O marujo e o capitão (H-C)

Era prisioneiro, escravo duma embarcação. Dias e mais dias esfregando o chão de madeira escura, amarrando grossos laços, içando* velas, gritos e safanões, para findar o dia nas entranhas do barco num limbo de cela. Cativo permanente na inconstância, não tinha alcance nem da lembrança de como fora parar ali, daquela maneira, que crime lhe ocorreu. Podia mais pensar haver ali um castigo de tempos muito remotos, ou apenas esquecer isso e aceitar: refém no meio do mar, não importa prazo de sentença nem se ela mesma há, as leis meramente se obscurecem tal qual o fundo das águas, a voz é a da espada e assim se resolvem as coisas, os mais fracos rompendo o ser na servidão.

Seguia mais um dia em que, não encerrado certo serviço num dado tempo, um marujo acertou uma coronhada na cabeça, e acordara com um esfregão lhe acertando o rosto vindo dum outro igual se apressando para limpar a sujeira. A única coisa que pôde foi tornar ao trabalho. Se dando ao luxo das distrações, notou, depois de muitos dias, meses, sons de gaivota – sinal de terra. Quando desviou o olhar, lá estava: uma ilha. Ainda muito longe, mas se podia ver uma ponta de colina. Imediatamente, sinos tocaram no alto, gritaram, portanto: “Terra a vista!”. Quando os tantos marinheiros surgiram e, consigo, o capitão, a situação pareceu menos chamativa. O chefe apenas se virou, fazendo pouco caso, dizendo aquilo ser uma besteira, e que a terra buscada era outra, a qual já navegava por anos procurando. O fastio de todos foi perceptível, mas, com uma firme chicotada no chão, ressoante por todo o mar, largaram os murmúrios e tornaram ao trabalho, enquanto o capitão fechou-se novamente em sua sala.

Vendo todo o feito, e percebendo que permaneceria tudo ainda na mesma situação – ainda mais a sua, lastimável -, não deixou de cultivar em si uma insatisfação maior do que todas as outras desde então. Não era propriamente raiva, mas ímpeto pela mudança. O que, afinal, o impediria de pular nas águas e dar fim ao sofrimento? Ou mesmo: passando ao lado da ilha, como iria acontecer, quem conseguiria impedi-lo de largar o navio? Que diabo de servo era, que valias tinha, para interromper um barco tão grande como aquele, só para ser posto novamente? Pensou livremente em difusões, dando ao diabo. Assim que se aproximasse bastante, daria novas razões à sua vida. A ilha se apresentava cada vez maior, um pulso de ilusão frente ao entusiasmo, um recanto banhado ao ouro da luz, tudo lá era aberto. Os iguais, escravos, todos pararam os serviços e se puseram a ver também o encanto que escorria no espaço, bem ao lado deles, próximo, a carcaça da nave quase lambia o branco da areia. Até mesmo os marujos, até o capitão, aquele que desdenhou, apareceram para ver, apesar de impelirem agitos.

Nesse momento, extasiado, quase possesso, ergueu uma luz interior e invadiu as fronteiras do proibido – para os cativos. Correu e tomou impulso para o salto, se arremessando ao ar, quase um lapso infinito, no qual se apegava ao som do vento forte para embaralhar os gritos que viriam do barco... mas de lá nada ouviu. Aterrissou na água e nadou rapidamente para o chão, enquanto o navio seguia tão quietamente quanto o céu. Quando largou o espanto do feito e encarou os que partiam, estranhou, aos infernos, ser tão insignificante que todos eles, não largando um único ruído de manifestação, voltaram ao cotidiano com a mesma banalidade de sempre. Ao diabo, que fossem, pensou, xingou alguns gestos e preparou-se, nos respiros, a encarar o seu novo mundo. Quando se virou, a esquisitice: a ilha era menor do que parecia; além de mais escura do que a imagem vista esses momentos todos; diferente da sonhada. Ainda era, contudo, a ilha vinda para sua libertação. Largaria para sempre a máscara de um escravo sujo e abraçaria o novo. Viveria o suficiente e, alcançando a epifania imaginada, faria uma fogueira e partiria quando alguma companhia viesse.

