Fundo Sono – Um Conto Moderno da Bela Adormecida
“Risvegliami...
Il mio destino scelgo
Se riesco a resistere.”*
~ “Senzafine”, de Lacuna Coil.
Era uma manhã escura e chuvosa e eu pensei que nada me tiraria da cama. Mas eu estava errado em pensar que descansaria no final de semana...
Uma amiga veio até minha casa. Ela estava agitada e com uma aparência péssima. Falava sem parar como uma doida.
— Você tem que me ajudar! Acredite em mim, não estou louca! – falou com olhos arregalados. Ela tremia.
— O que houve? Não estou te entendendo... – meu olhar em direção a ela era cheio de interrogações.
— São elas! São elas que estão fazendo isso comigo! Já não consigo dormir a três dias por causa delas! Todas enfileiradas!
— Elas quem?
Ela, com aqueles olhos mais arregalados e fazendo um breve momento de silêncio, parecia mesmo uma louca. Levou as mãos à cabeça, cerrou os punhos agarrando os cabelos. Então, seu rosto contorceu-se em raiva.
— As malditas formigas!
— Formigas? – perguntei com olhos esbugalhados, tal como ela fazia.
— Sim! Elas estão roubando meus comprimidos! Por favor, venha à minha casa que te mostrarei.
Chegamos a sua casa. Ela correu para o quarto, eu ia atrás mais devagar.
— Venha! – disse-me.
Porém, quando chegamos, nada havia.
— Eu não entendo! – disse confusa – Elas estavam aqui sim! Eu sei! Não estou enlouquecendo! Deixei apenas uma trilha de formigas mortas antes de ir a tua casa. No primeiro dia, quando eu peguei o frasco, junto com o comprimido saiu uma única formiga. Tirei e matei-a. Guardei o remédio na gaveta. No segundo dia, percebi que o vidro estava mais vazio e que eu não tomara todo aquele remédio. E hoje havia uma trilha roubando todos os comprimidos! É sério! Não é maluquice!
Eu a olhei bem com pena e perplexo, sem acreditar bem em sua história. Não serei hipócrita, mas quase cheguei aos risos. Para mim, ela realmente estava precisando de ajuda, um acompanhamento psicológico e largar os calmantes e soníferos.
— Bem, eu vou para casa, certo? Se você precisar, pode me ligar a qualquer hora que eu venho. À noite, te visitarei para saber como você está. Tente se acalmar, relaxar. Você não precisa dessas coisas...
Falei de maneira a deixá-la mais segura e calma, com minhas mãos em seus ombros, o que aparentemente surtiu efeito. Ela parecia mais calma, com olhos mais serenos, porém molhados, calada e com uma expressão e um olhar perdidos. Abracei-lhe, dei um leve sorriso e fui embora.
E feito como prometi. Mais tarde, já de noitinha, fui visitá-la. Quando toquei a sineta, ninguém veio me receber na porta, que não estava trancada. Ficou destrancada, do jeito que deixe quando saí de manhã. Entrei.
— Olá, Laura? Sou eu, vim ver como está. Você está aí em cima? – gritei e não pude ouvir nenhum som como eco.
Segui, então, para o quarto. E quando abri a porta, esbarrei em algo. Era um frasco, mas, para minha surpresa, havia uma formiga, e nele havia uma observação: “Não tomar em grandes quantidades. Consulte o médico para verificar a dosagem. Pode haver efeitos colaterais desconhecidos se houver super dosagem, além de convulsões, paradas cardíacas e até morte. Procurar socorro o quanto antes”.
E lá estava ela, deitada sobre a cama, pálida, álgida e imóvel, bela como a própria Bela Adormecida. Ao seu lado, um outro vidro de remédio vazio. E agora ela viveria dormindo para sempre.
*Tradução: "Acorde-me... / O meu destino eu escolho / Se eu conseguir resistir"
(CaosCidade Maravilhosa, 22 de setembro de 2007. Este conto pertence ao meu projeto “Contos Surreais – Quimera & Senso”.)