TORNADO

Eram tempos memoráveis esses em que os unicórnios andavam sobre a terra. Existiu um, em especial, que fará parte da história a ser contada, o qual cabem homenagens e bem mais que um continho para entreter crianças e donzelas ao fogo. Chamava-se Tornado e nem preciso dizer que esse nome não foi dado por uma criatura mágica, como um gnomo, um elfo ou uma fada, mas por um humano. Uma criança é mais cronologicamente correto afirmar. E esse fato causou tanto rebuliço entre os seres encantados, que uma assembleia foi feita para debatê-lo.

— Mas isso é o maior absurdo. Veja, rainha Titânia, — pavoneava-se o prestativo duende Fagulha, folheando um livro velho — não existe relato escrito de que um humano deu nome alguma vez a qualquer criatura mágica. Isso pode se tornar uma catástrofe.

A rainha Titânia puxou o livro da mão do duende e ele caiu, rolando pela grama e causando gargalhadas entre os presentes.

— Oras. Mas aqui muitas coisas não estão escritas e não é por isso que não podemos acreditar nelas. Por exemplo, vejamos, — ela disse colocando os seus óculos cujas armações eram feitas de finas e resistentes teias de aranha e as lentes dos inquebrantáveis cristais que o elfo Goldha trabalhava com perfeição — aqui não diz o que cura frieiras e nós sabemos que o alecrim, misturado com alguns óleos específicos, é tiro e queda para acabar com elas.

— Mas rainha. O Fagulha tem razão. Esse caso é muito sério para se brincar assim. Não sabemos as consequências. E se o dia se tornar noite e o mundo virar trevas? Se as águas dos rios pararem de correr para o mar e os peixes morrerem? Nem as fadas poderão fazer nada a respeito. O que é que pode parar um unicórnio que não age de acordo com a sua natureza? — Contra-argumentou Castanha, o duende trambiqueiro. Ele trocava coisas com todo mundo e sempre queria sair em vantagem, enganando e surrupiando suas vítimas desavisadas.

— Mas quanta besteira eu estou ouvindo. Chega! Querem que eu o sacrifique, então? Isso seria pior. Um unicórnio a menos é que seria uma catástrofe. E quanto a um nome, é só um nome, bolas. Que diferença pode fazer?

— Madame. A alma da pessoa está no nome. Sua personalidade. Não se pode imaginar um unicórnio como um tornado. Pode-se? Seria o final dos tempos. — Insistiu Fagulha, fazendo a rainha cruzar os braços e sentar-se em seu trono, vencida e aborrecida.

— Que seja então. Vocês conhecem a tradição. Tragam uma donzela e com os preparativos corretos, que ela batize como se deve o unicórnio errante. Espero que todos estejam satisfeitos. Essa assembleia está encerrada.

As fadas correram para as flores, os duendes se esconderam nas árvores e a floresta desabrochou para mais um dia.

— Mas como assim não faz diferença? Bulhufas. Essa rainha está mesmo ficando gagá e não se pode fazer nada, não havendo outra rainha para substituí-la, sendo que ela foi, é e será perpetuamente a rainha das fadas.

— Pense, Fagulha. Analise com calma esse imbróglio. Quando trouxermos o unicórnio e a donzela, nós seremos os heróis e seremos finalmente reconhecidos. Ninguém mais vai rir de nós.

— Pensando assim, Castanha, meu irmão, até que você tem razão. Um pouco de juízo nessa sua cachola, heim? — Concluiu Fagulha, dando três pancadas com os nós dos dedos na cabeça do outro.

A jornada dos dois estava apenas começando e as florestas sombrias, além do reino das fadas, escondiam muitos perigos e desafios, como Malek, o gnomo descalço.

— Vamos, seu arruaceiro. Conte-me tudo o que viu e ouviu. Sem rodeios.

— Sim, ó vossa majestade Nix, rainha da noite. Eu presenciei tudo. Meus olhos e ouvidos prestaram atentamente esse serviço, para trazer-vos notícias. Eles querem batizar adequadamente o unicórnio Tornado e para isso vão procurar uma donzela. – Relatou Malek, segurando o riso com a mão na frente da boca, ao último detalhe. — Uma donzela, nesses dias. Consegues imaginar? Hi, hi, ho, ho.

