O POÇO DOS ESPÍRITOS - CLTS 26

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Eles estavam procurando lenha para a fogueira do acampamento.

‒‒ Pai! tem uma casa ali.

O homem olhou na direção apontada, entre o matagal. Eles se aproximaram e viram restos de paredes enegrecidas, queimadas, o mato crescendo entre as telhas e caibros que tombaram durante o incêndio. Era possível distinguir, sob o entulho, dois corpos carbonizados.

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ANTES

As aparências enganam, diz um velho ditado. A gente olha para uma pessoa, vemos o seu exterior, mas não o interior, o que pensa, se é uma pessoas boa ou má, que segredos guarda. Vamos olhar aquele homem de sapatos pretos, calça jeans, e camisa azul escuro, que caminha pela calçada no centro da cidade. Segue pensativo, com determinação no olhar, nos passos firmes e seguros. Ele carrega no bolso traseiro da calça, uma carteira de couro legítimo, nela há duas notas de 100, uma de 50 e duas de 20 reais, junto uma cédula de identidade em nome de Juliano Carqueja Neves, nascido em 28 de abril de 1957, então , ele tem 40 anos, mas aparenta muito menos.

Olhando para o interior de Juliano, vemos que seus pulmões estão enegrecidos pela fuligem de cigarros, pulmões que tentam se regenerar depois que ele parou de fumar e isso faz 5 anos. A tosse o incomoda às vezes, mas ele é forte e resistente. Começou a trabalhar no cais do porto aos 21 anos, carregando sacos de 50 quilos na cabeça. O esforço tornou seus ombros rígidos, engrossou o pescoço, deu-lhe equilíbrio e força no andar.

Olhando dentro da cabeça dele, vamos encontrar uma massa cinzenta, alguns dos neurônios com conexões mal feitas, desreguladas por conta de traumas da sua infância, principalmente por má formação intelectual, constituindo-se em uma índole má.

Examinando as gavetas da sua memória, encontramos apenas lembranças que lhe dão satisfação. As más recordações, como as surras e os castigos que sua mãe lhe dava, permanecem escondidas bem no fundo e só vêm à tona, como justificativa para seu comportamento violento.

Juliano trabalha como mecânico de automóveis, mantém uma aparência de bom homem, honesto e trabalhador, mas em certas noites, a fera que habita seu íntimo desperta e ele sai à caça de mulheres descuidadas, imprudentes, mulheres que andam sozinhas por alguma rua escura. Pega a vítima usando um lenço com clorofórmio e as leva para uma cabana na floresta, a 20 quilômetros da cidade. Num período de 10 anos, 15 mulheres desapareceram. A polícia fez investigações, mas elas nunca foram encontradas.

Nos dias seguintes, depois de matar e desaparecer com os corpos, Luciano trabalha consertando carros, como se nada tivesse acontecido. As lembranças da noite anterior, também foram sepultadas no fundo da gaveta das memórias. Aquilo era como um vício incontrolável e no correr das semanas, a abstenção causa ansiedade, aborrecimento, mau-humor.

Caindo a noite, ele sai em busca de uma vítima. anda por avenidas e ruas mal iluminadas, à procura de alguém. Não levou muito tempo, avista uma mulher de estatura média, entrando em um ônibus na parada. Segue o coletivo por 25 minutos, até vê-la descer na esquina de uma rua no subúrbio. Estaciona o carro, deixa o motor ligado. Observa a rua sombria, as casas adormecidas. A mulher caminha tranquila, está perto de chegar em casa, o único barulho que ouve são os de seus sapatos na calçada

Não vendo ninguém por perto, Juliano pega o lenço molhado com éter, salta do carro e corre. Pega de surpresa, a mulher não tem tempo para fugir, perde os sentidos. Ele a carrega para o carro, coloca as algemas nos pulsos e uma fita adesiva na boca e tornozelos.

Depois de rodar quarenta minutos, chega na cabana. O lugar é isolado, no meio da mata, longe de tudo. Coloca a mulher deitada no chão, junto com a bolsa que ele teve o cuidado de recolher, e acende um lampião. Volta e olha com satisfação para a vítima. Ela havia despertado, olha para ele com olhos arregalados, tenta fugir se arrastando, mas não consegue ir muito longe.

Juliano desfere um pontapé nas costelas e enquanto ela geme de dor, arrasta pelos cabelos e a coloca no meio do aposento. Em seguida, começa a se despir. Enquanto isso, vamos olhar o que tem dentro da bolsa. Uma identidade no nome de Olivia Valdés. Nascida em 1960. Há, também, um frasco de desodorante, batom carmim, uma nota de 20 reais, duas de 5 e um cigarro de maconha, que ela iria fumar quando chegasse em casa.

