Nos Portões do Inferno (14): Capítulo 8: O Senhor das Moscas

Capítulo 8

O Senhor das Moscas

I

Leonardo se colocou de joelhos ao lado homem.

— Conhece esse cara? — indagou Creedence.

— Não — informou Leonardo. — Mas nossa família já teve um encontro com o que estava dentro dele.

— Belzebu — disse Daniel em tom sombrio. — O Senhor das Moscas e da gula. Deu trabalho pro nosso pai em Edelvais.

— Bom, agora temos sinais de que dois lordes do Inferno estão por aqui — comentou Leonardo.

— É — disse Daniel —, só que a diferença com o demônio de Belphegor, é que Belzebu não está de corpo físico aqui.

A porta da varanda se abriu novamente e todos vieram ao quintal ver o que estava acontecendo.

— Esse cara tá morto? — indagou Cristiano.

Melissa arfou ao ver o rosto do homem.

— Conhece esse cara? — indagou Leonardo encarando-a.

Os olhos da garota estavam arregalados a tal ponto que pareciam que iriam saltar do rosto.

— Tenho sonhado com ele — disse ela em um arquejo. — Mas nunca o vi pessoalmente.

— Pelo seu jeito, ele não foi muito amigável nos sonhos, não é? — comentou Leonardo. Ajoelhou novamente ao lado do homem. Colocou a mão em seu pescoço e sentiu a pulsação. — Tá vivo. Vamos tirar ele do sol, levar lá pra varanda.

Leonora usou um pedaço de carvão da lareira para desenhar um Selo de Salomão no chão da varanda. Colocou uma cadeira de balanço no meio dele. Leonardo e Creedence carregaram o homem e o depositaram na cadeira tomando cuidado para não apagar o símbolo no chão.

Leonardo correu até o carro, abriu o porta-malas e voltou com alguns frascos de água benta. Abriu um deles e despejou o conteúdo no rosto do homem que acordou sobressaltado e assustado.

— Fica sentado! Está tudo bem — disse Leonora de forma apaziguadora e o homem se colocou a chorar copiosamente.

II

— Me chamo Tiago. Tiago Moura. Tenho um bar na autoestrada — contou o homem depois de se recompor. Tomava água sofregamente aos sorvos de uma jarra que Ana trouxera. — É o Coruja da Noite, concorrente do Holiday Bar, vocês já devem ter ouvido falar.

— Sei. Já tomei umas no Holiday — disse Leonardo.

— Devia visitar o Coruja — sugeriu Tiago.

— Não sei não, hein? Me parece que tá cheirando à enxofre por lá. Vou passar — ironizou Leonardo.

Leonora lhe lançou um olhar de reprovação, mas Tiago prosseguiu o relato:

— Começou já faz uns dias. Eu comecei a ter uns apagões. Achei que estivesse doente, entende? Fui em um médico, mas parecia que tudo estava normal. Aí, eu comecei a estar consciente nesses apagões e... Bem, adivinhem?

— Você percebeu que estava dividindo o seu corpo com um demônio — disse Daniel.

— Demorei pra acreditar, mesmo com a coisa acontecendo, sabe? — prosseguiu Tiago. — Mas não era um só.

— Como é? — inquiriu Leonardo.

— Já vou chegar lá — continuou Tiago. — No início, eu não entendia o que era, achei que era coisa do tipo dupla personalidade, sabe? A gente ouve histórias desse tipo, já li sobre essas coisas, sei que existem e que podem surgir depois que você já é adulto. Mas aí eu comecei a compartilhar pensamentos... Lembranças.

Por um momento, Tiago ficou quieto. Engoliu em seco encarando o vazio.

— As coisas que eu vi, vocês não podem imaginar — disse ele com a voz trêmula.

— Acho que temos uma noção — disse Leonardo.

— Não! Vocês não têm — respondeu Tiago de um jeito um tanto quanto agressivo. — Nada te prepara para o que eu vi. Acredite. Enfim — engoliu novamente em seco —, percebi que eles se revezavam para me possuir. Eu era um receptáculo.

— Um receptáculo? — indagou Eilson.

— Foi o que eles disseram algumas vezes — explicou Tiago. — Nesses últimos dias, poucas vezes fui eu mesmo e, quando eles não estavam, me sentia cansado demais para ir buscar ajuda. Me sentia como se tivesse sido... — ele parou, se esforçando, como que tentando encontrar a palavra certa.

