Nos Portões do Inferno (8): Capítulo 5: Fogo e Enxofre

Capítulo 5

Fogo-Perpétuo

I

Daniel e Leonardo estavam com o dedo no gatilho. Toda a atenção concentrada na porta e no que estava prestes a entrar por ali. Os passos eram lentos e pesados e passeavam de cômodo em cômodo.

Leonardo pedia que fosse algo em que devia atirar.

Daniel pedia que fosse apenas algum curioso. Uma pessoa. Apesar de seu trabalho, não gostava de atirar.

Os passos cessaram.

Viram uma sombra e de repente, algo surgiu na porta.

— Espera — gritou Daniel para Leonardo.

— Ei! Mas o que é isso? — disse o homem que acabara de aparecer à porta erguendo as mãos em sinal de paz.

Os irmãos baixaram as armas. O homem baixou lentamente as mãos.

— Puta que pariu — exclamou massageando o peito. — Vocês me deram um baita susto, caras!

— Foi mal — disse Daniel puxando uma cadeira para o visitante sentar e se recompor. Era alto, tinha uma barba escura e salpicada de fios brancos assim como o cabelo que chegava na altura dos ombros.

— Sou Creedence Machado — apresentou-se o homem antes que perguntassem. — Moro na fazenda vizinha. Vocês falaram com meus filhos mais cedo.

— Creedence? — admirou-se Leonardo. — Quem foi que te deu esse nome?

— Foi meu pai — respondeu Creedence com uma expressão de sereno divertimento no rosto.

— E o que ele estava ouvindo quando te fez? Mustang Sally? — indagou Leonardo também com uma expressão de divertimento no semblante.

Creedence riu alto, lembrava o latido de um cachorro grande.

— Na verdade, rapaz, ele estava ouvindo Molina! — disse Creedence ainda rindo com vontade. — Ah, ele tinha fotos. Conheceu os caras nas viagens dele, tinha um Opala adesivado: “Tomei umas com o Creedence Clearwater Revival.”.

— Sabe de uma coisa — disse Leonardo sorrindo —, simpatizei com o senhor.

— Que isso? Não me chame de senhor. Não sou tão velho assim. Então, vocês são os investigadores?

— É. Somos — respondeu Daniel enquanto se sentava.

— E aí? Já acharam alguma coisa? — questionou Creedence com um certo fascínio nos olhos.

— Coisa? — indagou Leonardo arqueando as sobrancelhas.

— Ah, qual é gente? Sei que o que matou a Sra. Glauer não foi humano — disse Creedence de forma enigmática. — A polícia revirou tudo e, do nada, vocês surgem aqui, como se fossem da turma do Carnacki.

— E daí? — indagou Leonora.

— E daí? — admirou-se Creedence. — Daí que eu nunca vi a polícia andando de Mustang. Nem nos seus melhores tempos! Vocês também não são do Instituto Sampaio, porque eles sempre estão com aqueles carros pretos de vidros escuros. E nunca é um veículo só! E, com sua licença, vocês são todos negros.

— É racista, cara? — indagou Eilson irritado.

— Não! É claro que não — defendeu-se Creedence. — É só um comentário sobre fatos da nossa sociedade de merda! Essa sim é racista, rapaz. A gente só vê tantos negros assim acompanhados da palavra polícia na cadeia e não como representantes dela. Vocês são claramente uma família, têm tudo a mesma cara. Agora digam: o que realmente fazem?

— Esquece — rebateu Daniel. — Deixa a gente trabalhando aqui.

Creedence os encarou e disse de modo sombrio.

— Acham que eu não sei de onde vem o enxofre?

— Sabe é? — indagou Leonardo.

— Vem lá de baixo!

— É mesmo? — disse Leonora.

— Vamos parar com esse joguinho, tá legal? — disse Creedence sorrindo. — Sei que são caça-fantasmas, detetives do paranormal ou o raio que o parta... Eu admiro esse tipo de trabalho.