Vamos examinar o interior da cabeça dela. As lembranças da sua infância também não são boas. As imagens estão lá, antigas, mas nítidas, são lembranças que ela não quer esquecer, ao contrário de uma pessoa normal. Foi abusada pelo avô, brincando de cavalinho sem saber o que aquilo significava. Quando tinha 12 anos, o velho sofreu um acidente vascular cerebral e ficou paralítico do lado esquerdo. Passava os dias na cama, ou numa cadeira de rodas. Alda, a filha, mãe de Olivia, aceitou carregar aquela cruz sem queixas. É a missão que Deus me deu, dizia para quem quisesse ouvir, como se tivesse algum pecado e cuidar do pai doente era uma forma, mais para se redimir, pagar as transgressões morais, do que por obrigação.

Olivia ajudava a mãe a colocar o avô na cadeira, a dar remédio, mas trocar a fralda geriátrica, nem pagando. Certo dia ela foi dar a ele o remédio e o velho meteu a mão sã entre as pernas dela. Fazia anos que o avô não tocava nela. Ela contornou a cama, meteu o comprimido na boca dele e deu o canudinho no copo com água. Ignorou o olhar jocoso do idoso. Em outras duas vezes ele tentou tocá-la, mas Olivia o repeliu e afastou-se. Outro dia, quando entrou no quarto, o encontrou pelado, ele havia conseguido tirar a fralda e o cobertor, para poder exibir as partes íntimas. Resmungava como um porco e fazia sinais para o púbis. A garota não se conteve, pegou o chinelo e bateu no rosto dele, no lado ainda sensível.

O chinelo deixava a face levemente corada e Alda nem desconfiava que eram por causa das surras. O idoso parou de incomodá-la, mas Olívia continuou batendo nele porque gostava de vê-lo com medo. Alda nunca soube desses fatos, nem desconfiava o que o pai tanto resmungava quando trocava a fralda, ou mudava seu pijama. Quando ele morreu, Olívia continuou odiando o avô e passou a desprezar homens, principalmente idosos. Formando-se em enfermagem, conseguiu um emprego num hospital e foi ali que ala descarregou seu ódio, como se todo idoso fosse da mesma índole que seu avô. Alguns enfermos idosos ela matou, sem deixar vestígios.

Voltemos aos tempos atuais, na cabana.

Um trovão ecoa ao longe.

Olívia fica confusa a princípio, não se lembra do momento em que foi sequestrada, foi muito rápido e inesperado, mas olhando ao redor, vendo-se imobilizada e aquela homem mal encarado olhando-a como se ela fosse um bife apetitoso, não demorou para chegar a conclusão de que ele era um tarado e que ela seria estuprada

Num momento de lucidez, reflete que tinha sido tola em acreditar na sorte, ou algo parecido que a tornava imune a qualquer perigo da vida. Havia se arriscado muito em seu trabalho. Concluiu que a sorte tem prazo de validade. A sua acabou de expirar.

Juliano monta sobre ela, tira a fita da boca, quer ouvir os lamentos, coloca as mãos no pescoço e começa a apertar. O pavor de suas vítimas, deixa- o excitado. Ele goza, apreciando os mínimos detalhes daquele rosto em convulsão.

Súbito sente uma câimbra na panturrilha esquerda. Sem conseguir se levantar, deita-se de lado no assoalho para poder esticar a perna. A dor lancinante vai diminuindo aos poucos. Ergue-se, caminhando de um lado para outro até recuperar a dor passar. Depois pega a chave e retira as algemas da mulher, precisa usá-las em outra ocasião. Agarra o corpo inerte pelos braços e arrasta para fora, até um poço numa clareira entre as árvores.

Naquele instante chegou a tempestade, chuva forte, vento e relâmpagos.

Juliano aproveita a chuva para lavar o suor do corpo. Em seguida entra, enxuga-se, torna a se vestir.

Pega uma garrafa de whisky e toma uns goles. Seu plano era voltar logo para a cidade, mas como estava chovendo e cansado, resolveu passar o resto da noite na cabana. Era uma construção antiga, abandonada, que ele encontrou quando entrou na mata para enterrar sua primeira vítima. Fez alguns reparos, limpou e trouxe pouca coisa, apenas o necessário para passar algumas horas ali.

Embalado pelo barulho da chuva, logo adormece. Acorda com o som de um trovão e o barulho da porta, que foi aberta violentamente. Ele ergue o tronco, sonolento, vê uma figura sinistra que se destaca diante dos relâmpagos lá fora. Uma mulher coberta de lama, os pés firmes no soalho, o corpo rijo, tenso. Ela segura alguma coisa com a mão direita. O vento entra subitamente, passando pela figura, leva até ele um cheiro de morte.

Vamos voltar um pouco no tempo.

A câimbra na perna de Juliano interrompeu a esganação, a asfixia, possibilitando que Olívia voltasse a respirar minimamente, e o oxigênio chegasse ao cérebro antes do colapso dos neurônios. E esse mínimo respirar, causou o desmaio, uma espécie de proteção cerebral.

A primeira coisa que Olívia tem conhecimento, quando recobra os sentidos, é o cheiro repugnante. A náusea a leva a vomitar, tanto pelo cheiro quanto pela visão dos corpos em decomposição que a claridade dos relâmpagos revelam. O lugar é um antigo poço que havia secado e atulhado até a metade, tanto por lixo, quanto por corpos das vítimas do serial killer.

