A Fuga

Poderia ter acontecido em qualquer pequena, organizada, pacata, ou limpa cidade do interior. Mas aconteceu em São Luiz do Paraitinga, a cerca de cento e setenta quilômetros de São Paulo, que - a bem da verdade - também não abdica de muitas dessas qualidades. André acabara de estacionar o seu automóvel numa rua sem saída e rumava em direção ao centro da cidade, de mãos dadas com Letícia, sua noiva. Era a primeira vez que visitavam São Luiz, por ocasião da Festa do Divino, e tudo encantava: a expectativa das inúmeras apresentações dos grupos folclóricos locais e das diversas cidades vizinhas, as ruas de paralelepípedo, os calçamentos bem cuidados, os postes antigos, os jardins e suas respectivas casas de antigas fachadas preservadas. Deslizavam nesse pequeno deleite naquela agradável manhã de outono quando, ao virarem uma esquina, numa minúscula viela transversal se depararam com uma imagem inusitada: uma senhorinha, talvez septagenária, empenhava-se em transpor uma janela. A mulher, magrinha e muito ágil para a idade que aparentava, virava-se com cuidado sobre a base larga da peça - instalada em uma grossa parede antiga - não deixando dúvidas de que empenhava uma fuga do local. Provavelmente por se tratar de uma via totalmente fora do contexto e roteiro festivo, a mulher bem passava despercebida de todos.

Os dois se olharam, como que para confirmar que seus olhos não os traíam. Foram ao imediato socorro da anciã que corria risco de uma grave queda do peitoril.

- Aonde a mocinha pensa que vai? - brincou Letícia, com seu carisma peculiar. Ao mesmo tempo piscava e meneava a cabeça para André para que este procurasse algum morador da casa e denunciasse a fugitiva.

A senhora fez cara de brava, mas aceitou a brincadeira, abraçando, com as mãos frias, imediatamente o braço da moça, que lhe era oferecido em semi arco:

- Não apenas penso, como vou!

Seguiram as duas, em direção a uma bomboniere próxima, enquanto Letícia levantava a voz para indicar ao noivo que estariam ali por perto. Ocuparam uma pequena mesa redonda, instalada na calçada e abrigada por um guarda sol. A moça pediu uma água com gás. A senhorinha não quis nada e foi, de certo modo, fácil ficar "invisível " para a atendente que não sorria nem encarava ninguém. Letícia voltou ao assunto, inquerindo sutilmente os motivos que culminavam numa empreitada tão extrema.

- O que a senhora, dona... Como se chama? E o quê pretendia pulando a janela?

- Rita. Assim como a Rita Lee. E fugir, oras bolas! Você acredita ser possível fugir por uma porta sem que o percebam?

- Mas fugir de quem, meu Deus? Maltratam a senhora? Está sendo aprisionada?

André continuava sua peregrinação pelas redondezas. Na casa da mulher não havia ninguém. A vizinhança deserta. Muitos deviam possivelmente trabalhar no comércio naquela cidade com tantos atrativos turísticos e em meio à uma das festas mais importantes do ano. Por certo encontraria alguém que conhecesse a velhinha, mas Deus sabe quando... À medida em que ele avançava alguns quarteirões no sentido centro da cidade, o barulho ia aumentando por conta das apresentações simultâneas dos grupos.

Mas a bomboniere que elas escolheram situava-se em direção oposta, na "entrada" da cidade, portanto longe da agitação. A anciã conservava um ar cabisbaixo, comum aos que são surpreendidos em erro.

- Minha filha... - disse, ao pé do ouvido de Letícia - queria fugir desse marasmo... Você sabe... Essa gente toda olhando para esses aparelhinhos o dia inteiro. Crianças, jovens, velhos... Todos zumbis. Escravos das telas. Como isso aconteceu? Como ninguém pôde prever e impedir isto!?. Parecem mortos... sugados pelo mórbido interesse em um "nada" perpétuo... - referia-se aos aparelhos celulares, sem dúvida, e isso parecia incutir-lhe terrível sofrimento e contrariedade.

Letícia emudeceu. Agora, mesmo a água não passava facilmente por sua garganta. Por breves segundos experimentou um leve arrepio nos braços. Um frio repentino. Sentia-se acusada. Fazia - também ela -parte daquela "legião de zumbis digitais"? As pessoas que trafegavam pela calçada agora lançavam-lhe olhares curiosos, quase interrogativos. Ela não compreendia a quanto tempo isso se passava. Parecia ter mergulhado numa bruma atemporal. As flores de hibisco, por exemplo, do outro lado da rua, alternavam de cor, textura e nitidez; como se a imagem dependesse de uma bateria fraca. Uma inexplicável vertigem tomou conta de si. Dona Rita a encarando com seus olhos cada vez mais tristes... Dona Rita... Os zumbis digitais... Perdia o equilíbrio... Mergulhava para sempre numa tela onde jamais a encontrariam... André... Onde teria se metido André?

Ele reapareceu. Finalmente, esbaforido, deixou-se cair na cadeira antes ocupada pela velhinha. Letícia voltou parcialmente a si, bastante aparvalhada.

- Aonde esteve? Não conseguiu descobrir nada? Ninguém procurando por ela, por dona Rita?

- Amor - conseguiu articular André - eu caminhei para cá, e depois para lá, no sentido do centro, e finalmente para cá novamente. Como uma barata tonta. Aquela casa está fechada há mais de vinte anos. No final da rua apenas uma senhorinha de muita idade se lembra da dona Rita. Praticavam caminhada juntas. Disse que a família a levou da cidade há mais de trinta anos, quando ela já contava mais de sessenta. Procuravam melhores recursos para o tratamento de uma grave doença. Mas nunca mais ouviu falar da amiga. Aliás, cadê a senhorinha?

- A dona Rita... - balbuciou a moça - ... Estava comigo todo esse tempo... Sentada nessa cadeira... Você está brincando comigo?

Também a atendente, depois de interrogada, disse que vira Letícia chegar e permanecer na mesa, falando sozinha, deixando escapar entre os dentes "como uma doida".

Depressa o casal pagou a água e deixou a cidade, totalmente chocado. E por muitos anos essa história perturbou suas mentes.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 14/01/2024
Reeditado em 07/04/2024
Código do texto: T7976431
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