— Você deve assistir muitos filmes, não é? — ironizou Leonardo.

— Tá. Deixa quieto — disse Creedence. — Não precisam me contar o que eu já sei. Agora vamos! A Ana preparou um ensopado. Vai esquentar vocês depois dessa chuva.

— Veio aqui chamar a gente pra jantar? — indagou Daniel.

— Isso. Vamos lá antes que esfrie — respondeu Creedence. — E ninguém precisa ficar sozinho nessa casa. É deprimente. Nojento!

— Beleza! A gente vai daqui a pouco — disse Leonardo. — Só precisamos terminar de ver algumas coisas aqui.

Creedence encarou os Cartago por alguns instantes e saiu dizendo:

— Espero vocês lá.

Os quatro o ouviram sair pela porta da frente.

— Sujeito estranho — comentou Daniel.

— É. Mas parece legal — disse Leonardo. — Creedence? Dá pra acreditar? — gargalhou com vontade.

— E aí? Nós vamos lá? — indagou Leonora.

— Claro que vamos — disse Leonardo em tom de quem explica o óbvio. — É comida de graça!

II

Bateram três vezes à porta até que Melissa a abrisse sorrindo.

— Entrem — ela disse convidativa. — Mamãe está servindo a mesa.

A casa dos Machado era tão idêntica à de Heidi Glauer que experimentaram uma sensação de déjà vu. A única diferença era a cor do sofá e a disposição de um ou outro móvel. Entraram na cozinha à direita e encontraram a família reunida ao redor de uma grande mesa de madeira bruta.

— Sentem-se — convidou Ana. Era tão alta como o marido e loura como os filhos.

Leonardo agradeceu a família e, sem cerimônias, apanhou um prato.

— É muita gentileza de vocês!

— Esperem até provar a sobremesa — disse Creedence soltando sua gargalhada canina. — Mas... — ele baixou o tom de voz para quase um sussurro — ...a comida aqui não é de graça.

Leonardo baixou lentamente o talher que já levava em direção à boca.

— Ah é? — indagou encarando o anfitrião.

— É. Mas não estou falando de dinheiro.

— Pagar com o que então? — inquiriu Daniel apreensivo enquanto os filhos dos Machado se esforçavam para conter o riso.

— Vem cá, Creedence — disse Leonardo —, não tá pensando em nos servir como sobremesa para sua família, não é?

Creedence continuou a encará-los e depois olhou para os filhos e logo a família toda estourou em gargalhadas.

— É pra gente rir também? — indagou Eilson nervoso.

A família ria cada vez mais alto.

Os Cartago se entreolharam incrédulos com a cena.

— Fala logo se a gente deve rir ou não pra saber se devo ou não estourar seus miolos — disse Leonardo puxando sua pistola.

— Opa! — exclamou Creedence enquanto o resto da família prendia a respiração. — É a segunda vez que me aponta uma arma hoje, rapaz. Tenho a impressão de que vai acabar me matando.

Leonardo sentiu o medo na voz do homem.

— Pois é! Só que desta vez — disse Leonardo contendo o riso —, tá descarregada! — E riu tão alto quanto os Machado.

— Podem comer — disse Creedence sorrindo. — Ia pedir que em troca nos contassem o que fazem, mas a gente já sabe o que é — buscou a concordância da família. — Se quiserem contar os detalhes, adoraríamos escutar. Mas é claro, se não se sentirem à vontade, podem só desfrutar da comida.

— Que é isso? — indagou Leonardo. — Psicologia reversa?

— Conta logo pra eles — disse Leonora. — Ou vai matar todos de curiosidade.

— Como é? — inquiriu Daniel. — Contar?

— Sim. Se acontecer alguma coisa é bom eles estarem cientes — redarguiu Leonora.

— Estão tentando nos assustar? — indagou Creedence.

— Bem que eu queria — disse Leonardo saboreando o ensopado.

Os Machado os encararam apreensivos.

