indisposição.

Naquela noite não dormi. Fiquei acordado, controlando as horas. De hora em hora, um vigia passava pelo corredor. Mantive as luzes apagadas, fingindo dormir. Passando alguns minutos da meia-noite, me dirigi para a recepção.

Fiquei escondido até o vigia sair para a ronda. Quando ele saiu, caminhei devagar com as minhas muletas até a porta e como eu desconfiava, ela estava trancada. Encontrei as chaves debaixo do balcão. Mas não consegui chegar na porta, o vigia voltava.

Corri para a primeira sala que encontrei aberta. Por uma fresta vi o vigia se sentar no seu lugar de costume e começar a ler um jornal. Agora, como sair sem que ele me visse? Percebi que estava no patamar de uma escada que levava ao subsolo. Imaginando que haveria uma outra rota de fuga, desci. Percorri um corredor na penumbra, passando por portas trancadas.

Cheguei a um espaço mais largo com dois corredores. Segui pela esquerda que me levou a uma porta fechada. A chave estava na fechadura. Torci e entrei. No alto tinha uma janela gradeada, no lado oposto ao fundo, divisei um vulto num canto escuro. Como havia alguém ali, retrocedi, mas fiquei curioso, notando que havia alguma coisa errada com a pessoa. O homem se moveu lentamente, arrastando os pés e veio para o espaço mais claro.

Fiquei estarrecido diante da criatura, metade homem, metade inseto. A parte de cima era de mosquito, ou algo parecido. Tinha olhos grandes, convexos, antenas peludas no centro da cabeça, na corcunda duas asas, pequenas demais para voar. Curvado, esticou a tromba e se aproximou. Achei que queria chupar meu sangue, não é o que os mosquitos fazem? Apavorado, procurei sair dali. Tentei fechar a porta, mas alguém me pegou por trás.

O vigia!

─ O que está fazendo aqui? –gritou, tentando me imobilizar. Com um safanão, escapei de suas mãos, mas as muletas me atrapalharam e cai. O vigia se voltou e não viu a criatura saindo pela porta. Ela o derrubou com seus braços atrofiados e o imobilizou no chão. O monstro inclinou-se, fincando a ponta da tromba no pescoço do homem e começou a sugar o sangue.

Como o monstro estava obstruindo a passagem, corri para o outro lado, aliás, tentei correr o mais rápido que podia. A perna doía, mas eu tinha que aguentar. Encontrando uma porta aberta, entrei. Subi dois lances de escada e cheguei a outra sala, cheia de armários e caixotes. Parecia um depósito. Tentei chegar do outro lado, mas escorreguei no piso de cerâmica, perdi o equilíbrio, tentei me segurar num armário, mas ele acabou tombando sobre mim.

Pronto! Pior não podia ficar!

Com as pernas presas, não conseguia me levantar. Ouvi os passos arrastados da criatura se aproximando. Achei que tinha chegado o meu fim. Então, avistei uma vassoura ao alcance da mão. Não era grande coisa como arma, mesmo assim, peguei para me defender. Bati com ela no monstro que nada sentiu, apenas o afastou um pouco. Achei que eu não resistiria muito tempo. Então, numa das tentativas para acertar os olhos do mosquitão, a vassoura enganchou numa mangueira da parede. Ao puxar a vassoura, a mangueira se rompeu, ficando pendurada e dela começaram a sair baratas. Algumas caíram sobre mim, correndo pelo meu rosto e braços.

Ao ouvir um grito de mulher, ergui a cabeça e vi Jasmine do outro lado do depósito. O monstro virou-se para ela e nesse gesto, esbarrou no armário, deslocando um pouco. Enquanto ele perseguia a enfermeira, com ajuda da vassoura empurrei o armário para o lado e consegui me levantar.

As baratas continuavam a sair da mangueira e o chão ficou coberto. Elas estalavam sob meus pés.

Avancei para uma porta que juguei dar para o exterior, mas não, cheguei a outro corredor e me deparei com outro monstro. Uma formiga enorme! Não era uma formiga comum, também era híbrido, metade humano metade inseto. A cabeça e as pernas eram de formiga, mas o tórax e o traseiro, de mulher.

