O CADILAC

Em uma noite clara, a lua cheia coroava o manto escuro com os seus raios prateados, refletidos da sua superfície poeirenta e leitosa. Os grilos e corujas entoavam a melodia predominante daqueles campos sombrios. Não muito longe dali, um grupo de cinco jovens acampava. Queriam beber, se divertir e contar boas estórias assustadoras em volta de uma fogueira. Quem começou foi Lilica. Os outros aguardavam ansiosos ela limpar os óculos na manga da blusa.

— Isso aconteceu comigo e não estou inventando, — disse e parou. Olhou em volta, para cada um, nos olhos. Todos pareceram levá-la a sério. Com exceção de Ringo, que soltou um risinho escrachado.

— Ah, vai. Conta logo. Para de mentir. Só conta a história. Sem essa de que “aconteceu comigo. Vocês tem que acreditar.” — caçoou ele, imitando voz feminina e fazendo gestos, sacudindo os braços.

Lilica mordeu os lábios superiores e também os inferiores, como sempre fazia quando estava nervosa. Ringo não ia tirá-la do sério dessa vez, ela disse consigo mesma.

— Foda-se se vocês acreditam ou não. Foi assim e eu vou contar. Há umas duas semanas, quando fomos passar uns dias na casa da minha tia-avó Marta, aconteceu algo muito estranho. Tão perturbador que ainda ao relembrar eu sinto calafrios, — e passou a mãos nos pelos do seu braço esquerdo, que verdadeiramente tinham se eriçado — foi uma coisa que eu não consigo explicar racionalmente, se não uma visão, alucinação ou sonho. Mas foi real, eu garanto. Tão real quanto estou vendo todos vocês agora.

— E quem sabe o que é real? Talvez nada seja. Ou nem existamos e tudo não passe de uma programação da matrix.

— Ah, qual é, Janice. Não venha você filosofar de novo. Deixa ela contar a estória, vai — retrucou Leandro, o mais atento dos quatro que ouviam. Janice respondeu com o indicador e o polegar encostados frente a boca e passando-os de um canto a outro, como um zíper.

Foi na primeira noite que passei lá. Meu tio-avô Firmino tinha um desses cadillacs pontiac dos anos 50, azul turquesa, perolado. Lindo, bem conservado, com os aros brilhando como as estrelas e os pneus tinindo. Ele adorava o carro desde moço, quando o adquiriu. Mas dizem, à boca pequena, uns dez anos pra cá, depois de um acidente, o deixou na garagem e nunca mais o tirou de lá e nem deixa ninguém chegar perto do carro. O cobre com uma lona preta. Mas a minha curiosidade naquela noite não me deixou dormir e eu tive que levantar e arriscar uma espiada. Fui até a garagem, sem antes deixar de passar na cozinha para tomar uma água, caso fosse vista, teria esse álibi e então à garagem. Tirei a lona que o cobria, forcei a maçaneta e por sorte a porta do carona estava aberta. Entrei e sentei naquele banco estofado em couro branco. Todo trabalhado. Os vincos e a costura muito bem acabados. Passava a mão e podia sentir a eletricidade percorrer o meu corpo.

Uma sensação única. Mas queria segurar aquele volante. Sentar no banco do motorista. E foi o que eu fiz. O grande volante metálico singrou em minhas mãos tão leve, como um navio no mar. Mais uma vez aquela sensação poderosa me invadiu e enquanto eu aproveitava esse momento eu vi uma coisa. Algo que fez o meu sangue gelar na hora. Um reflexo, uma mudança de luz no espelho retrovisor do para-brisa. Olhei de novo, fixamente dessa vez e tinha sumido. Escutei um barulho e consegui ver da exígua abertura da janelinha da garagem que uma luz fora acesa na casa. Era a luz do banheiro. Preparava-me para sair dali quando de novo aquele vulto foi percebido. Dessa vez ficou para me assombrar. Era uma velha. O cabelo bem branquinho e alvoroçado. Os dentes podres e um sorriso maligno. Depois de um tempo, olhando assustada, esqueci-me completamente da ameaça próxima. Alguém que perambulava pela casa. Provavelmente o velho. Meu tio-avô Firmino. Abri a porta e virei-me para sair quando eu ouvi:

— Quer dar um passeio em mim, pirralha? Vamos sacudir essas ruas? Riscar o asfalto com fogo do inferno?

