A Casa de Usher II

 

Fred havia morrido. Sozinho, de noite e em casa.


Alexandra tentou se concentrar no trabalho, mas não conseguia. As circunstancias da morte, e o próprio fato em si, eram inquietantes e permeavam sua mente. Por fim, desistiu. Jogou a papelada na mesa e, com um suspiro, se levantou e foi embora.


Direto para o hotel, pois não queria voltar àquela casa.


Ela não chorou a morte do amigo. Não porque não gostasse dele, e sim porque não conseguiu. Algo a deixava preocupada e com medo.


Eles alugaram a casa de um casal sorridente. Haviam rodado pelo centro de Praga por horas atrás de um lugar que não chamasse atenção e que fosse minimamente acolhedor. Por fim, encontraram um simpático casebre de dois andares num bairro de subúrbio.

 

Demoraram algum tempo para ocupá-lo. Estavam se mudando para estudar na Universidade de Praga, mas antes teriam que arrumar um emprego na cidade, para pagar o aluguel. Tiveram sorte de encontrar senhorios que concordassem com essas circunstâncias.


Eles, seus senhorios, eram bem prestativos e acolhedores. Esperaram pacientemente até a data em que os dois poderiam se estabelecer, deixou-lhes o espaço reservado e não cobraram taxa. Pareciam pessoas boas.


Ou desesperadas.

 

A causa mortis de Fred havia sido uma conjunção de terríveis coincidências: infarto fulminante, seguido de derrame cerebral e embolia pulmonar. O corpo simplesmente havia entrado em colapso. O coração, o cérebro e o pulmão cederam ao mesmo tempo.

 

Trágico – lhe disse o legista.

 

Talvez fosse, se Fred não estivesse em excelente forma física por ser atleta e militar!


Embora as suas coisas ainda estivessem lá, junto com as dele, ela recusava-se a voltar lá e não conseguia contatar seus senhorios. Acreditava que eles não queriam ser contatados.

 

Após uma breve caminhada, chegou ao hotel e se jogou direto na cama. Procurou descansar, pois não sabia o que fazer nem que atitude tomar, ou como lidar com a situação.


Estava ficando louca. Totalmente paranoica.


Só podia! Acreditar em toda aquela baboseira, achar que aquilo poderia ter alguma influência no que aconteceu... era no mínimo insano!


Ela riu.


Então, por que estava com medo? Porque não queria voltar para casa? Porque tinha a certeza de que se entrasse lá, não sairia com vida?


Besteira.


Lembrou-se do aviso da Velha: “A vida e a morte são conceitos humanos, e que dependem do ponto de vista”.


Arrepiou-se.


A Velha, que mulher estranha!

 

Ela vivia na rua, numa esquina perto da casa. Maltrapilha, vestia roupas imundas e falava sozinha – e a maioria das coisas que dizia não possuía nenhum sentido.

 

Pobre alma!

 

Foram poucas as semanas em que Alexandra e Fred residiram no casebre, mas sempre se deparavam com aquela mulher quando saiam à rua. Ela os espreitava com seus olhos esbranquiçados e cegos de velha, encarava-os com sua carranca de louca e os chamava com uma voz esganiçada, que causava arrepios, sempre para dizer coisas insanas e incoerentes.


Ou então para falar de Usher.

 

Pobre Usher!

 

Repetia incessantemente essas palavras, como se estivesse entoando um mantra que a induzisse ao seu eterno estado de transe e ruína mental.

 

Pensar nisso fez Alexandra se encolher na cama, sentir um frio na nuca e um buraco no estômago.

 

Tratou de tentar dormir e não tardou para que cochilasse. Logo estava em sono pesado.

 

Sonhou.

 

Fred estava no sonho, e também a Velha. Tagarelando como sempre, sibilando como uma mística e, por vezes, gargalhando como uma bruxa, tal qual uma entidade às portas da insanidade.


De repente eles sumiram e Alexandra estava lá, na sala de estar, com a mobília do século XIX, os pitorescos quadros do século XX e a inútil parafernália tecnológica do século XXI. Embora conseguisse enxergar parte do ambiente, o restante do seu campo de visão estava sinistramente escuro.


Ela tentou o interruptor. Nada.


Pegou um fósforo e tentou acender. Nada.

 

Nem uma faísca.

 

Estava cercada por uma treva embriagante, que parecia aumentar na medida em que o seu terror crescia.

 

Esse terror era de uma espécie nova, quase palpável. Podia jurar que tinha até mesmo um cheiro. E como fedia! Era como uma mistura fúnebre de enxofre e alcatrão.

 

O tempo passava e os sentidos de Alexandra desabavam, como se ela estivesse perdendo a consciência enquanto mergulhava na mais profunda fossa do inferno.


Quando, de repente, sentiu uma presença.


Tentou olhar em volta, mas nada via, e uma sensação aguda de desespero começou a brotar no íntimo. Sentia um medo irracional e crescente, se espalhando por sua alma como um incêndio num monte de palha.

 

Quis correr, sair dali o mais rápido possível, mas suas pernas não se mexiam.

 

Estava paralisada.

 

Quis gritar, mas nada saía da sua boca.

 

Estava muda.


A garganta secou como um deserto, a língua endureceu feito borracha e o pânico se agigantou feito um cogumelo nuclear. A presença que ela sentia era mais fria que o gelo do Ártico e sinistra como a morte que se aproxima. Era assustadora, imoral, insana.


Uma forma indistinta de escuridão pareceu se mover ao seu lado.

 

Alexandra tentou novamente gritar, inutilmente. Então algo agarrou seu braço. Esse algo era terrivelmente gelado, esponjoso, grudento, repulsivo.

 

O seu coração acelerou tanto, que era impossível que não cedesse.

 

O algo tocou seu rosto e o virou. Reparou que outra forma indistinta de escuridão atravessava o outro canto da sala, mas não teria como se deter muito a esse fato, pois sua atenção petrificou no que estava à sua frente.


Lady Madeline.

 

Pobre alma! O diabo se regozija quando se recorda de sua tragédia!


E ela sorria!


Um sorriso tão macabro e doente, que sua visão poderia ser facilmente responsável pela desgraça daqueles que se deparavam com a Medusa!


Ela sorria, com sua mortalha esfolada, seus olhos vazios e suas mãos ensanguentadas.


De tanto bater no caixão.


Ela uivou. O som era tão terrível, que fez Alexandra perder o controle da consciência.

 

Sentiu o coração parar, o pulmão esvaziar e se encher de muco, o cérebro se liquefazer.

 

A sensação a fez acordar de imediato. Estava empapada de suor, com os batimentos acelerados e a consciência atordoada. Diante de tão vívido pesadelo, levou alguns instantes para se convencer de que estava viva!


Ainda assim, no buraco mais obscuro e profundo da mente, ela ainda ouvia uma risada.

 

A risada de Usher.

 

A risada de Madeline.

 

Tal risada infernal não a deixaria nunca, dormiria com ela, viveria com ela. A levaria às portas da mais infame loucura e, só depois, não sem antes o diabo se regozijar novamente, iria matá-la.


Pobre alma!


A Velha havia avisado!


A vida e a morte são conceitos humanos, e que dependem do ponto de vista”.

 

 

 

 

 

Daniel Santos I
Enviado por Daniel Santos I em 17/04/2024
Reeditado em 17/04/2024
Código do texto: T8043839
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