A cabeça com as duas antenas balançando, as mandíbulas como uma enorme tesoura, abrindo e fechando com um som sinistro, clac, clac!

Voltei pelo mesmo caminho e no corredor, vi o chão escuro como um tapete ondulante. Eram as baratas! Corri na direção contrária e encontrei Jasmine caída no chão, o mosquitão sobre ela, arrancando a blusa dela com a tromba para chupar o sangue. Peguei um extintor de incêndio e atirei sobre o bicho. O monstro se desequilibrou e aproveitando a hesitação dele, segurei a mão de Jasmine e saímos correndo, aliás, eu pulando igual canguru.

A enfermeira me acompanhou, apavorada. Procuramos refúgio num deposito de material de limpeza, fiz sinal para que ela permanecesse calada. Procurei desviar minha atenção do corpo da mulher e aquele seu perfume cativante.

Por uma fresta espiei o corredor. O mosquitão vinha com as baratas, a formigona seguia na direção deles. O mosquito pensou que podia chupar o sangue da formigona, mas ela cortou uma das pernas dele com as pinças afiadas. O monstrengo procurou fugir, mas a formiga rasgou o seu abdômen. Pelo talho escorreu um sangue preto, tanto dele mesmo como o do vigia que ele tinha sugado.

Enquanto os dois monstros lutavam, corremos para o fim do corredor, a bota de gesso batendo forte no chão. Mas logo nos deparamos com outro monstrengo, um escorpião do tamanho de um cavalo!

Tinha uma cabeça humana, de mulher, olhos verdes, cabelos pretos, encaracolados. Não era nada bonita aquela cabeça, parecia a cabeça da Medusa. Tinha corpo e mente de escorpião. Fez uma careta horrível e avançou contra nós.

Achei que seria nosso fim, mas um tiro de espingarda abriu um rombo em seu flanco esquerdo. Era Dragos tentando acalmar seus bichinhos. O escorpião caiu de lado, estrebuchando. Dragos veio ao nosso encontro.

─ Lamento pela confusão- disse com uma expressão de cansaço e desânimo. ─ Não sei como e por que, o sistema que tranca as portas das celas foi desligado. É melhor vocês...

Ele não conseguiu completar a frase. Ouvi dois sons, um vupt e depois um crash e os olhos do médico saltaram para fora, vermelhos de sangue. O escorpião tinha enterrado o ferrão na cabeça dele.

Jasmine me puxou pelo braço e me conduziu para a saída. Mas ao chegar no saguão, havia uma montanha de baratas obstruindo a porta. Eu já não podia mais correr, estava esgotado.

Jasmine não perdeu tempo, pegou uma maca, me fez deitar nela e empurrou até o elevador. Subimos para o terraço e nos refugiamos em cima da caixa d’água. Ficamos ali até que um helicóptero dos bombeiros nos resgatou. Depois que saímos, a polícia lançou bombas de gás dentro da torre e do prédio.

Fui levado para um hospital, pois estava desidratado, fraco. Deitado na cama, recebendo soro, perguntei para o médico pela moça que estava comigo e ele respondeu que ela tinha desmaiado e entrado em coma. Achei estranho, não sabia que ela tinha sido ferida gravemente. Logo que me liberaram fui ao quarto dela.

A porta estava encostada. Bati e como não recebi resposta, entrei. Fiquei espantado e nauseado com o que vi. Sobre a cama estava Jasmine, aliás, o que restava dela, apenas a pele seca, como a casca de um inseto quando troca de pele. O que será que saiu de Jasmine? Em que bicho ela se transformou? Corri para a janela e vi algo voando na distância. Não consegui ver o que era.

Devo ter desmaiado pois quando dei por mim, me vi de novo deitado na cama, com o soro no braço. Será que sonhei? Que tive alucinações? Um médico surgiu e parou ao lado da cama.

─ O exército acabou com os monstros daquela clínica e agora está caçando uma cigarra com cabeça e peitos de mulher. – disse ele – Lamentamos o que aconteceu com sua perna.

─ O que aconteceu com minha perna, doutor?

─ Tivemos que tirar o gesso para trocar por outro.

O médico levantou o lençol e mostrou. Fiquei apavorado com o que vi.

Eu tinha uma perna de lagarto!?

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 26/11/2023
Código do texto: T7940973
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