O Cavalinho Azul Parte - III - André -

O rapaz de gestos contidos e olhar triste era incapaz de matar até o mais insignificante dos insetos. Para Dona Regina, ser tão sensível era a certeza do bom marido que seria.

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Helena se culpava por ser a prova viva de todo o sofrimento da avó, que a cada dia se mostrava mais esquizofrênica. Acreditava que a filha nunca lhe perdoou e, por isso, trouxe Joel do inferno para lhe apavorar. Contava que durante a noite ouvia o lamento de Virgínea quando o impotente marido zumbi, cheirando a carniça, saía em busca dos testículos extirpados. Ao amanhecer acordava a neta aos berros:

- HELENA! VENHA VARRER OS VERMES QUE O MALDITO DO SEU PAI DEIXOU ESPALHADOS PELO CHÃO!

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André era filho de João dos Anjos, um agiota encarregado da cobrança dos alugueis de Dona Regina. Mau caráter já havia pensado em afanar o patrimônio da velha. Contudo, o namoro do filho com a jovem herdeira foi um verdadeiro milagre. O moço desde a mais tenra idade já era reprovado por seus trejeitos e voz fina. Um dos problemas conseguiu amenizar ao introduzir um ferro quente em sua garganta. Porém, o andar macio e o olhar vago mirando o infinito, por mais que lhe espancasse não pôde reverter. Quem dera ele mesmo pudesse cortejar tão bela criatura. Pensava. Mas, feio, velho e ainda manco, qualquer tentativa seria em vão. Em contrapartida, isso não lhe impedia de tê-la em seus sonhos mais secretos.

Helena e André tornaram-se amigos e, devido as circunstâncias, acharam por bem fingir o namoro. André contava aos prantos sobre ser a vergonha do pai. Dizia que a mãe fugiu por conta dos maus tratos. Era acusada o tempo todo por ter gerado um filho marica e que talvez, por ser tão religiosa, o deixasse a própria sorte. Tinha esperança de que um dia ela lhe perdoasse, e quando voltasse lhe traria uma bicicletinha da cor que ele mais gostava. Já Helena sabia que a avó, além do quadro psiquiátrico enfrentava um sério problema cardíaco e não viveria por muito tempo. Então, penalizada com a situação prometeu livrá-lo do pai opressor: se casaria, venderia os imóveis e o levaria para outra cidade. André passou a venerar Helena como se fosse uma santa, e cheio de gratidão estava sempre a lhe presentear. Comprava vestidos e sapatos os quais antes experimentava e, trancado no quarto, rodopiava feito bailarina ao redor da cama.

Bastou o casamento ser marcado para que dá noite para o dia Virgínea, Oscar e todos os vermes desaparecessem. Dona Regina se acalmou e os empregados antes hostilizados, a pedido de Helena, voltaram a trabalhar na casa. Foi nessa ocasião que o Parque Rosa de Ouro chegou à cidade e Helena, como sempre, foi tomada por uma excitação que lhe fazia perder o sono. Havia prometido para si mesma que sempre que tivesse oportunidade compraria ingressos e distribuiria para as crianças carentes.

Tão logo chegou foi comprar os ingressos. O primeiro brinquedo que iria seria o carrossel. Queria ver o cavalinho azul e deixar a alma pegar carona agarrada à cintura da criança que, porventura, estivesse montada para só depois fazer a distribuição dos ingressos. Entretanto, para sua surpresa, enquanto os outros cavalinhos estavam vagos, havia um jovem totalmente sem noção montado no cavalinho azul. Ele ria de forma escancarada enquanto a cabeleira negra se agigantava impulsionada pelos movimentos frenéticos que fazia enquanto pulava feito peão em cavalo xucro. A alegria do rapaz era contagiante e quando Helena deu por si suas almas já haviam se fundido como letra e melodia em uma bela canção de amor.

Gerônimo, conhecido como Cigano, tinha o rosto másculo marcado por sobrancelhas espessas que se encontravam acima do nariz forte. Porém, o que mais chamava a atenção eram os olhos amarelos como os de um lobo. Era o responsável em testar os brinquedos antes que fossem liberados para o público. Helena nem percebeu quando o carrossel parou e ele, após saltar com agilidade felina, colocou o chapéu na cabeça e veio em sua direção. Foi preciso que lhe tocasse o ombro para que ela voltasse a realidade:

- Calma, o carrossel já vai ser liberado. Gerônimo falou com voz grave, e quando viu tantos ingressos na mão da moça esboçou um sorriso exibindo as presas pontudas, o que lhe dava mesmo uma aparência de animal selvagem. Constrangida, Helena disse:

- Não são para mim, vou doar para algumas crianças que não podem pagar.

- Que legal, eu também estou sempre distribuindo emoções. Falou o rapaz enfiando a mão no bolso e retirando uma maçaroca de cortesias.

Helena arregalou os olhos ao falar:

- É mesmo?

