A Última Serenata
Éramos bons amigos, e com música costumávamos fortalecer nossos vínculos de amizade.
Nosso principal robe era fazer serenatas em noites de lua cheia: uma brincadeira ingênua que enriquecia nosso ego e divertiamos os enamorados.
Certa noite, eu e meus amigos João Cosme e Raimundo Torres, resolvemos fazer mais uma.
*
Entre um gole e outro comíamos torresmo e rodelas de salame,e a seguir o som do violão quebrava o silêncio daquela madrugada de brisa, luar e poesia.
"Tanto tempo longe de você
quero ao menos lhe falar.
A distância não vai impedir,
meu amor de te encontrar….(….)
...... Eu te amo, eu te amo, eu te amo".
Havia a certeza de estarmos fazendo uma linda serenata. Nossas canções se alternavam, e, muitos na cama, se deleitavam com nossas cantorias. Já outros, xingavam-nos.
"Esta noite,
eu queria que o mundo acabasse
e para o inferno o Senhor me mandasse
para pagar todos pecados meus.......".
A bebida já, já, acabaria. É alta noite. Plena madrugada. Hora dos corococós dos galos, e nós já havíamos cantado algumas canções. Sentíamo-nos contentes e orgulhosos.
Eu, ladeado pelo dois amigos, estava sentado num dos degraus da calçada da igreja, cantando e dedilhando o violão. Pressenti que alguma coisa não ia bem, pois, mesmo cantando e bebendo conhaque vinha-me pensamento desagradável: "ali, naquela igreja, todos os mortos do lugar obrigatoriamente fazem sua última visita antes de irem para suas covas", e nós, estávamos sentados no caminho deles. Isto muito me desagradava e deixava-me apreensivo.
A lua descia rapidamente para o poente e sua luz já estava a desejar. Nesse instante, nuvens negras e gigantes passam sobre nós escorregando sua imensa sombra sobre a praça: o que nos deixava momentaneamente às escuras, sem o brilho do luar.
Executávamos a última cantoria.....
"Não há, oh! Gente,
oh! Não!
Luar como esse do Sertão ...".
..... quando o Raimundo toca em meu ombro e diz: olha gente! Olha lá! Tem gente nos espiando, - e acrescentou - alguém está fumando na esquina da igreja. Vejam! Vejam!
Parei o violão e calei. Olhamos para lá e vimos uma imensa brasa que, continuamente, acendia e apagava, acendia e apagava: parecia um charuto ao ser tragado. Mas, só víamos a brasa e nada mais. - Quem seria o engraçadinho? - Com olhares, telepaticamente nos perguntamos.
- Deve ser algum sacana! Um filho da p…. qualquer! -proferiu o João Cosme em tom de zombaria. Depois, encorajando-nos acrescentou: - vamos lá? Vamos ver quem é? Vamos ver?
Deixamos nossos pertences na calçada e disparamos rumo a tal luz. Ao chegarmos lá... Espanto! Quase caímos dos degraus. - Aqui não tem ninguém! Não há ninguém! Quem estava aqui? - Nos questionamos boquiabertos, olhando às voltas e atropelando nossas falas.
Eu me arrepiava dos pés à cabeça.
- Que está acontecendo? - Indaguei aos outros.
Voltei a me lembrar que todos os mortos da cidade são levados à igreja e dela ao cemitério. Tive a nítida impressão de estar vendo um cortejo fúnebre arrastando-se pela praça em plena madrugada, com mulheres de véus pretos e homens de chapéus na mão.
Observamos que naquela hora nuvens negras cobriam a praça, e um inesperado relâmpago iluminou o céu, certamente para enfeitar aquela cena macabra.
Senti um frio correr nas vértebras e minhas pernas, desgovernadas, pareciam se congelar: era o medo, aliás, o pânico. Minha respiração era ofegante e o coração batia-me até na língua. Ficamos inertes no tempo, um colado ao outro como se fôssemos trigêmeos siameses.
Estava decretado o fim da nossa serenata.
Com uma pistola em punho, o João Cosme proclama:
- Se for vivo leva chumbo e se for morto que se vá para o inferno. Cala-se pôr um instante, enquanto nós nos entreolhávamos, e a seguir ele acrescenta: vejam! Vem alguma coisa lá na frente: um vulto. Quem seria a essa hora?
Não dava para se distingüir, mas víamos que era algo cinza, volumoso, do tamanho de um jipe; vindo lentamente em nossa direção no meio da sombra da igreja. Ele rosnava e fazia um barulho similar ao de um cavalo andando no asfalto, e isso mais e mais nos aterrorizava. Ali não havia calçamento, nem cavalo. A praça era de terra, pedregulho, grama e areia. Porquê aquele barulho?
O vulto veio, veio, veio, e sem ser identificável parou há cinco metros de nossos pés. Ele parecia uma nuvem. Nem eu mesmo sei definí-lo.
Naquela hora a cidade preguiçosamente dormia, e os galos não paravam com seus cânticos de corococós, assustando-nos, ao tempo em que saudavam mais um amanhecer. Enquanto isso, nós fazíamos companhia àquele fantasma, que, pôr sua vez, deveria estar no céu, no purgatório ou no inferno, menos ali, perturbando o sossego e acabando com nossa pacífica cantoria.
- Vamos rezar um Pai Nosso? - Sugeriu Raimundo, com a voz trêmula, puxando-nos pelo ombro para ajoelharmo-nos no pedregulho da rua. E o fizemos:
- "Pai-Nosso que estás no céu, santificado seja o Vosso nome. . ." - antes do fim da reza a nossa voz desapareceu. O vulto em nossa frente se mexia e rosnava, o que nos deixara afônicos, atônitos e em pânico.
Instantes depois ele desviou-se para nossa esquerda, indo em direção a uma casa de esquina. Lá, havia um poste de madeira há aproximadamente um metro da parede onde o vulto misteriosamente encolheu-se e parou entre a parede e o poste. Ficou ali pôr um instante e a seguir emitiu um ruído parecido ao de um feixe de lenha violentamente triturado e junto a esse barulho ele desapareceu terra adentro.
Estávamos semivivos ou semimortos. Nada nos importava. Só tínhamos tremor o medo.
A lua, nossa velha amiga, nos abandonara. Ficamos sós, amedrontados na escuridão.
Andamos um colado ao outro até o centro da praça, onde teríamos que nos separar.
João Cosme, arrogantemente sacava de sua arma e dizia nada temer.
- Quem invadir meu caminho leva chumbo. - Assim jurava, enquanto dava alguns passos em direção à rua de sua casa e, desligando-se totalmente de nós dois, desapareceu na escuridão.
O Raimundo foi para minha casa. E o João Cosme, que se dizia destemido, foi novamente molestado pelo vulto, que o fez andar de costas até o batente de sua porta, totalmente mudo.
Creio que o vulto não gostou da dita encomenda: - se for morto, que se vá para o inferno.
E a todos que me indagam sobre o fato, simplesmente respondo:
- Não sei! Vulto não fala.