TRÍTONO DA BESTA - fim

Ramon queria compor algo diferente, uma novidade, mas achar uma letra que combinasse com as notas era difícil. Então lembrou da fórmula antiga, escrita com a pena de sangue de bode, o Pai Nosso cantado. Ele invertiu o Pai Nosso ao contrário intercalado com Trítonos, resultando num som pesado, grave, angustiante. Enquanto tocava concentrado no violão a melodia maligna, não ouvia que lá fora as corujas começaram a ulular, acompanhadas pelos uivos dos cães em alvoroço, numa balada sinistra de mau agouro. Quando terminou de tocar a música, escutou o relincho dum cavalo, afastou a cortina da janela para olhar. Na rua um homem de chapéu cavalgava num corcel negro. Por um momento, o cavaleiro encarou a face de Ramon na janela e seus olhos se encontraram. O cavaleiro tinha olhos vermelhos, escamas como reptília, armado com um tridente de ferro com cabo de serpente. Ele abriu sua bocarra exibindo as presas longas como uma cobra. Diante da imagem dantesca, Ramon correu e barricou a porta com uma cômoda. Tomado de pânico, suava frio, escutando o ruído das patas do animal se aproximar de sua casa. O cavalo dava coices na porta com as patas tentando derrubá-la, soltando relinchos diabólicos, exalando das ventas um vapor ocre de enxofre.

Ele havia feito um sacrilégio e sabia disso. Era mesmo verdade que aquela melodia cheia de Trítonos chamava o diabo, ele havia invocado a besta, ela havia escutado. Ele apagou todas as luzes, maldizendo não ter ninguém para ajudá-lo, até a tua sombra te deixa quando voce está no escuro.

Tateando nas trevas, foi para o quarto e retirou da gaveta a folha com as notas da música do diabo, procurou um fósforo e botou fogo. Ficou calado observando as chamas vermelhas como sangue consumirem o papel. Escutou o relincho animalesco e trote das patas do cavalo infernal se afastando dali.

Ramon passou toda noite em claro, sem conseguir dormir. Ao amanhecer, criou coragem e saíu de casa, viu que na porta de madeira havia marcas de ferraduras.

Tomou um ônibus e foi para Saragoza, comprou um grande crucifixo de madeira, depois banhou com água benta numa igreja.

No final do dia retornou para Trasmoz, e pendurou o crucifixo na porta no lado de fora, para se proteger do ser das trevas.

Durante a noite enquanto ele dormia, o crucifixo na porta se virou de cabeça para baixo.

Algumas semanas depois o cemitério de Trasmoz tinha uma nova sepultura, a do músico Ramon Ortiz, que havia morrido numa clínica em Saragoza, acometido por uma doença misteriosa, desconhecida.

O médico tanatólogo que fez a autópsia, achava que a alma de Ramon havia sido retirada do seu corpo, por isso escreveu no laudo de óbito apenas, "morte por causa indefinida". O médico sabia que num vilarejo excomungado, onde a maldição vigora até hoje, nem tudo a medicina pode esclarecer.

FIM

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NACHTIGALL
Enviado por NACHTIGALL em 16/12/2023
Reeditado em 16/12/2023
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