— Violado? — disse Leonora.

O homem assentiu envergonhado.

— Eu queria entender — retomou Tiago. — Sempre acreditei que essas coisas existissem, mas sempre achei que era preciso um convite para elas nos possuírem.

— Normalmente sim — disse Leonora. — Isso é regra para hierarquia baixa, mas para seres como Belzebu, isso não tem muita importância. O que me leva a crer que os outros que te possuíram também são de alta patente.

— Significa que você não tem culpa — disse Daniel tranquilizando o homem.

— Eu sou católico, batizado, faz muito tempo que não vou à igreja — informou Tiago. — Achei que isso tivesse alguma influência, sabe?

— Vai por mim — disse Leonardo —, não ia fazer diferença alguma. Você dirige um bar, todo tipo de energia circula à sua volta. Uma brechinha é o suficiente pra ser possuído.

— Você sabe quantos eram? — indagou Leonora.

— Não, só lembro de sentir quando era diferente, entende? — respondeu Tiago. — Cada um tinha... Como é que posso dizer? Acho que uma sensação diferente. Gravei algumas, pois foram os que mais voltavam.

— Conta — pediu Leonardo. — Isso pode ajudar.

— Bom, três sensações foram bem marcantes: fome, ganância e desejo sexual. Esse último era o mais forte de todos e tenho quase certeza de que ele é o que estava no comando dos outros.

Os Cartago se entreolharam.

— De quando você compartilhou pensamentos e lembranças, você se viu algo sobre algum livro ou coisa do tipo? — indagou Daniel.

— Não. Por quê?

— E dela? — inquiriu Eilson mostrando no smartphone uma foto de Raiane.

Tiago meneou negativamente.

— Suponho que também nunca tenha visto ela — disse Leonardo apontando para Melissa.

— Não — disse Tiago. — Por quê?

— A gente também quer saber — disse Leonora.

— Eles estão por perto — informou Tiago. — Eu sinto agora, sei quando estão chegando... Estão preparando alguma coisa.

— Vamos estar esperando — disse Leonardo.

III

Todos olhavam apreensivos pelas janelas, pois nuvens escuras, como prenúncio de uma tempestade, começaram a se formar pelos arredores.

— São eles — disse Tiago.

— É — concordou Leonardo. Mantinha a arma com munição de sal na mão.

Daniel e Eilson conferiram os sigilos de proteção e Selos de Salomão que haviam desenhado em todas as paredes. Creedence e sua família checavam se todas as aberturas estavam seladas com linhas de sal. Durante todo o processo, Leonora ficou absorta analisando a pilha de grimórios que agora tomava conta da mesa da cozinha.

— Não pensamos em uma coisa óbvia — disse ela depois de um bom tempo.

— O quê? — indagou Eilson.

— A partir do momento em que descobrimos a fonte da juventude de Heidi Glauer, começamos a procurar informações nos grimórios mais antigos e nos esquecemos dos mais recentes — explicou Leonora folheando um dos grimórios.

— Encontrou alguma coisa nova? — indagou Daniel instantes depois.

— Talvez — respondeu a tia. — Vocês se lembram da explicação que dei sobre como ela foi subindo na hierarquia demoníaca através dos pactos, certo?

Os Cartago assentiram.

— Bem — continuou Leonora —, dali concluímos que por ter chegado ao topo da hierarquia, ela não tinha mais para onde correr, e o fato de já termos sinais de dois lordes do Inferno por aqui, acho que corrobora isso, concordam? Qual conclusão tiramos disso?

— Que como ela chegou ao topo da hierarquia, um dos lordes veio cobrar a dívida, não é? — sugeriu Daniel buscando a aprovação de Leonardo e Eilson para sua hipótese.

— Era o que eu também pensava — disse Leonora —, a gente não deixou isso claro, mas acho que todos nós meio que concluímos isso e seguimos, certo? Acontece que nós temos mais de um lorde do Inferno vagando por aí matando quem não tem ligação com a Glauer, a não ser estar no mesmo complexo fazendário, mas por quê?

— Lugar errado e hora errada? — sugeriu Leonardo encolhendo os ombros.

— Pensem comigo — pediu Leonora —, se o problema fosse só com a Glauer, acho que a coisa acabaria ali — disse apontando para a direção da fazenda vizinha.