— Uma donzela então eles terão. Não tão donzela assim, mas ele terão, eu vou garantir, —ironizou a rainha Nix, chutando um tatu que passava, que imediatamente encolheu-se, virando uma bola, —e depois, quando ela estiver possuída e através dela, das profundezas da terra, os vapores sulfurosos soprarem o nome do unicórnio em seus ouvidos, os dois cairão mortos e a brecha será aberta. Em questão de tempo, tudo será completamente dominado. Vamos, Malek, precisamos contar aos outros. Urdir o plano maléfico que estou arquitetando aqui.

Conforme combinado, no dia da cerimônia batismal, tudo foi preparado, mas ao apresentarem a virgem, a rainha Titânia constatou que virgem a moça não era e escorraçou aqueles duendes descuidados do seu reino, impedindo que aquilo prosseguisse. Mas o tempo urgia e quanto mais durasse a heresia daquele nome, mais riscos corriam todos os reinos, não só o das fadas. Então, atenta, a rainha Nix deixou que os duendes escolhessem certo dessa vez, mas não sem se precaver antes, e eles levaram uma moça casta para os domínios das fadas e o unicórnio.

— Seus imprestáveis. Caíram nas armadilhas da minha irmã maldosa de novo. Olhem o risco em que colocaram todos nós? Suas ervilhinhas miseráveis. Mas tudo bem. Vou conter minha ira. Precisamos acabar logo com isso para que nenhuma ameaça paire sobre nós. Que comece.

Tudo se procedeu como era costume em cerimônias como aquela. E quando lhe foi dito o nome que teria o unicórnio, a dama pura, foi violada agressivamente por Hades, que subiu dos subterrâneos para metê-la, sem dó, nem piedade, causando um terremoto que abalou todo o jardim. Vingando-se dos irmãos olímpicos de maneira sorrateira e bruta. Assim, houve trevas e o abismo crescia, para tomar conta de tudo e se tornar novamente o caos.

Nix, Hades, Pânico, Agonia, as moiras e as fúrias, os pesadelos e todo o terror e a melancolia, reinavam sobre a terra. Nesses dias a ordem natural corrompera-se e nada era lógico ou racional. Os mortos saíram de seus túmulos. Seres humanos copulavam com animais. Irmãos com irmãs. Pais com filhas. Mães e seus filhos. As flores murchavam antes de florescerem e a terra estava morrendo.

Aquele menino, que deu o nome de Tornado ao unicórnio, agora um jovem de dezoito anos, muito diferente da criança inocente que conheceu o cavalo com chifre, escondia-se debaixo de um cedro gigantesco, no esconderijo que escavou para se proteger. Seu nome era Ícaro e ele buscava uma das poucas coisas ali que podiam suprir sua fome. Um vistoso exemplar de cogumelo. Vermelho, todo pontilhado de branco, como se jogassem açúcar. O formato era o de um guarda-chuva. Suculento e mortalmente venenoso. Só que não era mais. Ele sabia. Viu criaturinhas raquíticas que sobreviveram só comendo essas espécies de fungos. Porque agora, o que era venenoso, tinha deixado de ser. Na sua bolsa ele ia colocando os que encontrava e depois corria de volta para o esconderijo, antes que as corujas piassem. Quando fechava a portinha acima da sua cabeça, sentiu um puxão e foi violentamente arremessado para fora. Um corpo decomposto e deformado, batia com as duas mãos fechadas sobre o seu estômago. O golpe violento o deixou sem ar e a dor quase o fez perder os sentidos. Depois tomou um soco na cabeça e foi arrastado.

Longe dali, em uma clareira, Castanha, sentado sobre a borda de um poço, esperava, comendo algumas cascas duras de árvores, quando ouviu um barulho. Alguém escalando as pedras escorregadias.

— Encontrou água? Encontrou água? — perguntava sem conseguir se conter, o ansioso duende.

