O Encontro

“Chegou a hora.

Então, por isso, eu vim.”

[‘Seu Troféu’ – Gram]

Chovia.

Na praça molhada, lá estava ele debaixo do banco tentando, inutilmente, sobreviver àquela guerra.

Chovia.

Passei no alvoroço através das arvores agarrado ao grosso sobretudo encharcado tentando, inutilmente, me aquecer.

Chovia.

Avistei aquele animal encolhido, que também me avistou. Parei de súbito de avançar no meu alvoroço, e o encarei, assim como me encarava oscilante. Congelado por aquele olhar, eu mantinha-me imóvel, fitando-o apenas, sendo retribuído reciprocamente.

Chovia.

Dei um passo em sua direção. Esta foi minha reação. A compaixão inundava minha cartola, escorrendo pelas minhas madeixas, pelo rosto, infiltrando em minha roupagem, aderindo à minha pele que absorveu-a às minhas entranhas.

Chovia.

A cauda, já frenética, havia percebido meu gesto. Faltou-me coragem para abandoná-lo. Até meu diabinho concordava com meu anjo.

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Chovia muito. Do olho de vento cerrado protegendo-nos daquela terrível tormenta, eu observava o mundo sendo castigado pela atroz natureza. Naquela noite tão escura, a única luz – que devorava o brilho débil das velas nas casas –, era os resplandecentes relâmpagos cavalgando na imensidão aérea acima de tudo – e tudo se curvava àquela tempestuosidade.

Meu olho o buscou. Deitado debaixo da escrivaninha, com seu pêlo curto umedecido, seus olhos infantis pregados, descansados agora por ter um abrigo para poder morrer. Todavia, eu sabia que ainda não havia sucumbido. Eu podia sentir o cheiro que ele exalava, ouvir o bater de seu pequeno coração, tatear a textura se seu pêlo e pele, sentir seu hálito morno. E, principalmente, sentir, cheirar, ouvir, tatear e degustar seu quente sangue. Eu via tudo isso a dois metros de distância dele com meu olho de abutre.

Então, abriu os olhos. Sabia que eu o vigiava. Contudo, fui arrastado por uma onda repentina de paixão doentia que misturava ódio. Ele permanecia parado simplesmente, com o olhar de lamúria. Consumido completamente por tal sentimento, dei passos firmes em sua direção. Apanhei-o pelo pescoço fino, suspendendo-o no ar. E pude sentir muito mais claramente seu morno hálito, sua textura, seu cheiro, ouvindo seu coração bombeando seu liquido vital através de todo seu corpo.

Deu um gemido. Apertei-lhe o pescoço. Mais um outro gemido. Minhas mãos, como um colar, fechavam-se cada vez mais. A cabeça pendurou. A língua estirou-se para fora. Agora, dormia completamente.

Continuava chovendo. Um relâmpago clareou minha consciência imediatamente. Um pensamento de arrependimento surgiu-me à mente. Porém, uma fúria de leão – por não aceitar o que eu fizera – dominou-me. Agarrei vorazmente aquele cadáver fresco que estava entre minhas mãos, e abocanhei-lhe, trepidamente, o pescoço oferecedor. Enquanto o mundo permanecia no silencio, eu me deliciava com seu sangue quente, devorando desesperadamente aquela fonte de vida.

Não suguei-lhe tudo. Joguei o corpo quase seco ao lado do divã enquanto passava a mão esquerda na boca tingida de vermelho. A mão direita passou pelos cabelos. E alertei para mão esquerda agora também tingida.

Lavei-me. Não estava mais de rosto e mão sujos. Entristeci ao deparar com o corpo novamente. Decidi enfrentar a chuva lá fora. Eu definharia se continuasse em casa com aquela coisa moribunda jazendo na minha sala. Peguei a cartola e guarda-chuva. Não a bengala como da ultima vez. Então, saí.

Chovia.

Na praça molhada, lá estava ela em cima de uma árvore ilhada tentando, inutilmente, sobreviver àquela guerra.

Chovia.

Passei na tranqüilidade através dos bancos segundo frouxamente o guarda-chuva e tentando, inutilmente, me aquecer.

Chovia.

Avistei aquele animal encolhido, que também me avistou. Parei de súbito de avançar na minha tranqüilidade, e a encarei, assim como me encarava oscilante. Congelado por aquele olhar, eu mantinha-me imóvel, fitando-a apenas, sendo retribuído reciprocamente.

Chovia.

Eu tinha a pura certeza de que ela sentia meu odor, a textura de minha pele fria pré-aquecida pelo sangue novo, degustar o sabor da minha carne. Tudo isso a dois metro de distância dela, eu podia ver com esse meu olho de abutre... Então, ela lançar-se-ia sobre mim. Dilacerar-me-ia e devoraria meu coração sequiosamente. E após matar-me, como um troféu, levantar-se-ia em meio à chuva, dando um longo uivo à lua pré-aparente.

(Escrito em meados de outubro de 2006, na CaosCidade Maravilhosa. Este conto pertence ao meu projeto "Contos Surreais - Quimera & Senso".)