Sandro e o lobo

“Algumas coisas não são mais como eram antes. A cidade mudou demais. Eu mudei demais.”

Sandro estava descalço e sentado sobre um troco de árvore cortado poucos dias antes, a seu lado uma garrafa contendo uma estranha bebida indígena. Havia três anos que saíra do exército brasileiro, e neste período sua vida mudou completamente, principalmente em noites como aquela.

Seus instintos não mais o enganavam, tinha certeza de que poderia encontrar um pouco de ação por aquelas bandas; a verdade é que aquela rua estava totalmente deserta e poucas pessoas passavam por ali depois que anoitecia. Ele mesmo anos atrás não ousaria ficar sentado naquele lugar com pouquíssima luz, o céu noturno estava estrelado, porém com algumas nuvens que encobriam o grande e belo luar.

Pouco tempo depois ele sentiu o cheiro sendo trazido pelo vento; na verdade era um misto de cheiros diferentes, mas que ele conhecia muito bem. O medo feminino em contraste com a adrenalina dos caçadores.

Ele não sabia como agir; muitas dúvidas surgiam na mente. E se a coisa saísse do controle? E se não possuísse forças para domar a fera? Sandro olhou para o céu mais uma vez e percebeu que o vento devia estar em alta velocidade lá em cima, pois as nuvens corriam apressadas; breve o luar tocaria o solo.

Passos rápidos apareceram dobrando a esquina, três vozes foram percebidas de imediato pelos aguçados ouvidos de Sandro; dois homens, uma mulher. Ela exalava medo, em contrapartida eles exalavam entusiasmo; quase era possível ouvir seus batimentos cardíacos de tão acelerados.

A mulher tentava não acompanhá-los, mas sua força de vontade já tinha sido vencida pelos truques dos outros dois. Em meio à escuridão da rua os olhos dos dois homens que acompanhavam a mulher brilhavam como brasas e a jovem por mais relutante que estivesse já imaginava o que a estava esperando.

Sandro se levantou e tomou um bom gole da bebida feita de ervas, era uma espécie de chá concentrado; muito amargo, porém possuía uma propriedade incrível; desligava a dor. Calmamente ele caminhou para o centro da rua de forma que as outras pessoas o pudessem ver mesmo na escuridão; e foi o que aconteceu, um dos homens segurava firme a sua presa enquanto o outro visualizava com seus olhos incandescentes aquele que permanecia parado no meio na rua. Sandro por sua vez retirou a camiseta que estava vestindo e deu a derradeira golada em seu líquido amargo, lançando a garrafa para o canto.

_Sai dessa rua._disse o que segurava a mulher; esta parecia estar em transe. E concluiu._ Não há nada para você aqui.

O outro também falou:

_Seu eu fosse você ouviria meu amigo; ou poderá se arrepender.

Sandro impôs um pouco de ousadia dentro de si mesmo, pois já sabia que aqueles homens não eram pessoas comuns; eram seres que procuram a todo instante criar armadilhas afim de prenderem pessoas ingênuas como aquela jovem.

O cheiro mudou no ar, agora havia ira e ódio crescente por parte deles e a mulher estava voltando a si.

_Vá embora! Já disse! Bradou um deles.

De repente a moça começou a perguntar o que estava ocorrendo; estava recobrando a força de vontade que lhe tinha sido roubada pelo truque mental dos homens noturnos.

Sandro finalmente falou:

_ Posso ir embora nesse exato momento, contanto que vocês me deixem levar esta jovem e não a procurem mais.

Os dois riram a vontade com a frase do rapaz sem camisa; eles não estavam percebendo, mas Sandro estava alguns centímetros mais alto e brevemente estaria mais forte também.

_ Você é louco? Não vamos deixá-la ir e agora não deixaremos mais você ir também; teve sua chance de fugir, mas escolheu atravessar o nosso caminho.