Fagulha, com as mãozinhas pipocadas de calos e bolhas de segurar pela corda e quase sem fôlego, fazia um sinal para que Castanha desse um tempo, para ele se recuperar. Mas o amigo saiu correndo e ele ficou sem entender. Ruminando dentro de si que o outro não tinha paciência para esperar. Só que era algo mais que isso. Ele corria de um enorme rato que se pôs no encalço dos dois duendes. O bicho chegou a segurar pela unha a barra da calça de Castanha, que desesperou-se e fechou os olhos, contando com a morte certa, mas seu valente amigo Fagulha o puxou pelos braços com toda a sua força e os dois escaparam. Frustrado, o rato não fez mais questão de lutar contra aquelas presas astutas e chegou a pensar que a refeição seria indigesta, desistindo. Eles estavam salvos. Por enquanto.

Quando acordou, Ícaro foi invadido por uma dor tão descomunal, como se ele fosse um balão e inflassem ele dessa dor. Sua cabeça rodava e sua visão estava embaçada. Aos poucos, quando ia percebendo sua real situação, ele observou o seu corpo e percebeu que não tinha as duas mãos e as duas pernas e um cheiro insuportável de carne queimada empesteava o ar. Eram seus membros decepados que foram cauterizados pelo demônio sequelado, que por alguma razão qualquer, entendeu que isso o manteria vivo. Estava deitado, amarrado e sobre o local, um machado ensanguentado e pedaços de carne, ossos e pele. O seu desespero o fez reagir violentamente, se machucando ao tentar se desvencilhar das amarras. Depois de um tempo percebeu que era inútil sem os membros.

Era estranho notar porém que havia certos métodos mesmo em suas cantilenas e seus preparos. A forma como usava ferramentas, facas. Os cortes e os molhos e que esses momentos em que uma parte sua não era arrancada abruptamente, serviam para fazer algum juízo da criatura.

A cantoria que escutava ao longe, se aproximava. Era aquele monstro que o surpreendera prestes a fechar a porta do seu esconderijo. Aquele cheiro de mijo e merda misturados e curtidos e de cem litros de suor bolorento era inconfundível. Vomitou, fazendo todas as suas entranhas se contorcerem e até que nada mais restasse no seu estômago, além da sua bile.

— Erva, sim. Bom. Mistura, mistura. Eh, he. Buah, buah. — A criatura jogava ervas frescas no caldeirão e mexia. A maior parte das coisas que saíam de sua boca eram gemidos e ganidos, coisas sem sentido. Frases incompletas e desconexas. E isso fez Ícaro desmaiar. Saber que aos poucos estava servindo de jantar para aquele monstro. Desmembrado para ir parar na barriga de alguém, isso foi intenso demais para ele suportar.

Nos cumes mais altos do reino, Castanha e Fagulha seguiam seu caminho. O cansaço e a fome não paravam esses heróis, que determinados, tentavam consertar o que eles mesmos causaram.

— Vamos morrer antes de alcançar a Montanha Mágica. Não vamos conseguir, Fagulha.

— Precisamos tentar. Se não, todos morrem. O mundo acaba.

— E isso é só o começo. Quando conseguirmos que o Uno, senhor de todos os unicórnios, religue a ponte com o chifre do Tornado, ainda temos que ressuscitá-lo e só o que pode fazer isso é um ato de bravura e sacrifício e onde vamos encontrar tal herói, capaz de se sacrificar por todos?

— Talvez não encontremos. Quem sabe morramos no caminho. Ou se encontrarmos tal pessoa, pode ser que ela se prove covarde e vacile na sua missão. Mas isso é o que está escrito. É o que tem que ser. Não temos outra escolha.

— Veja, lá, naqueles rochedos, um pessegueiro. Os frutos estão bons. Aqui, nos confins da criação, o mal não chegou. — Alegrou-se Castanha, apontando e correndo na direção da árvore frutífera. Matariam a fome e a sede com os suculentos pêssegos.

Ícaro, mais uma vez, acordou, não de um pesadelo, mas para o pesadelo que tinha se tornado a sua vida. Seu pedaço restante. Braços sem mãos, um tronco e cabeça, fora jogado em uma cova rasa enquanto o morto-vivo o cobria com terra, entoando aquela cantinela insuportável, que doía em seus ouvidos. "Não bom. Nada, nada bom. Humano ruim. Gosto ruim. Blar!"

