O PRISIONEIRO

Tinha um monstro com o qual devia lutar. Ele vinha todos os dias e se apresentava como grande amigo. Estava eu, onde quer que fosse, e me aparecia a criatura de uns dois metros, esbaforida, vingativa, pele grossa como de rinoceronte, voz gutural, olhos vermelhos e esbugalhados, dentes grossos, enormes, espaçados e falhos. Apontava-me o dedo e ordenava que saísse às ruas e matasse alguém em seu nome.

Digo que sempre recusava suas imposições cruéis. Não adiantava mandar-lhe partir. Ele ria e ficava. Destruía objetos preciosos de minha casa. Certa vez cheguei do trabalho e ele queimara todos meus álbuns de família. Ria-se de minha cara espantada. Encolerizado, avancei contra sua figura monumental. Inútil. Vazei-lhe o corpo etéreo e estatelei-me contra a parede oposta. Bati a testa com força. Tonteei. Dei dois passos para trás e ia caindo ao chão quando seus braços fortes me ampararam a queda. Podia se materializar ou tornar-se etéreo quando quisesse. Ele gargalhava frente à minha impotência.

- E então, fará o que te ordeno ou queres sofrer o resto da vida com a minha presença?

Eu me encontrava em uma cova sem escada. Se não o atendesse me assombraria e, caso começasse a matar em seu nome, também estaria preso ao mesmo e aos crimes que cometeria. Confesso que me veio à mente a idéia de suicídio. Livrar-me daquele algoz era tudo o que queria. Caminhei, após mais um dia de trabalho, pelas ruas chuvosas e escuras de Porto Alegre. Um vento frio vinha das geleiras Antárticas e denunciava o início da época de friagem. Apertei o paletó contra o peito e lembrei de um edifício próximo, muito alto, com um restaurante na cobertura. Seria a minha libertação.

Subi ao último andar. O salão estava cheio e o alegre som de vozes parecia-se com um cântico de despedida da vida. Ninguém me notou. Abri caminho entre mesas e garçons. As janelas estavam fechadas e o aquecedor ligado, devido ao frio. Queria chegar até a sacada. Aproximei-me de uma das portas e puxei a maçaneta. Não se moveu. Um garçom notou-me e disse que, devido ao clima, não abriram a sacada para visitas, afinal, quem seria louco de ir lá fora. Olhei para a escuridão e pude ver a fisionomia do monstro sorrindo no parapeito.

Passou a seguir-me ao trabalho. Ficava a um canto, fixando-me os olhos rotos e rubros. Por vezes perturbava, com gestos e brincadeiras de mau-gosto, um ou outro colega. Como era possível que ninguém mais o notasse? Fui ficando cada vez mais aflito. Seguia-me nas ruas e enviava mensagens como:

- Vamos, empurre essa pessoa diante do caminhão que se aproxima. Empurra, vai! – o caminhão passava e ele me xingava de fraco e covarde, além de coisas não publicáveis. Meu desespero ampliava-se. Vi, então, diante de mim uma igreja. Seria aquela a solução? Nunca fui afeito a rezas. Acreditava ser coisa de antigos, de carolas. A criatura, adivinhando-me as intenções, colocou-se diante da minha presença.

- Não ouse entra lá! – bradava.

À medida em que eu me aproximava, ele se tornava menor e mais fraco.

- Você me pertence! Não vá! Faça o que ordeno. Comecei a correr e, com suas garras, tentava me deter e por duas vezes senti o corte em minhas costas. O casaco rasgou. Pedi, pela primeira vez, ajuda a um Deus que agora eu torcia para que realmente existisse. Nas escadarias senti algo me puxando pela perna. Era a criatura, derretendo como se fosse de cera e com lágrimas nos olhos implorando para que voltasse. Desvencilhei-me a avancei. Ouvi um tremendo berro. Voltei-me. O monstro no meio da rua ardia em chamas.

Aliviado e confiante entrei na Igreja. Sentei em um banco e comecei a rezar com uma intensidade que desconhecia. As palavras não importavam. A forma era mais importante que o conteúdo. Depois de algumas horas o sacristão se aproxima e comunica que deverei sair. A casa de Deus será fechada. Imploro por uma confissão. Ele, perturbado, resolve atender-me apesar de visivelmente contrariado. Narro minha história em poucos minutos. Ele, atônito, recomenda a leitura da Bíblia e orações. Parece não acreditar e julga estar diante de um demente. Dispensa-me e me acompanha até a porta de saída. Uma estranha sensação de horror se apodera de mim. Volto-me ao padre e, de joelhos, peço-lhe para que me deixe ficar naquela noite.

Ele, constrangido, me levanta pelos braços.

- Filho, lamento, mas não será possível!

Ao me aproximar da saída, vejo, do lado de fora, o monstro que parecia ainda maior. Recuso-me a sair. Agarro-me a um dos bancos e passo a chorar. O padre, constrangido, não sabe o que fazer. Aponto-lhe a criatura. Ele se aproxima da rua. Nada vê. De repente, afasta-se e cai ao meu lado.

- Meu Deus, meu Deus... – é tudo o que consegue falar.

Com o seu auxílio, passei a viver na sacristia. Presto serviço de limpeza, cozinho, auxilio na missa. Nunca mais saí às ruas. Sempre que me aproximo da porta, ou de uma janela, vejo o monstro. Ele cresceu e se multiplicou. Dezenas de criaturas semelhantes cercam a igreja e, durante minhas madrugadas insones, gritam meu nome. Estou agora, definitivamente, condenado a passar o resto de minha vida como prisioneiro...