- Sim! Fui criado pelo Senhor Eza, proprietário do parque a quem respeito como um pai. Ele não se importa que eu faça esse tipo de caridade que me dá tanto prazer. Mas... qual o seu nome?

- Helena. E você é?

- Gerônimo. Mas todos me conhecem como Cigano.

- Cigano???

- Contaram-me que com poucos meses de vida fui vendido ( barato )por uma cigana para o Senhor Eza. Mas creio que não seja esse o motivo. Deve ser por conta da aparência: cabelos longos, barba por fazer, uso brinco, cordões, braceletes e, como pôde perceber, bastante ágil na montaria.

Foi nesse momento que André chegou. Se encontrariam no parque. Antes, porém, estava a trabalho com o pai, que desde menino o levava para acompanhá-lo nas cobranças. Queria que o filho aprendesse a agir feito um homem de verdade. No início o pequeno chorava ao vê-lo ameaçar os devedores e até esmurrá-los perto dos filhos e mulheres. O temido João dos Anjos, na ausência de pagamento, levava o que encontrava pela frente, desde panelas velhas até mantimentos que depois eram dados aos porcos.

Helena estava radiante naquele entardecer de domingo. Usava um vestido branco que marcava com precisão todos os contornos do corpo perfeito, já os longos cabelos, sem nenhum adereço, eram vasculhados pelo vento que, invejoso, queria espalhar pelo ar os pequenos pontos de ouro que o sol teimava em iluminar.

André ao ver Helena conversando com outro homem, empalideceu, e, contaminado pelo ciúme, dilatou as narinas e partiu ofegante em direção ao casal. Entretanto, antes que pudesse falar qualquer coisa, Helena lhe puxou para si e após lhe beijar os lábios. Disse:

- Quero te apresentar o Cigano, filho adotivo do dono do parque.

Cigano lhe estendeu a mão, e percebendo a insegurança do rapaz baixinho e esquelético diante de seu porte privilegiado, disse:

- Muito prazer, pelo visto é o namorado da Helena. Rapaz de sorte. Mentiu. Estávamos justamente falando do quanto são apaixonados.

André sorriu, mas com o forte aperto de mão que quase lhe fez soltar um "ui", logo o sorriso se desfez. Em seguida se despediram. Mas antes de sair, Cigano entregou a Helena as cortesias que tinha no bolso alegando que não estava com tempo para distribuí-las.

Todos os os dias Helena voltava ao parque. Foi então que André ao se comparar com o outro: alto, moreno e que se trajava de forma a criar um personagem exótico e sedutor, começou a se sentir ameaçado. Seus temores se concretizaram quando seguiu Helena e descobriu que ela e o tal Cigano se encontravam à beira do rio e, escondido atrás das pedras, viu quando fizeram amor pela primeira vez. Houve um momento de fúria, mas a fusão dos corpos em movimentos ritmados fez com que gemesse baixinho ao experimentar uma sensação que até então não conhecia. Resolveu fingir que de nada sabia e sempre que tinha oportunidade ia atrás da moça na esperança de vê-la no ato e imaginar sentir o que ela sentia. Queria aproveitar o máximo, pois sabia que o parque ficaria por pouco tempo na cidade e que para Cigano, ela deveria ser apenas mais uma aventura.

O Parque Rosa de Ouro anunciava suas últimas semanas quando Dona Regina veio a falecer. No velório, João dos Anjos, enquanto o filho chorava agarrado ao féretro, percebeu a intimidade entre Cigano e a sua futura nora e, com a experiência que a vida lhe deu, sentiu que poderia haver algo entre eles. Entretanto, o casamento estava próximo e antes de qualquer providência teria de ter certeza.

Helena sentiu muito a perda da avó e só duas semanas depois voltou a sair de casa. João dos Anjos começou a seguir seus passos. No início nada de anormal, até que dias depois viu quando ela e Cigano se encontraram e foram em direção ao rio. Sorrateiro, cortou caminho pela mata e, para sua surpresa avistou André atrás das pedras. Foi nesse momento que pela primeira vez sentiu orgulho do filho. "Certamente ele também estava desconfiado e tomará uma decisão honrada". Pensou. Porém, assim que os dois chegaram e se despiram; incrédulo viu quando André baixou as calças e pôs se a se masturbar. João dos Anjos perdeu as forças e viu o mundo girar ao seu redor e, para não perder os sentidos teve de morder a língua até que sentisse o sangue escorrer farto entre os dentes. Cambaleante, se escorando na galhada, partiu sem olhar para trás. A única certeza no momento era de que quando o filho chegasse estaria com o chicote nas mãos, e só depois de vê-lo desmaiado pensaria em um jeito de matar Cigano. Dessa vez, tinha certeza, não cometeria os mesmos erros da ocasião em que tentou matar Joel: o pai da cadela.

Continua...

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 19/04/2024
Reeditado em 20/04/2024
Código do texto: T8045484
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