Protegeu sua boca e nariz com os tocos dos braços para que a terra não entrasse pelas suas vias respiratórias. Enquanto era enterrado, ele conjecturava sobre os motivos de aquele zumbi não tê-lo devorado inteiro e se isso não era melhor do que deixá-lo naquele estado. Fosse pelo gosto, como soubera pela sua canção desafinada. Mas pernas. Uns bons nacos de quartos trazeiros fazem um belo presunto, com certeza. Mas por que não seu cérebro? O que se contava sobre os zumbis estava errado afinal. E quem realmente sabe sobre essas coisas? Agora ele sabia. Da pior forma possível, ele sabia. Depois de uns minutos, os quais se sentiu seguro para seguir adiante, Ícaro arrastou-se para a próxima cova que encontrou e escavou com uma dificuldade enorme, mesmo que a sepultura fosse recente. Suas extremidades recém amputadas e sem cuidados médicos, doíam muito ao serem tão castigadas pelo esforço colossal. Mas ele persistia. Porque como bom entendedor e praticamente de magia e necromancia, precisava desmembrar um corpo morto e com os pedaços, suprir sua falta desses mesmos membros. Mas aquela cova também era ocupada por um tronco desmembrado, como o dele. Não resistiu cavar de novo e procurou descanso numa cabana abandonada às margens do arroio. E dias depois, quando encontrava-se apto a recomeçar as escavações em covas, surpreendeu-se com um barulho de porta batendo. Uma moça assustada entrou correndo e foi se esconder ali. Não se comoveu quando viu o ocupante desmembrado que a precedera, mas fez sinal de silêncio, com medo de ser descoberta por quem a perseguia. Jaqueneta, a formosa moça, apiedou-se daquela pobre alma e o ajudou nos seus intentos macabros. Escavaram nova sepultura recente. O que não faltavam nesses tempos sombrios eram sepulturas. Esquartejaram o cadáver para que a necromancia começasse . Remendou-se com as partes subtraídas e teve que esperar algumas horas para que pudesse se mexer.

Na volta do caminho, com a ponte entre o chifre do unicórnio Tornado religada, os dois pequenos guerreiros só tinham que encontrar seu herói e dessa forma ressuscitar o animal sagrado. Porém, o desespero e a desolação que encontravam em todos os cantos, os faziam perder a esperança a cada passo. Gritando, uma jovem com as roupas estropiadas e quase nua, buscava por ajuda. Alguém a perseguia e a alcançou perto de uma árvore. O homem a esganou, usando toda a sua força para dominá-la. Depois despiu-se e arrancou os farrapos que ainda a cobriam, atentando contra as investidas aguerridas da donzela que não se dava por vencida. Os duendes, vendo isso, agiram o mais rápido que puderam. Um deles subiu sobre o homem truculento e nos seus ouvidos, fez cócegas. Enquanto Fagulha amarrou os cadarços dos sapatos dele, um no outro. O sujeito, irritado com as carícias de Castanha, deu um tremendo tapão na própria orelha e tentando correr, caiu com a cara no chão. A moça, sem se mover e tremendo, desmaiou ali mesmo. Eles ficaram com ela e a ajudaram. Aquela vítima aflita era Jaqueneta, que fugira de Ícaro, depois dele também tentar abusar dela. O jovem moço era virgem e não conhecia mulher e em seu desespero, entregou-se ao ato repugnante. O mesmo homem sobre a proteção do qual ela tinha se livrado desta besta faminta, que não desistia de tentar desonrá-la. Esse jovenzinho, aparentemente frágil, em quem sentiu amizade e segurança despertarem pela primeira vez desde que fugiu de casa. Ele foi quem, mais tarde, tentou igual.

Os três se tornaram bons amigos e passaram a seguir juntos. No trajeto enfrentaram alguns obstáculos. Zumbis, ogros e ladrões, mas como uma orquestra bem afinada, aqueles dois duendes sempre tinham um plano infalível e a humana estava aprendendo a ser mais preparada e esperta.

— Estes presentes, minha caríssima dama, não devem ser bem quistos pela senhorita, trazendo à tona a lembrança dos assediadores bestiais que os concederam. Seria mais proveitoso dár-lhes para que eu os vendesse no mercado lucrativo dos gnomos do sul. Ganharia algumas pepitas, as quais uma pequena parte, um mísero décimo, ficariam para mim por comissão. — Propôs Castanha, referindo-se às joias que Jaqueneta ganhou de presente de alguns de seus "conquistadores".