— O que tá pensando? — indagou Eilson.

— Acho que algum lorde veio sim cobrar a dívida da Glauer, mas acho que deve ter rolado alguma negociação no meio disso.

— Faz sentido — concordou Leonardo. — A velha barganhou por séculos, não iria parar agora.

— Que tipo de negociação? — indagou Daniel.

— Os lordes talvez quisessem alguma coisa que a Glauer poderia ter ou conseguir — explicou Leonora. — Ou ela tinha algo para barganhar com eles, algum artefato. Estão entendendo?

— Era o livro que estava no antiquário da Rai — disse Daniel admirado.

— Bingo — exclamou Leonora. — Não sei se o livro em si ou se o livro era uma ferramenta que serviria para algum propósito dos lordes.

— E assim que a Glauer conseguiu o livro, foi morta — disse Leonardo. — Uma traição dos lordes?

— Não! Uma traição da Glauer — enfatizou Leonora.

— Como assim? — indagou Eilson.

Leonora abriu sobre a mesa o mapa do complexo fazendário.

— Quantas fazendas temos? — ela indagou para todos.

— Sete — disse Daniel olhado o mapa.

— E quantos são os lordes do Inferno?

— Sete também — respondeu Daniel novamente.

— E à noite, conseguimos ver uma única constelação no céu, correto? Quantas estrelas formam essa constelação?

— Caramba — exclamou Eilson.

— Acho que tenho quase certeza do que está acontecendo aqui — segredou Leonora.

— Então conta — pediu Leonardo impaciente.

— Vejam, isso é minha hipótese mais sólida — defendeu-se Leonora —, mas acho que o lorde com quem Glauer contraiu seu último pacto queria abrir os portões do Inferno.

— Quê? — exclamaram todos em uníssono.

— Pra fazer isso — prosseguiu Leonora —, o lorde precisava da ajuda de alguém aqui de cima. Heidi Glauer podia fazer isso, mas precisava do livro que estava no antiquário da Rai. Por isso, o demônio a mando desse lorde, ou até mesmo o próprio lorde, encontrou a Rai e subtraiu o livro. Trouxeram o livro para cá, mas Heidi tinha um plano contra eles: travar os portões antes que eles saíssem. Ou, fazer com que saíssem muito danificados porque, de uma forma ou de outra, ela seria morta.

— Como concluiu tudo isso? — indagou Eilson admirado.

— Analisando algumas informações dos grimórios dos últimos dois anos — disse Leonora.

— E como o ritual do diário da Melissa, que é o mesmo que está em um desses grimórios, se encaixa nisso? — indagou Leonardo.

— Só um minuto — pediu Leonora. — Preciso tirar uma dúvida.

Caminhou até a sala e localizou Melissa próxima a uma das janelas observado o exterior da casa. Cochichou algo com ela. A menina pareceu encabulada. Logo depois se juntou ao restante dos Cartago novamente.

— Temos sete fazendas — disse Leonora retomando a conversa como se esta não houvesse sido interrompida —, cada uma é um portão do inferno. Só um lorde consegue abrir um portão por dentro com a devida ajuda aqui de cima. O livro que Raiane tinha em posse era o grimório original de São Cipriano. O lorde que comanda essa investida para a abertura dos portões é Asmodeus.

— Como sabe com tanta precisão? — indagou Daniel admirado.

— A informação de que é o grimório original de São Cipriano está em um dos diários da Glauer — explicou Leonora. — O ritual no diário de Melissa é uma invocação de Asmodeus. Os Machado foram atraídos para esse lugar porque o ritual só pode ser ativado por uma virgem. No momento em que Melissa o invocou, Glauer provavelmente o canalizou para a casa dela. Acredito que todas as pessoas nas outras fazendas provavelmente também foram atraídas para cá com características específicas. Parte do ritual de abertura está completo, só falta esse aqui onde estamos. O portão de Belzebu!

Irmãos e primo se entreolharam apreensivos.

— Só que temos uma informação valiosa nesse grimório da Glauer — disse Leonora abrindo em uma página marcada. —O ritual de como sabotar a abertura dos portões!

Nesse instante, um grande estrondo se fez ouvir fazendo com que a família Machado e Tiago gritassem assustados lá na sala. Os Cartago correram até as janelas, todo o céu havia sido forrado de nuvens escuras e formas começavam a surgir da mata e das plantações em direção à casa.