— Certo — prosseguiu Leonardo. — Essa comida é tão boa, Ana, que eu acho que vocês merecem saber. — Pousou a arma sobre a mesa. — A arma não tá carregada porque usa uma munição especial. — Retirou uma caixa amassada contendo munição do bolso interno da jaqueta e a colocou ao lado da arma.

— Posso ver? — indagou Cristiano ao ver as balas reluzentes.

— Vá em frente — encorajou Leonardo.

— E o que essas balas matam? — inquiriu Creedence.

— Achei que já soubesse a resposta — zombou Leonardo. — São usadas contra o que sai lá dos campos de enxofre.

— Demônios? — indagou Creedence incrédulo.

— Exato, cara! — confirmou Leonardo. — Mas elas não matam demônios, no máximo, os atrasa, é quase impossível matar um.

— Ah, meu Deus! — exclamou Ana assombrada. — Isso é real!

— Por que é impossível matar um demônio? — indagou Melissa.

— Quase impossível — corrigiu Daniel. — Imagine que você está possuída, se eu atirar em você com uma dessas balas, posso prender o demônio ao seu corpo, exorcizá-lo, manda-lo de volta ao inferno e impedir que ele passe para outra pessoa.

— O que tem nessas balas pra fazer isso? — indagou Creedence.

Em resposta, Leonardo rolou uma delas pela mesa. Creedence a pegou e examinou. Haviam vários símbolos entalhados.

— A carga não é explosiva — explicou Daniel. — Tem pólvora o suficiente para efetuar o disparo, a maior parte é feita de sal. Se precisarmos atirar em uma pessoa possuída, miramos em alguma parte do corpo que não vá matá-la, entende?

— E não tem jeito de fazer isso sem machucar a pessoa? — questionou Ana.

— Tem — respondeu Leonora. — Desenhamos o que está na bala no chão ou em algum lugar. Isso prende o demônio dentro do símbolo e aí exorcizamos. Dependendo da hierarquia, um demônio pode ser preso dentro de um círculo de sal simples.

— Qual é a do sal e a desses símbolos? — indagou Creedence.

— Aí você já quer saber demais — disse Leonardo.

— A verdade é que não sabemos muita coisa — disse Eilson. — O que fazemos é usar o que funciona.

— Como sabem o que funciona e o que não funciona? — questionou Cristiano.

— Algumas coisas historicamente se tornaram operacionais contra os demônios e outros seres — explicou Leonora —, temos uma vaga ideia do funcionamento, mas não uma explicação final.

— Da mesma forma que os símbolos prendem, também servem para invocar, evocar e conjurar demônios através de rituais — explanou Leonardo.

— Então, a velha Glauer estava mexendo com demônios? — inquiriu Creedence.

— Bingo! — disse Leonardo. — E não era coisa pequena não. A quantidade de enxofre na casa dela sugere que ou ela conjurou muitos demônios, ou algum deles saiu fisicamente do Inferno.

— Como assim? — indagaram Cristiano e Melissa em uníssono.

Daniel e Leonardo olharam para Leonora pedindo auxílio na explicação.

— Bom, nessa altura, vocês já entenderam que o Inferno é um lugar, certo?

Os Machado assentiram.

— Demônios são seres que conseguem transitar entre o Inferno e a Terra — prosseguiu Leonora —, mas não com seus corpos e sim como essência, podem pensar em alma nesse ponto. Agora, se abrirmos um portal entre a Terra e o Inferno, tanto nós podemos ir para lá, de corpo e alma, como os demônios podem vir para cá da mesma forma.

— Se eles passarem para cá dessa forma, podemos mata-los — disse Leonardo. — Assim como se mataria qualquer outro ser vivo que transita entre a gente.

— Entendi — disse Creedence. — Mas, se o Inferno é um lugar, o Céu também é, certo? Por que não chamam um anjo pra ajudar?

Leonora riu.

— Nunca vi um anjo, mas já vi muitos demônios. Não posso afirmar que o Céu exista à maneira do Inferno.