— Oras, vamos, seu aproveitador, — alardeou Fagulha, colocando Castanha em seu devido lugar, — respeite a dor da moça ao menos e não venhas querer negociar em um momento desses.

— Não, não. Ele pode ser razão, Fagulha. Eu preciso de algumas moedas para tentar reencontar a minha querida mãe. Voltar para o vilarejo de onde eu fugi. Pedir o seu perdão e aceitação. Precisarei comprar informações, transporte, hospedagem. Não se consegue nada no mundo dos homens sem o dinheiro, não é?

— Moça esperta, Fagulha. Viu só? Aprenda um pouco. Boa invenção vossa, digo dos humanos. O ouro é o tesouro da terra. Vocês nos pagam favores por ele e por ele nós, mais que vocês, existimos.

Mas nada poderia os preparar para o que estava por vir. Ícaro. O jovem surpreendeu Jaqueneta ao sair de trás de uma moita quando ela se aproximava do local onde jazia o unicórnio Tornado. Derrubou-a no chão, mas foi todo espetado por Fagulha, que carregava espinhos recém colhidos de porcos-espinhos.

— Para, para, para, para. Eu desisto. Chega. Para de me espetar com isso.

Os duendes ligeiros o amarraram com cipós e depois de um exaustivo interrogatório, instigado por espetadas doloridas, eles cederam e se acalmaram um pouco. Percebendo que Ícaro não parecia mais tão ameaçador, contaram toda a história do unicórnio e as consequências que originaram aquelas trevas e todo o caos e o papel deles naquela missão.

— Eu sou aquele menino. — Ele disse. — Fui eu quem batizou o unicórnio. Me desamarrem. Eu quero me sacrificar. Serei voluntário. Pode ser através das suas mãos, moça bonita. Eu nunca experimentei o amor. Talvez os dois, amor e redenção, sejam alcançados com o golpe desse punhal, nas mãos da minha mais doce esperança e do meu mais cruel carrasco.

Eu lamento muito pelo o que eu te fiz. Eu não queria forçá-la a nada. Eu só queria ser amado. Nunca fui amado. O único ser que já me amou foi esse unicórnio, o qual eu desgracei. E agora terei finalmente minha rendenção. Não me resta mais nada. Éo que tem que ser feito. — Concluiu o jovem, deixando rolar uma lágrima.

Estava livre, sem as amarras. Os três choravam por ele. Mas ele aceitava o seu destino, resignado, calmo. Tornado repousava, com a energia vital do chifre o mantendo em dormência transitória, sem que a mãe natureza pudesse agir para decompôr seu corpo. O punhal oferecido por Titânia, a rainha das fadas, estava pronto para agir na mão vascilante de Jaqueneta. Até que ela numa estocada rápida e firme, cumpriu o seu papel sangrento. Abraçados, eles pareciam ser um só, por alguns segundos. Depois, corajosamente, ela seguiu o ritual, como tinha que ser e espalhou o sangue do sacrifício por todo o animal. O chifre agora brilhava e cintilava. Tornado relinchou e distante, no horizonte o sol despontava finalmente, tirando de seus esconderijos todas as criaturinhas mágicas, que saltitantes e alegres, preparavam-se para a cerimônia vindoura. Tornado teria proclamado seu verdadeiro nome, sussurrado para uma virgem, dos confins distantes da terra. Jaqueneta, que pela bravura dos dois duendes, Fagulha e Castanha, manteve-se pura. Os dois heróis estavam bem de novo aos olhos dos moradores do reino e perante a rainha das fadas, Titânia.

Jaqueneta, Castanha e Fagulha sorriam satisfeitos e orgulhosos. O sol brilhante finalmente desportou, flores voltaram a desabrochar e um arco-íris apareceu no céu dourado, depois de uma rápida chuva de verão. Tornado, saltava, se exibindo e galopando. O nome que Ícaro ingenuamente lhe deu e que causou tantos transtornos a todos, foi uma forma de gratidão, depois que o unicórnio o protegeu desse fenômeno furioso da natureza, o domando e o fazendo cessar de vez. Mesmo agora com a chuva fina escorrendo o seu sangue do lombo do animal, encharcando o solo, seu espírito satisfeito encontrava abrigo, o fazendo se sentir amado mais uma vez, como antes.