Quando eu ia perguntar do que ela estava falando, a porta se fechou, o carro ligou, sem que as chaves estivessem na ignição e o motorista fantasma ou o que quer que estivesse operando aquela máquina endemoniada, disparou em marcha a ré, arrebentando a porta da garagem e desaparecendo pela noite sem lua. Firmino apareceu com um roupão felpudo cinza e chinelas e só o vi de relance quando corria gritando: — Gretchen, Gretchen, onde você vai, sua vagabunda? Onde está indo com a minha sobrinha-neta?

Lilica respirou fundo e ficou olhando para baixo, encarando suas mãos cruzadas em seu colo. A perplexidade geral ainda não fora percebida por ela. Mas o seu coração palpitava ao reviver aqueles momentos.

— Tá, mas e aí? Foi isso? O que aconteceu depois, na estrada? Um carro fantasma te leva pra dar um volta e você não vai contar pra gente?

O questionamento de Ringo, que agora se mostrava o principal interessado, era reverberado por todos ali. Os olhos arregalados e atentos a sondavam famintos de curiosidade. Leandro abriu a caixa de isopor e distribuiu mais cervejas. O círculo se fechou mais em volta dela.

— Eu queria reviver isso. É muito perturbador pra mim. Mas sim, foi isso. O carro só corria feito uma máquina bestial de um pesadelo tido por alguém que dormisse no inferno. Era apavorante e ainda assim frenético, cômico de um jeito ridículo e acelerado, como se reproduzíssemos um vídeo em duas vezes a velocidade. Ela ficava dizendo, a velha cuja presença só podia-se notar de dentro do espelho retrovisor do para-brisas, “Cavalga em mim, cadela. Sua puta arrogante e feia. Seu avô me deve. Ele vai pagar mais caro do que qualquer um que já cruzou o meu caminho.” E mais a frente continuava, depois de gargalhadas estridentes “Quem mandou tirar a minha vida? Eu sou o que ele mais amou na vida agora. Sou o carro. Fiz ele detestar aquilo que tanto amava e ter que viver com isso o resto da vida. E não descansarei até que ele também morra.” E mais gargalhadas e xingamentos. Por fim a polícia estava em nosso encalço e ela parou, deixando que eu fosse pega. Passei a noite na cadeia. Meu tio-avô não quis ir lá me tirar de tão irado que ficou. E também porque ele é um babaca, né? Fala Sério. Era isso. Eu enlouqueci e tive uma crise daquelas, roubei o carro e saí em disparada por aí como uma adolescente rebelde. O que mais eu poderia dizer? Mas ele sabia, o desgraçado. A forma como me olhou. O sorrisinho debochado denunciando que ele sabia que eu sabia da velha que possuiu o carro. Nossa. EU peguei nojo desse cara.

Olívia foi a primeira a se manifestar depois de ouvir aquilo. Ela tinha algo que sentia que deveria dividir com todos também. Uma semelhança no mínimo absurda demais para ser ignorada.

— Isso me fez lembrar de um verão que eu passei nas montanhas com a minha família. Eu tinha oito anos. Era uma criança. Eu nunca vou esquecer dos dias que eu passei lá por dois motivos. Um, porque era o cenário da maioria das histórias macabras que meus avós me contavam sobre bruxas e lobisomens e o outro foi por causa do que aconteceu no final de tarde do terceiro dia de nossa estadia por lá. Nesse dia eu tomava banho em um rio próximo com meus familiares e alguns amigos que conheci por ali e depois de algumas horas muito agradáveis de diversões e brincadeiras eu me afastei um pouco para conhecer o lugar. Fui parar na floresta, entretida com a beleza do lugar. Colhendo flores e frutas, como chapeuzinho vermelho. Distraída e deslumbrada. Quando a vi pela primeira vez, minhas pernas ficaram bambas. Eu não senti meu corpo. Fiquei tonta. Parecia que eu ia desmaiar. Era uma velha assim, exatamente como você descreveu, Lilica, — As duas se olharam assustadas. Lilica não estava preparada para aquilo. Tanto quanto Olivia não estava quando a amiga fez a descrição detalhada da velha que ela viu na floresta naquele dia.

— Isso é impossível. Olivia. Você está insinuando que elas são a mesma pessoa?

