O Cubo

Segurou a caixa com as mãos trêmulas. A respiração pesada delatava o desespero da decisão de movimentar as peças daquele cubo de metal frio e áspera. Passava os dedos sobre os desenhos, tecendo sonhos de poder trazidos pelas partes mais ansiosas de prazer da mente. Destruído, perdido, delirava com vontade pelo momento de mover as peças e esquecer a ilusão da carne. O mundo é prazer, dizia para si mesmo. O mundo é sofrimento, contava. É prazer e sofrimento misturados em um só sentido que significa satisfação.

Sorriu no meio do quarto escuro, ouvindo o pingar de da água no canto. Uma poça estava se formando lá devido à chuva forte lá de fora. Sorriu loucamente, lembrando-se o quanto a chuva havia ajudado a despistar seus perseguidores. Apertou o cubo contra o corpo e agora os olhos brilharam como em gargalhada macabra de um desejo atendido às custas da alma.

- Eu quero – disse para si mesmo. Tentava se convencer a criar coragem.

Conhecia o perigo. Ninguém precisava a avisá-lo, pois roubara a caixa sabendo que se a usasse, encontraria desgraças pronunciadas por estudiosos e religiosos. Mas o que eles sabiam? Todo religioso adorava chamar de inferno qualquer coisa que não estivesse a mercê de sua seita. Todo estudioso chamava de mal o que não conseguia compreender. Ele não. Ele era ousado e sabia que sofrimento e prazer podiam ser satisfação. Se Deus se comprazia com o sofrimento dos mortais, porque ele não poderia se divertir com o próprio e ainda alcançar o êxtase divino.

Que os Anjos da Dor viessem. Girou a primeira peça no cubo, a primeira no quebra-cabeça. Subiu uma parte, trouxe outra para a esquerda, encaixou uma que descera na direita. Mexeu no cubo durante quinze minutos, feliz por resolver um quebra cabeça para o qual se preparara. Esteve tão feliz que mal se lembrou que ainda era perseguido. Quando a porta do pequeno quarto foi arrebentada, tudo o que pôde fazer foi se contrair na parede. O susto o fez levar as mãos contra os azulejos quebrados, cortando-se. A mente não registrou a dor, nem o sangue brotando, mas só o medo ao ver o cubo caindo.

A pequena caixa rolou pelo chão, ainda movendo, encaixando peças roboticamente até parar diante dos perseguidores. Os homens armados olharam para o objeto, depois para sua presa. Eram três figuras encapuzadas e uma a uma elas voltaram pela porta arrebentada.

Ele chorou. Não foi de alívio porque seus perseguidores o pouparam. Os olhos nublados viam uma versão torpe do cubo enquanto a boca balbuciava pedidos em nome de uma fé que perdera desde criança. Quando assombras se moveram e ele sentiu as primeiras correntes enfiando-se debaixo de sua pele, gritou com a consciência plena dos condenados, daqueles que sabem o destino que os espera. Havia uma parte masoquista dentro dele que gostou ao ser flagelado, vendo serpentes férreras percorrendo o caminho entre epiderme e músculos, arrancando-lhe gritos e pedidos de clemências.

- Não está satisfeito? – perguntou uma voz na escuridão.

Era para estar. Parte dele estava, aquele ponto autodestrutivo que apreciou quando crfavou os dedos no chão e puxou com força, desgrudando as unhas da carne. Bateu a testa com força no chão desesperado com a dor. Ainda implorava, mas o Anjo da Dor e do Prazer cumpria sua missão. Adentrara sua alma sem controle e encontrara nela um impulso forte. Era a ânsia de satisfação autodestrutiva que mal sabia a diferença entre dor e prazer que elaborava a realização de seus desejos. A missão do Anjo continuava e o céu que o homem tanto queria agora se tornava o inferno que ele achava que não existia.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 22/02/2008
Reeditado em 26/11/2008
Código do texto: T870474
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