IV

Leonardo e Daniel postaram-se à porta, armas em punho. Eilson e Leonora ficaram logo atrás, armas também engatilhadas. Os Machado e Tiago recuaram assustados para o meio da sala.

Lá fora a chuva começou a cair e a escuridão pareceu se aprofundar.

Subitamente, um barulho começou a ser mais audível do que a chuva que caia insistentemente.

— O que é isso? — indagou Melissa apavorada.

— São moscas? — indagou Creedence incrédulo.

A compreensão se abateu a todos, a escuridão lá fora era resultado de um infinito enxame de moscas que circundava a casa em um turbilhão horrível. Conforme a escuridão se adensava, o barulho tornava-se algo próximo do insuportável. Os ocupantes da casa observavam horrorizados as moscas passarem a poucos centímetros das aberturas voando de um jeito quase hipnótico.

— Elas não podem entrar — bradou Leonardo tentando confortar os outros e acreditar no que acabara de dizer.

Lentamente, o som começou a diminuir e uma claridade tépida começou a se infiltrar dissolvendo a escuridão. Logo, as moscas haviam partido e apenas o som de uma fraca chuva se fez ouvir. Por trás disso, um pesado silêncio parecia suspender a realidade. Os Cartago observavam as aberturas com os sentidos apurados.

Um clarão iluminou tudo lá fora e logo depois o som do trovão ribombou pelas paredes.

De repente, uma explosão de moscas atingiu a varanda fazendo a porta de entrada se escancarar. Leonardo ouviu uma confusão de gritos atrás de si, mas observava estupefato o evento que se desenrolava à sua frente, os insetos que voaram para todos os lados na hora do impacto estavam se reagrupando, conferindo forma a uma entidade que ocupou toda a abertura da porta.

Leonardo disparou, mas o projétil atravessou os insetos sem provocar dano algum na forma. Logo, uma risada sarcástica surgiu e uma voz quase indefinível entre o ruído dos insetos se fez ouvir:

— Agora seria um momento espirituoso onde eu diria que não adianta atirar porque "meu nome é legião, nós somos muitos e blá, blá, blá". Mas a verdade é que essa coletividade é um só.

A entidade se abaixou e deixou entrever no topo da porta uma carranca demoníaca formada pelos insetos em constante movimento.

— Cartagos — rosnou a criatura. — Sempre se metendo em assuntos que não são de sua alçada!

— Aí é que você se engana, ô chifrudo — provocou Leonardo. — Sua ruína é nosso trabalho!

A coisa riu.

— Vou te destroçar lentamente, Cartago!

— Mal posso esperar! — zombou Leonardo.

— Vocês vão sair — disse o demônio. — Essa casa é minha!

— Tô sabendo — disse Leonardo. — Por que não entra então, parrudo!

A fúria desceu sobre o semblante da coisa. Ela soltou um berro grave, mas ao mesmo tempo agudo, e explodiu no ar lançando moscas para todos os lados. Os Cartago notaram que os insetos tentavam entrar pelas aberturas, mas pareciam bater em uma parede invisível. Aos poucos, todas desapareceram. A chuva começava a se dissipar e réstias de sol atravessaram o céu trazendo um relativo conforto aos ocupantes da casa.

IV

— Não sabia que símbolos tinham um poder assim — disse Cristiano.

— Os símbolos certos, sim — disse Leonardo.

— O que aquela coisa quis dizer com essa casa é minha? — indagou Creedence.

— Sua casa é um dos portões do Inferno — disse Leonardo sem cerimônias.

— Quê?

— Cada uma das fazendas é um portão — explicou Leonardo. — Só falta essa casa. É o último selo para que eles consigam de fato abrir os portões.

— E esses símbolos vão continuar impedindo-os de entrar? — indagou Ana assustada.

— Na verdade — disse Leonardo —, vamos fazer exatamente o oposto.

— Como? — inquiriu Creedence, pois pensou ter ouvido errado.

— Vamos deixar Belzebu entrar e quebrar o último selo.

Todos olhavam apreensivos para Leonardo.

— Vamos abrir os portões do Inferno!

Continua...

ISBN: 978-65-00-92694-1

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 08/03/2024
Código do texto: T8014937
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