— Eu realmente não sei. Mas deixa eu concluir minha história.

— Agora isso tá mesmo ficando assustador, — advertiu Ringo, o palhaço da turma. Não estava brincando. Ele estava mesmo com muito medo.

— Continuando. A velha me olhava de baixo, com o lábio superior repuxado e os dentes podres. Começou a rir e foi como se uma xilogravura antiga de bruxa reencarnasse numa pessoa. Ela me encarou fundo nos olhos e disse: “Sinto o cheiro do seu medo. Não se preocupe. Sentir medo é bom. Mantém você viva!” e soltou uma gargalhada medonha que ecoou pela floresta. Eu me mijei toda. Mas como estava com roupa de banho, isso não foi tão ruim. Só precisava voltar para o rio e me banhar e estaria tudo certo. Só que isso ainda nem tinha sido tudo. O pior ainda estava por vir. Quando voltávamos para a cabana em que nos hospedamos, depois de uma curva perigosa na estrada de barro, um cadilac azul turquesa veio a toda a velocidade no sentido contrário e atropelou alguém. Também acabamos nos envolvendo no acidente. Pois na tentativa de desviar da pessoa que atravessava, o carro virou em direção a nós, já que do outro lado o que havia era o desfiladeiro e a morte certa. Mas pegou de raspão e por sorte nenhum dos ocupantes se feriu gravemente. Quando saímos para ver a desgraça, para meu espanto, a pessoa que estava caída e ensanguentada no chão era aquela velha que eu vi na floresta. Morta. Seus olhos abertos encarando o vazio e aquele leve sorriso irônico no rosto.

Nesse momento muitos burburinhos foram ouvidos e Ringo pediu uma pausa para ir ao banheiro e abrir mais uma rodada de bebidas. Todos só falavam sobre as coincidências daquelas duas histórias. Alguns especularam que Olivia talvez só estivesse inventando tudo. Porém seu jeito natural de falar passava a segurança de alguém que falava a verdade.

Leandro retomou as narrativas sombrias com uma garrafa de cerveja, sentado sobre um latão de diesel vazio.

— Na minha cidade se ouve esse caso que aconteceu há uns nove anos mais ou menos e coincide de forma impressionante com o tempo em que Olivia passou seu verão tenebroso nas montanhas. Aconteceu que esse acidente que ela relatou se passou dessa forma que eu vou contar. A vítima que morreu atropelada era uma cigana e o que dizem as lendas sobre a morte dela, é que ela não morreu na hora. Mas alguns minutos depois. Bem depois. Conta-se que enquanto estavam sozinhos, o homem do cadilac e ela, ele ouviu um gemido e se aproximou. E que ela jogou uma maldição sobre ele que no dia em que ele morresse, a alma dela se libertaria e a sua própria alma seria prisioneira daquele automóvel até que os dias e a eternidade se consumassem. Por isso que ele, depois desse dia, nunca mais usou o carro. Com medo dele. A alma dessa velha está presa no carro. Ou o carro é possuído por ela de alguma forma. Ele fez coisas com o carro. Tentou queimar, desmontar, vender as peças. Mas como mágica o monstro mecânico se remontava ou se reconstruía de alguma forma.

— Hum, — suspirou Lilica, — Entendo agora a expressão dele quando qualquer um na família mencionava o carro. Ele ficava pálido e não comentava. Até saía de perto.

— Contamos os três a mesma história aqui hoje — concluiu Leandro e por alguns segundos um silêncio soturno envolveu a todos. Os olhares perdidos viajam em pensamentos gritantes e aflitivos que dançavam pelos ares gelados. Nem o fogo era mais suficiente para aquecer-lhes aquela noite. Não depois de tudo o que ouviram.

Na manhã seguinte Lilica tomava o café da manhã enquanto o pai lia o jornal. Ele ainda não se dera conta da notícia que estampava a capa. Um velho morto com a boca aberta e a cabeça reclinada no banco do seu cadilac. Os miolos estourados e sangue respingado por todos os lados. O couro branco, imaculado, agora manchado de morte. A menina deu um grito quando percebeu o que o sangue tão nitidamente desenhava no estofado. Era o rosto do velho. Tão nítido e perceptível, que era impossível ignorar. Um rosto de desespero. De alguém que acabara de ser surpreendido por uma assombração.