Ambos deixaram seus grandes caninos a mostra e ficou claro do que se tratava. Finalmente a luz da lua cheia se descortinou por detrás das nuvens e banhou toda a cidade; seu toque aveludado sobre o corpo de Sandro disparou o gatilho e liberou a fera presa no subconsciente ou em alguma área dentro de sua alma. Tanto a mulher quanto os dois noturnos espantaram-se com o que acabaram de ver; aquele jovem relativamente franzino tornou-se em questão de segundos uma besta com mais que o dobro de seu tamanho original e de uma brutalidade fora do comum; mesmo aqueles dois acostumados a causar medo em tantas pessoas tremeram por dentro, porque já tinham sido avisado pelos mais antigos do perigo que havia em Mesquita, seres que descendiam dos lobos e dos lincantropos; existia uma guerra sendo travada entre lobos, homens e outras forças. Eles não deram ouvidos e naquela noite provariam o que era um combate contra uma legítima prole de Cérbero.

O uivo poderoso ecoou pela rua e foi imediatamente respondido por cães que ouviram nos arredores, todos começaram a latir de forma furiosa, alguns por medo outros por raiva; os cães sabiam que um predador estava por perto. A criatura na qual Sandro se tornou era algo terrivelmente abominável, a moça que estava em posse dos dois homens, caçadores noturnos, desmaiou logo que sua mente tentou discernir o que aquela visão insólita significava.

Uma espécie de lobo com quase dois metros de altura, pêlos cinzentos, olhos de um amarelo quase dourado e penetrantes, com garras e presas pontiagudas e que se apoiava sobre as duas patas traseiras como se fosse um bípede. A fera respirava de forma ofegante e emitia pequenos ruídos como se estivesse sentindo dores; a criatura parou por um instante respirou novamente e soltou mais um poderoso uivo, que foi comentado por moradores das proximidades durante dias. Era a lua cheia; quando Sandro tornava-se em lobo nas noites de luar completo ficava muito mais difícil controlar a natureza do monstro, que na verdade era a sua própria natureza vindo a tona.

_Lobisomem! _ Gritou um dos homens.

_ Deixe essa mulher aí, ela não vale isso. _ rebateu o outro.

Mas a verdade é que já não havia mais tempo para eles, e o único caminho para a fuga passava por uma batalha contra aquela criatura meio lobo meio humano.

Ainda desnorteado Sandro lutava para domar a si mesmo, pois uma fúria cega e violenta jorrava dele como a força incontrolável de vários riachos. Ele sabia que se não conseguisse tomar o controle de sua própria mente, até mesmo aquela mulher correria grande perigo; por outro lado nunca poderia salvá-la se não lançasse mão de sua outra face, não seria páreo frente aos truques mentais e sobrenaturais que os noturnos possuem e não teria força física suficiente para vencer a invulnerabilidade de seus oponentes.

Tudo aquilo aconteceu muito rápido, em questão de segundos a mente de Sandro estava na mais difícil batalha contra sua fera interior. Ele já havia vencido a fúria em outras ocasiões, mas nunca em uma noite de lua cheia, quando sua transformação tornava-se muito mais difícil e dolorosa; se não fosse o velho chá de ervas indígenas feito pelo antigo sábio jacutinga que como ele possuía outra face e o estava tutelando para que Sandro tomasse o lugar de líder da matilha em Mesquita; certamente já teria perdido o controle. Aquela era sua prova de fogo; encontrar e defender um inocente, mesmo com a fera da lua cheia tentando forçá-lo ao contrário.

Quando o terceiro uivo se fez ouvir, os dois homens já estavam correndo para longe do lobo gigante; eles sabiam que nenhuma habilidade mental que possuíam era desenvolvida o suficiente para confrontar um meio-lobo, ambos eram neófitos e sua capacidade estava restrita apenas aos humanos.

O monstro “Sandro” lançou-se sobre as quatro patas e os alcançou rapidamente; não houve combate algum, os dois não tinham a menor chance. Sandro fora aprovado.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 19/02/2008
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