Olívia procura manter a calma erguendo-se sobre um dos cadáveres. Com as mãos apoiadas na parede, olha para cima. A borda está a uns 5 metros de altura, não pode alcançar, mas a chuva batendo em seu rosto, escorrendo pelo corpo, da-lhe ânimo. Controlando as emoções, reorganiza as ideias, o raciocínio. Num impulso, arranca a costela de um dos esqueletos e começa a cavar degraus no barranco para poder subir.

A enxurrada jorra pelas paredes. O poço começa a encher-se de água. Os buracos que Olívia faz, a água desmancha e a terra cai sobre seus pés. Acha que não conseguirá escapar, que morrerá pela água ou por um desmoronamento de terra. Desanimada, deixa-se cair sobre a imundície do poço. Exausta, entrega-se ao seu destino.

Mas ali ainda estão os espíritos adormecidos das vítimas de Juliano. Eles veem em Olívia, a oportunidade para se vingarem. Os nove espíritos se juntam e se incorporam à Olivia. Ela sente suas forças renascerem, seus músculos se reanimarem.

O vento sobrenatural derruba uma árvore sobre o poço . Apoiando-se nela, consegue subir e agarrar-se às raízes que despontam na parede de terra para alcançar a liberdade.

Ergue o corpo, rola e fica deitada no chão sob a chuva. Ela sempre gostou mais da natureza do que de gente. Se a humanidade fosse extinta da face da Terra, sobre seus ossos as árvores continuariam a viver.

Ela vislumbra a silhueta irregular e escura da cabana, a claridade amarelada na vidraça da janela. Ergue-se e caminha lentamente para lá, seu rosto mudando de uma face para outra, as várias faces daquelas mulheres incorporadas, vítimas de Luciano. Os relâmpagos iluminam o lugar e Olivia pode ver uma machadinha fincada numa tora de madeira ao lado da cabana. Está descalça, havia perdido os sapatos em algum momento, sente a terra úmida sob os pés. Os espíritos se regozijam, se fortalecendo com a força telúrica.

Retornemos, caro leitor, ao momento em que Juliano acordou, com a porta se abrindo com estrondo.

Ele vê a mulher caminhar na direção dele, não reconhece Olívia, a sua vítima, saída da cova imunda. Por um momento acha que está sonhando. Não sente medo com a visão fantasmagórica, medo é uma emoção que não faz parte da sua essência. Perceba a intenção dela a tempo para se desviar do golpe de machadinha. A lâmina passa raspando por seu ombro direito. No impulso, cai ao lado da cama e a mulher não perde tempo, desfere outra machadada, mas Juliano rola para o lado e o machado cravando na tábua do assoalho, prende na madeira. Olívia perde tempo, procurando tirá-lo dali, enquanto Juliano pega na lareira, o atiçador de brasas e desfere um golpe nas costas dela. Olívia grita de dor e por um momento, perde as forças e o ânimo e por um momento, os espíritos se desprendem de seu corpo, e voam como almas penadas que são e Juliano vê cada um dos rostos de suas vítimas e por um momento, hesita, confuso, mas logo ignora os fantasmas e retorna à sua calma de psicopata, sorri, maldoso, ao ver Olívia caída. Gosta de torturar suas vítimas. Os espíritos se reagrupam e voltam ao corpo físico, dão a Olívia, novo vigor. Não tem como recuperar a machadinha, mas vê uma faca em cima do balcão da pia, a uns 4 passos largos de distância. Os dois se movimentaram ao mesmo tempo. Olivia consegue agarrar a faca, no mesmo tempo em que Juliano desfere um golpe. Ela se joga para o lado, e o ferro bate com estrondo na pia de aço inoxidável. Olívia estica as pernas e volta a mesma posição, e fazendo um arco com o braço, crava a faca nas costas do homem. Juliano tomba ao lado da pia e ali fica inerte. Olivia endireita o corpo, respira fundo, extinguindo sua fúria, relaxa e os espíritos são levados para o subsolo

Avistando a sua bolsa num canto, Olivia abre, pega o cigarro de maconha, acende na chama do lampião e fica fumando, olhando para a lua que surge por entre as nuvens.

Súbito, ouve um rangido atrás de si e vê o reflexo na vidraça, tenta desviar o corpo, mas não tem tempo, o ferro bate em seu crânio, causando uma rachadura. Ela dá um passo para o lado, tenta reagir, mas tomba sobre a mesa. O lampião cai, quebra-se o vidro, o combustível vaza inflamando-se e as chamas se espalham pelo assoalho. Juliano larga o atiçador, cambaleia em direção da porta, mas não tem mais forças e cai, vê nas chamas diante de seus olhos, a dança dos espíritos comemorando a vingança.

Tema: Espíritos Vingativos

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 09/02/2024
Reeditado em 15/02/2024
Código do texto: T7995527
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