Aos poucos, fez o reconhecimento: não havia árvores, apenas arbustos tortuosos, finos, de elegância, quase nas transparências; o chão era curto, a visão o enganara; havia uma colina de bico bem no coração; da ilha não se ouvia barulho algum. Dessa última constatação, pensou, certo tempo, poder ser a falta de costume em viver longe da algazarra marítima. Pescava temperanças. Iniciou a passagem pelo lugarejo, tentando encontrar alguma embocadura de caverna, alguma vida, fruta, algo do tipo. Comida alguma, dos arbustos nada além das folhas, e o chão era compacto igual pedra. O que encontrou foi um rebanho de carneiros, de chifres bem redondos. Achou, portanto, ter encontrado alguma comida. Restaria fazer a fogueira e matar um deles, e raciona-los; as primeiras conclusões vazavam para uma certeza: a experiência seria curta. Tinha de preparar a fogueira o mais rápido possível. O inferno era ser capaz de arrancar toda a vegetação para tentar fazer um fogaréu minimamente decente.

Não queria tomar nenhum arrependimento para si, havia nele apenas um tal continuum em fazer verdadeiras as suas pretensões. Quem teima em construir casa tendo em pó seus tijolos? Passaram-se dias, e o estômago clamava. Matou a fome com o verde, feito bicho. Não teve coragem de matar carneiro porque não conseguira fogo. Apesar desse inconveniente, cultivava a ideia de matar mesmo assim, beber o sangue e, caso fosse, comer a carne crua. Se anteriormente guiava-se por um corpo cheio de rugas e superficiando ossos, agora ostentava aparência de espantalho; um inútil espantalho, já que nem umazinha gaivota lhe vinha para ser espantada.

Em meio ao definhamento, percebendo não ser capaz de encarar o bando de carneiros, perigando perder miseravelmente por eles, restou uma única via não cogitada: a da montanha. Estava nas imaginações, encontrar uma tal chave, porta de toda luz, e alcançar o ponto em que ultrapassaria a fechadura daquele baú em que se envolvera. Em nenhum instante pensava no barco, jamais, apenas na imagem crepuscular do enorme globo se desfazendo na água, explodindo o céu em azul e laranja, dentro de um aquário, a hora em que eram arrastados para a escuridão das celas e esperavam a caneca ser enchida por uma sopa lodosa.

Caminhou para lá, passos trôpegos, alcançado novo afã: era lá no pico da colina que viria a salvação! O pensamento era esse, mas essas experiências todas passadas garantiram nele um ar ambíguo entre a conformação e a ambição, que se manifestou em: caso nada ocorresse lá em cima, a boa coisa que viria seria a vista do pôr-do-sol, o mesmo que privavam quando servo de bordo; no ponto mais alto poderia ver tudo.

Lastimável, cada passo que dava, chão íngreme, era um choque tamanho no seu próprio corpo que lhe doía imensamente, pois sentia as entranhas se moverem dentro de si, ainda mais os órgãos se chocarem contra os ossos, as costelas, uma suspensão interna, virou um ser oco. A fome, a dor, o isolamento, essas coisas todas vinham de rompante enquanto subia o monte. Percebei isso, tomou ciência dos movimentos da mente, como não poderia ser diferente naquela situação, e vinha-lhe lampejos, dos quais iluminava a empreitada, achando: o expurgo! O sofrimento lavaria para a glória esperada no alto. Mais esse pensamento foi responsável por um entusiasmo tamanho que ganhou pressa e se ergueu avidamente, indo, indo, indo. Quando menos esperava, na tamanha missão, ecoaram, lá de baixo, gritos; os carneiros. Cruzaram a ilha para o pé de onde começou a subir e balavam. Até voltou o olhar de onde vinham os chamados, se assustando de imediato com tamanha distância empregada, mas largou aquilo, e o medo da queda, e tornou a subida, com risadas, das menos santas.

