Vida Real

Sonhou que sua família tinha um bar em que se vendia mocotó. Era uma coisa meio doida, não se lembra se o sonho foi em preto e branco ou se tudo era escuro mesmo. Haviam cachorros, mesas e cadeiras na frente do boteco e calçadas quebradas por raízes de arvore. Não se lembra do que acontecia, mas no meio dessa doideira, seu avô paterno morria também não sei como. Daí ele voltava no tempo para tentar salvá-lo, salvou-o, porém, sua tia e prima morriam para tal. Mais uma vez voltava o tempo, seguia a louca lógica de que deveria haver um sacrifício, e como não havia escapatória, que houvesse apenas uma vítima, optava por seu avô.

Passada essa parte, ele entrava em casa, ai sim já no apartamento em que mora. Tudo ainda estava escuro. Quando abriu a porta, dava de cara com seu pai, entretanto seu pai e sua mãe seguiam atrás dele, como poderia haver duplicatas? Vendo o seu espanto, o pai que vinha atrás dele faz um comentário sobre o grito que deu ao ver a cena e vai pra sala. Sua mãe vai pro quarto, onde está a outra mãe e ele vai procurar o clone que lhe é de direito. Quando passa em frente a seu quarto se vê sentado na cama com as pernas cruzadas, como um japonês, e com uma coleira no pescoço. Passa perto dele e seu “eu sentado” tenta morde-lo. Vai para a sala e seu clone vai atrás querendo morder, sua mãe intervém e ele desiste do intento, porém, mantém um aspecto agressivo. Acha estranho e acorda.

É engraçado como os sonhos são loucos, alguns não fazem sentido, outros já dizem coisas do íntimo. Todos temos momentos em que pensamos que não vai dar, que vamos surtar ou em que sentimos que abrimos contagem regressiva para a autodestruição. Nos tornamos bombas prontas para a explosão. As pressões externas nos comprimem, trabalho, família... E tudo vai juntando, vêm algumas dúvidas e talvez até crises existenciais. Você começa a se perguntar o motivo daquilo, não há resposta. Pode até se olhar nos espelho, porém não se vê, percebe que o que existe refletido é um estranho, com uma expressão alheia, não é a sua.

Começa a lembrar da nobreza de atitudes que tomara no passado, se pergunta para onde elas foram cadê que não as encontra, não tem vontade de praticá-las. No começo havia mais disposição para fazer as coisas, não havia cansaço. Hoje parece que os ombros suportam o mundo, se sente com 200 anos olha em volta e percebe a distância que tem mantido das coisas e das pessoas, precisa de um motivo realmente forte para que faça ou restabeleça um contato, do contrário vira uma ilha. Quer extravasar essa energia, não pode, não tem tempo.

Está cansado de ser ele mesmo, não que se chamar como se chama. Gostaria de mudar de nome, queria se chamar Menezes, com Z ou talvez Monteiro, não, Monteiro não. Nada contra Monteiro, porém, parece que era o nome de um personagem do Zorro, e nessa de Zorro ele ta mais pra Tonto. Quer mudar de ramo de trabalho, um que não lhe tome tanto tempo, um que ele possa se aposentar cedo e sem trabalhar muito. Ele não sabe o que quer, precisa de ajuda e sabe disso. Priva-se de alguns de seus maiores prazeres, não vê os amigos, pouco vê a família, não faz o que quer, uma vez que tem que se dedicar a coisas desinteressantes. Eis que até a tal caneta que o acompanhava de palavras rebuscadas, sofre com o recrudescimento de seu ser. Não há gota de gente dentro daquele ser.

Quanto mais pensa, mais se desilude. A desilusão é consigo e com o mundo, mais consigo que com o mundo. Pensamentos sombrios varrem sua mente, só pensa merda. Gostaria de conseguir fixar sua mente em alguma coisa, percebe que está com dificuldade de concentração, de aprendizagem e principalmente de compreensão. Como uma mente que tinha tanta coisa dentro se esvazia de uma hora para outra? Sei lá, pra ele tudo está tão confuso que pensa que o melhor a ser feito é deixar o barco correr, quem sabe assim se arrebenta logo numa pedra e acaba com essa palhaçada.

Ele não quer contar a ninguém, não quer piedade e nem perguntas. A única coisa que importa realmente é ficar quieto em seu canto, parado, calado e isolado. Novas conquistas já não têm o mesmo gosto, sua língua fora cortada junto com seus brios. A cara que dava a tapa já não é passível de golpe, os ombros a protegem, é um ser amuado e pífio. Como uma voz que tanto se elevara em momentos tão cruciais se cala? Os olhos que falavam tantas coisas, já não dizem nada, nada que seja bom. É acusado de ser um perseguidor, alguém tão amargo que não agüenta sua própria presença. Alguém que acha que os sorrisos já não têm razão de ser, não sai de sua boca palavra que não seja crítica. As pessoas não entendem, não acreditam que possa haver alguém tão chato, ele também não acredita.

Certamente ele gostaria de ser normal ou ao menos não tão estranho quanto realmente é. Dentre tantas pessoas no mundo, logo ele tinha que ser este cara estranho, talvez a cura esteja em ser Fausto, enganar o diabo interior.

Símio
Enviado por Símio em 02/06/2008
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