— Mas... Não faz sentido — disse Ana.

— Pense assim — continuou Leonora —, são apenas nomes. O ser humano precisa nomear as coisas para poder entender e seguir a vida, é uma necessidade da nossa mente. Céu, Inferno, demônios, anjos, foram somente nomes que o ser humano criou para explicar as coisas ao longo da história.

— Foram nomes consolidados por conta das religiões — disse Daniel —, mas isso não significa que a verdade esteja com qualquer religião.

— Cada cultura nomeou seres, lugares e entidades de acordo com o modo como enxergam a realidade — prosseguiu Leonora. — Nunca saberemos quem está certo, apenas nos deslocamos entre nomes e símbolos para sobreviver.

— De uma coisa temos certeza — disse Leonardo —, isso que chamamos de demônio é maligno e se é maligno, a gente mata, certo?

— Olha — gritou Melissa de repente se colocando de pé e sobressaltando a todos. Apontava para as janelas. Duas bolas de fogo vinham em disparada em direção à casa. — Elas voltaram!

— Mas que merda — disse Daniel pondo-se de pé e engatilhando sua arma.

Leonardo rapidamente carregou a arma e o imitou.

As bolas se aproximaram da casa, mas se elevaram e passaram por cima fazendo todas as paredes tremerem. Daniel e Leonardo correram para a janela da sala. Viram ao longe as bolas de fogo entrarem no que parecia ser a chaminé da casa na fazenda vizinha. Em seguida, todos ouviram uma explosão baixa.

— São eles — exclamou Creedence. — É o mesmo barulho que ouvimos na casa da velha Glauer.

Daniel abriu a porta e correu para fora. Leonardo se adiantou e quando viu que Eilson o seguia, o barrou.

— Não! Fica com sua mãe e ajuda na proteção dos Machado se for preciso.

Leonardo correu e entrou no carro onde Daniel já dava a partida.

— Tem bastante sal? — indagou Leonora.

Ana meneou a cabeça afirmativamente.

— Certo — prosseguiu Leonora —, vamos colocar uma linha em cada abertura e jogar o resto na lareira.

III

Leonardo e Daniel estacionaram em frente à fazenda vizinha. Um clarão saía pelas janelas. Podia se ouvir gritos de agonia lá dentro. Pularam a cerca e engatinharam até chegarem próximos à porta.

— Tá pronto? — indagou Leonardo.

— Quando você quiser.

— Então vamos lá!

Leonardo chutou a porta com força. O ar quente que saiu da casa fez os olhos dos irmãos arderem. Tudo fedia a enxofre. A sala era uma confusão, pedaços de carne e sangue voavam para todos os lados em meio ao clarão. Leonardo divisou uma forma alta e escura sacudindo o que restara de duas pessoas, uma em cada mão. Mirou no que achava ser a cabeça e atirou. O clarão sumiu de repente. Leonardo localizou Daniel que efetuava disparos contra a abertura da lareira. Alguma coisa parecia querer desesperadamente sair de lá.

— Aguenta firme — disse Leonardo enquanto corria até a cozinha. Localizou um pacote de sal pela metade e voltou despejando todo o conteúdo na lareira. Seja o que quer que fosse tentando sair dali, era de baixa hierarquia, pois logo o silêncio imperou.

Daniel caiu exausto no sofá. A fraca luminosidade que vinha de fora deixava-os entrever que a sala estava banhada em sangue. Subitamente, as luzes da casa oscilaram e firmaram revelando uma cena de horror mais aterradora do que o que viram na casa de Heidi Glauer. Daniel olhou para trás do sofá e viu em que Leonardo havia atirado e levantou-se de chofre.

— O bicho vai pegar — ele disse.

— Por quê? — indagou Leonardo que ainda inspecionava a lareira.

— Porque você acabou de matar um demônio do séquito de Belphegor!

Continua...

ISBN: 978-65-00-92694-1

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 16/02/2024
Código do texto: T8000054
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