Morte ao Crepúsculo

Foi quando olhei àquela tábua do meu quarto. Lembrei-me do meu segredo. E percebi que poderia ser a solução – temporária ou não – ao meu problema existencial-amoroso. Então, aproximei-me da tábua e retirei-a. Revelou-se um buraco muito escuro que logo enfiei minha mão, retirando um pequeno baú feito de ébano, tão negro quanto à escuridão do buraco. Olhei o baú bem trabalhado por alguns segundos, e pensei “Se for verdade...”, e as lágrimas estavam prestes a correr pelo meu rosto, só estavam esperando a ordem. Peguei a chave, que eu guardava em uma longa corrente em meu pescoço, e destranquei, e abri a caixa lentamente. Meu coração batia tão forte que parecia querer estourar meu peito. O bauzinho era forrado por dentro com um veludo de um vivo escarlate. Havia papéis dentro dele. Pequei uma lâmina e abri.

“Desculpa-me por isto. Não sabes o quanto desejo nossa casa...”

Meus olhos não suportaram as lágrimas e fugiram por todo meu rosto. Esta mensagem havia sido uma das últimas românticas que ele havia mandado-me, e pela data, 28 de maio de 1760, faltavam poucos dias para ela completar um ano de existência. Havia quase um ano que ele não escrevia-me nada de bonito.

Abri outra. Era da época de que ele estava trabalhando bastante, com um inventor.

“Cheguei em casa amando-te ainda mais...”

Chorei ainda mais e comecei a sentir dores de cabeça fortíssimas.

Mais outra.

“Amo-te muito”

Percebi que minhas lágrimas ficaram com um gosto peculiarmente diferente, elas mancharam o papel de vermelho e vi que meu vestido também estava manchado assim meus olhos pegavam fogo.

Li mais outra.

“Preciso do calor de teus braços...”

Fui afogando-me ainda mais nas lágrimas de sangue. A cabeça rodopiava e doía assim como meus olhos.

“Leva-me embora desta realidade ruinosa. Mostra-me o que são sonhos bons. Sempre penso em ti. Beija-me e apaga minha dor. Tudo que preciso é do teu amor por mim.”

“Quando estou só, tudo é escuro. Então, tu apareces com teus braços calorosos fazendo as sombras esvaecerem.”

“Oh! Eu sinto amor por ti!”

E a cada mensagem dessas que eu lia, eu definhava cada vez mais...

“Acho que vou deixar-te descansar em paz por hoje. Tua família deve estar cansada que nem eu. Amo-te como ninguém amou...”

“Logo hoje que preciso de um abraço, não veremo-nos. Amo-te muito. Beijos e mais beijos do teu eterno apaixonado.”

E de repente, pude notar que minha alma deixara minha matéria, como um animal que deixa sua casa pressentindo que algo de muito ruim está para acontecer, que sua floresta será inundada e se não fugir, essa maldição consumi-lo-á. Eu podia ver-me agonizando; meu corpo não estava morto por inteiro, eu sentia as dores do meu corpo e sangrava também como ele. Eu olhava bem de frente para ele, mas eu não podia ver meu espírito. Havia sangue saindo por quase todos meus orifícios, até pelos ouvidos eu sangrava, contudo, a situação ficaria pior. Vi-me pegar outra lâmina e abri-la.

“Querida! Sabias que amo-te?”

“Estou com saudades. Volta logo aos meus braços.”

“Amo-te muito e não quero perder-te.

Adorei ter escutado tua voz no meio da noite...”

“Quero cobrir-te de beijos. Amo-te muito. Meu amor por ti é como o Universo: imenso e a cada dia fica maior.”

Quase sem força, meu corpo começou a ler as cartas mais antigas, da época em que eu era cortejada por um outro e que minha família queria que eu casasse com ele.

“Não deixarei a fraqueza crescer em mim. Desculpa-me por ter proferido aquelas palavras. Sei que te perdi. Ainda amo-te e quero ver-te feliz, mesmo que isto custe minha felicidade. Esperarei o tempo que for para ficarmos juntos. Esperando resposta; esperando-te.

Senhor G.

Não sou teu dono. Por isso, liberto-te. Antes ver-te feliz com ele do que ver tuas lágrimas em meu peito.”

“Estás muito forte. Mas não te preocupes, está tudo bem; e se não tiver, farei com que fique (assim espero!). Conta-me o que houve o mais rápido possível. Sê forte! Não estou mais na redoma. Finalmente, estás chegando ao fim. Não quero brincar contigo, só quero proteger-te.

Segurando tua mão... Esperando pela ruína final... Esperando tua escolha...

Senhor G.”

Eu podia saber que meu eu-corpo estava para miserar de vez e tudo isso estava acontecendo por quê? Eu estava morrendo e não sabia ao certo se era porque era verdade, que tudo não passava de mentiras sujas; ou se era mentira, que a verdade era o amor que havia transformado o real em uma dor vivente. Porém, de qualquer forma, eu já perdera o respeito por mim mesma. Uma pessoa sem respeito por si merece morrer; não como uma punição, e sim como libertação, um troféu para quem viveu uma vida tão desgraçada. Morrendo, eu seria um peso a menos na vida de qualquer um, principalmente daquele que tem meu coração nas mãos. Ainda peguei uma outra carta.

“Vencendo meus olhos, estou sentindo teus braços em volta de mim. No outro lado, é hora de ir, estou ouvindo tua voz, sem palavras. No outro lado...

Senhor G.”

E antes que eu pudesse ler a última, estrebuchei ao chão. Sangue escorria como baba de minha boca. Saía pelos poros de minha pele. Sei que, mais tarde, o sangue que não saiu formaria placas escuras sob a pele, de sangue coagulado. Eu tremia e tentava puxar o ar pela boca pausadamente, parecia até soluços. Meus olhos estavam arregalados, olhando para um lugar fixo. Nesta hora exata, ocorria o Crepúsculo. Aos poucos, fui diminuindo, como o sol, morrendo vagarosamente como eu, até o céu estava escurecendo de um vermelho-sangue. Fui parando de tremer, de “soluçar”, e finalmente, meu coração parou. Os últimos raios de sol expiraram-se com o último dos meus suspiros. Ele ama-me ou não? Verdade ou mentira?

Apenas a Escuridão velar-me-ia até que, por fim, jazer meu corpo sob a terra. E, então, a vida retomaria ao normal. Mais pessoas brigando por banalidades, matando uns aos outros, morrendo por razões sem fundo.

A própria Vida me abandonara. Foi a Morte quem me acolheu de braços abertos. Em minha mão, a última carta de amor daquele que era meu protegido.

“Sussurros e gritos, voam alto, caem, e uma face sem características ou nome. Expostos a vida, podemos ser divinos. Diga-me: qual é tua realidade?

Senhor G.”

(Data transviada. Escrito na CaosCidade Maravilhosa. Este conto pertence ao meu projeto "Contos Surreais - Quimera & Senso".)