Alcançou a parte mais rochosa, lisa, e a situação caiu na maior das dificuldades. A mão caçava qualquer lugarzinho que lhe aprouvesse possibilidade de prosseguir. Seus braços tremiam todos, e esse fremir criava raízes no tronco, e o vento vinha violento, vuzeio, vunario, arrastante de tudo, de naufrágios. Pensasse qualquer um, pois, que o quadro era a de um galho abraçado pela última folha no outono, a que não aceitava ser levada. Nessa fase, em que escapavam as tentativas de tocar o tão próximo fim, as unhas, cravantes, começavam a se desprender dos dedos, e a pressão aplicada tamanha era que já espalhavam gotas de sangue pelo braço, banhando todo o corpo e batizando as ovelhas aflitas. Por mais que caísse algum tanto, tomava sopro para resgatar o espaço perdido e ainda ganhava mais um pouco; o salto: desce-se para alcançar o que está acima.

Quando tocou o último degrau, deu-se para os sonhos derradeiros, os que antecedem a realização. As mãos já não tinham aparência de humanidade, e a cinzenta pele, rente aos tantos ossos, todos visíveis, e com o sangue vazante por todo o corpo, a extremência completa. Conseguiu, finalmente, chegar ao topo, lá ficou em pé, fincado, sem o atordoamento da ventania. O mirante final: aos seus pés, toda a ilha, o borrão verde que tomou seu espírito, a mancha branca, o rebanho, pintado de vermelho, que ainda permanecia no mesmo lugar, sem força alguma nos chamados, muito distantes. Respirava, se permitia sorrir.

Pensou o inevitável: “cheguei ao fim, então?”. Era, aquilo só, a conquista de papel. O que viria, agora? Desmanchou-se o semblante, perturbado por mais uma incerteza. Olhou, então, para a única coisa que permanecia desconhecida: as entranhas da colina. Mirou abaixo, de onde emanava um calor, e também uma luz. Cessou o vento, calou-se tudo, além de borbulhas. Havia, embaixo de si, um mar vermelho. O vulcão.

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Para ser capitão é necessário muito, muito pouco. Há quem me vê e dedique imensos olhares, os de alcance, coitados, crendo árduas caminhadas, inatingíveis. Quem comigo navega aprende, devagarinho, a ter esse muito pouco que me refiro. É necessário arrancar todas as vísceras, igual como se faz com peixe, tirar tudinho e deixar só o oco; cheio apenas de nada. Para mim, só tem dignidade de marujo aquele cujo rosto já baixou perene para o chão. E mais: é necessário saber açoitar sem ouvir grito nem ver chaga; não ter gosto pelo sangue, nem aversão; sem nojo nem pena. É preciso saber, porém, acertar o ponto certo: aquele que mais dói. Desses maltrapilhos que só servem para esfregar e trabalhar, e ainda arrumam tempo para se importar com o amanhã, a dor é remédio bom. Marujo certo é aquele que tem o corpo inteiro anestesiado.

Vez ou outra saio pelo convés, visando a cara de um ou outro, em busca dos negantes. Acontece, muito, de se passar muitos tempos, incontáveis, e não achar nenhumzinho. Não é que me falte paciência, mas, às vezes, sinto a necessidade de apressar as coisas. Meu chicote velho de guerra, banhado anos tantos de sol, é que sente muita fome. Em alguns eu acerto com tanta força que chego até a me surpreender. Fica o corpo estatelado no chão, imundando tudo, poça de sangue. É facinho, olho pra um e esse vai ligeiro limpar tudo. Passa um tempo e lá está o tal, na mesma de antes, varrendo, esfregando...

