Os números do Lucas

Quando a campainha tocou, ouvi do outro lado a voz proferir a palavra “Quatro”. Respondi apressadamente “Sete” e continuei, lançando o desafio

“Para Nove há…”

“Setenta e seis”, disse ele

“E o quarenta e sete, corresponde a quê?”

“Oito”

Abri a porta e o espanto espalhou-se-me imediatamente na cara. Cabelo cortado à escovinha, olhos brilhantes, face gorda e rosada como um tomate, era um bom palmo mais alto que eu e do cimo da sua superioridade física olhava-me com expressão de gozo, como quem diz “Estás feito pá, foste apanhado”.

Tentei detê-lo, impedir que entrasse. Lembro-me que a boca revoltou-se e quis ter vida autónoma, abrir-se para dar o grito de alerta, avisar os outros, salvar a causa. Mas, no instante seguinte era atropelado pelo “bulldozer” e já nada mais podia fazer. Estatelado no chão de tacos do “hall”, constatei com terror que o gordo Matias, o maior fanfarrão do 5ºA, tinha descoberto o nosso segredo.

Nenhum dos outros conseguiu conter o ímpeto do curioso indesejado. Ficámos ali os três – Lucas, João e Marcos a olhar, petrificados. O medo tolhia todos os movimentos, estávamos incapazes de tomar qualquer acção.

“Então é isto que vocês andam a tramar…” disse o “bulldozer”

enquanto as manápulas apoderavam do livro que continha os

escritos e era o resultado de muitas horas do nosso trabalho.

Nesse momento, ouviu-se o som do telefone e apressei-me a atender. Quando regressei, após alguns “sim mãe, não te preocupes, está bem mamã”, nem sinal do gordo. Apenas os meus companheiros continuavam no mesmo sítio, autênticas estátuas de cera, imóveis, sem dizer “Ai” nem “Ui”

“O livro? Onde está o livro?” gritei, cheio de preocupação

“Levou-o com ele” respondeu o Marcos. “O gajo quer a colecção de

selos até terça-feira. Senão, entrega o livro à professora e todos

vão poder ler os textos mesmo sem que tenhamos tido a

oportunidade de efectuar uma última revisão”

“Terrível, não é? O que irão pensar de nós?” exclamou o João,

desfazendo-se em lágrimas.

***

Avisámos o Mateus e os dias que se seguiram foram passados numa roda-viva, sem descanso. Na terça-feira tínhamos a colecção pronta a entregar. Fomos ter com ele e quando lhe pedimos-lhe que nos devolvesse o livro sabem o que fez o sacana? Apanhou-se com a colecção e arranjou uma desculpa qualquer – parece que faltava um selo, um daqueles grandes que traziam o Marechal Carmona fardado a rigor exibindo todas as condecorações.

Na semana seguinte a coisa já circulava por todo o lado e as pessoas sabiam que os autores tínhamos sido nós os quatro: eu, o Mateus, o Marcos e o João.

***

Contado assim, parece que foi ontem. Mas tudo isso se passou na infância, há muito, muito tempo. Apesar das juras e das promessas, só eu viria a tornar-me escritor e, ironia do destino, é o bom do Matias quem me edita as obras. Já adultos, reencontrámo-nos e tornámo-nos amigos. Por vezes, entre um e outro copo de uísque, falamos nos tempos de infância e recordamos com alguma nostalgia as nossas desventuras.

Outro dia, convidou-me a jantar lá em casa e, enquanto tomávamos uns copos à beira da lareira, não resisti a fazer a pergunta

“Olha lá ó Matias… Lembras-te daquela grande sacanice que fizeste

quando nos surripiaste o livro e o divulgaste a toda a gente?”

Enrubesceu um pouco e a voz tremeu-se-lhe. Instalou-se um silêncio incómodo entre nós. Já estava a ficar preocupado, ia até dizer qualquer disparate com função fáctica para manter a conversa acesa quando, finalmente, ele respondeu

“Pois… eu era mesmo levado da breca!”

Olhei-o nos olhos. Durante uma fracção de segundo pensei em deixar a coisa por ali. Mas… se o fizesse nunca saberia. Então, fui em frente, fiz a pergunta que carregava comigo desde à muito

“Sabes… há uma coisa que sempre me intrigou. Naquele dia como

raio é que conseguiste responder certo, saber os números?”

Levantou-se (parecia um autómato) e dirigiu-se a um armário de madeira antigo, o qual estava próximo de um dos cantos da sala. Abriu a porta, escolheu a segunda prateleira a contar de cima e retirou de lá um “dossier”.

Enquanto me dava para a mão o pequeno papel quadriculado, respondeu

“Um dia, no recreio, um de vocês deixou cair isso.”

Observei então atónito o papel amarelecido, no qual a caligrafia do Mateus era perfeitamente reconhecível. E li

Os dez primeiros números do Lucas são

1, 3, 4, 7, 11, 18, 29, 47, 76, 123

Para calcular qualquer número basta somar os dois números

anteriores

Nota do autor:

Este conto é uma paródia à conhecida sequência de números de Lucas a qual foi descoberta pelo famoso matemático francês Édouard Lucas. Nesta sequência, cada número pode ser obtido através da soma dos dois números anteriores. Existem algumas propriedades espantosas nestes números, das quais há a destacar a sua relação com os números primos e com a famosa “proporção dourada”.