Pergunto, ainda: há quem me ache cruel? Não importa. Eu, por exemplo, parei de achar. O navio segue um tracejo indecifrável, pois viaja pelo oceano, nele não há estrada. Nele há somente uma escuridão, na qual já vi muitos abraçarem. Vá lá, não é tão horrível assim a vida nesse barco, que coisa. Há quantos anos resido aqui e nunca me passou isso pela cabeça? Deve ser por isso que sou capitão. He, pular o barco, ir para profundas profundezas, he. Idiotas. São? Só existe força que puxa para baixo, imagine se, quando pulássemos, nos arrebatassem? Quantos não recorreriam a isso, a cada momento? Se são capazes de pular nessas trevas, porque se acanhariam de pular em direção à luz? Eis ela, porém, firme no céu. Homem nenhum sabe voar.

É engraçado, a pois, ver quando, no crepúsculo, se bambeiam os serventes todos na proa para ver. É nessa hora que dou por certa a ordem: sejam todos retidos nas celas, em baixo de pau e porrete, se preciso. Não se pode ser besta com esses, hai... Um vacilo, e todos desmonoram os anos todos de surra, os que tive trabalho de dar. Eu conto, inclusive, uma das horas mais engraçadas dessa vida: é quando surge uma tempestade.

De longe já vejo muita coisa, aí, então, o ar muda, vira tudo uma coisinha que entra pelos ouvidos, toma toda atenção como susto, se fica logo alerta. Quando o céu se escurece, então? Aquele monstrengo negro vindo do alto, abraçando tudo. Começam ondas a darem empurrões, querendo brigar. Mas o negócio é quando cai o raio... vrum. He, he, aí é que é engraçado. Eu vejo logo: ficam iguais galinhas loucas, como se jogassem um lobo na granja. Eu só deixo pra entrar nesse redemoinho quando as gotas já estão bem grossas ligeiras, iguais tiro. Correm todos para um lado e outro, pulam outros – esses, que ligo? -, aí é que é: não é preciso escolher ninguém, todos estão na mira. E as vezes que um, tendo levado uma chibatada, acorre para o outro lado e dá de cara comigo, ao que facinho dou um murro e derribo. Aí é só sentar o porrete. Sem preocupação com sujeira, a água faz escorrer tudo. Numa dessas, enquanto eu socava um que fiz igualzinho contei, vi o sujeito abrir a boca. Foi uma das primeiras vezes que senti curiosidade. Parei um pouco a massagem e aproximei bem o ouvido, fazendo gesto. A voz dele, fraca fraca, só dizia: “- Por favor... me jogue!”.

Conversa, besteira. Ha, ha! Tudo isso é normalidade, coisa tão comum. Quando clareia tudo é que tomamos parte: quantos restaram, para logo voltarem ao serviço. A gente vê feito: os rostos todos esfacelados, narizes amassados, olhos faltando, os arranhões, feridas todas. Tudo necessário. Não há nada, quem tiver com dedos ou braços tortos, que entorte o resto do corpo para fazer o trabalho bem feito.

Te digo, porém, é de uma estranheza, para fugir disso de rotina. Você acredita que, desde quando me entendo por mim, desde quando sou capitão desse barco, jamais vi terra alguma? Porto, país... nada. Já me brincaram: é lenda. Eu até digo que acredito, ha! Em certa vez: um ponto cinza surgiu no horizonte, e foi crescendo. Deram um grito no mastro, era verdade: uma ilha. Vê se pode... Um grãozinho. Era mais um cuspidor, como dizem. Quem lá dá importância pra isso? Idiotas! Eu vi ligeiro: que os burros no convés se paralisaram, como encanto. É brincadeira...

Fiz questão de fazer o navio passar bem pertinho mesmo, bem rente. A gente precisa castigá-los. Nunca pensei que tivesse tantos imbecis por aí, eles não são ocos, são muito preenchidos, até demais. Somente vi: um mais que todos, pulando, de braços abertos, para a ilha. Burro. O navio segue, não há estrada.

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O filho predileto de um parto duplo, ganhou até um enxoval extra, mas, em compensação, não terá festinha de aniversário no CLTS 26.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 04/02/2024
Código do texto: T7992001
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