O amor, um artigo de luxo

Todo quinto dia útil do mês como a maioria dos trabalhadores assalariados do Brasil, ele recebia o quinhão que lhe era de direito neste Brasil feito de tantos Severinos, João, Josés e outros tantos díspares. Entretanto, o Edivaldo, além das desigualdades que lhe fora imposto no sertão nordestino, que tinha como pano de fundo a seca, perdeu os pais e viveu a solidão de uma infância esquecida e jogada entre parentes. Grande parte de sua vida era atirado de um lado para o outro, sentia-se um estorvo, um empecilho, algo descartável, ninguém parecia sentir sua falta. Eram sempre aqueles olhares de descaso, enfado. Lá vem ele novamente, nenhum familiar o assumiu oficialmente, sua vida dependia da família inteira, sete tios, todos eram muitos pobres, cada com um deles trazia uma penca de filhos. Assim crescera Edivaldo como os arbustos e os matos, a vida se encarregara de criá-lo, possuía o essencial: comida, água e alguns trapos para cobrir o corpo.

Amor. O amor era um artigo de luxo e não fazia parte da sua vida. Edivaldo abiscoitou muitos cascudos, beliscões durantes a infância e parte da adolescência. Cascudos estes que o deixaram meio estonteado, pois nunca conseguirá sair da quarta série primária. As letras em carreirinha e contas foram sempre um mistério insondável para ele. Restavam-lhe tarefas geradas pelos exploradores desta mão de obra barata e sem preparo em que qualquer trabalho que propiciasse alguma renda, já era o suficiente. Assim vivia ou sobrevivia Edivaldo até os dezoito anos. Quando um dos tios resolveu ir embora para o Sul, em busca de uma vida melhor. Era busca do eterno Canaã, a terra prometida pela bíblia, entretanto nunca exercitada pelos homens na terra.

Lá foi Edivaldo, cheio de sonhos, ilusões, ainda acreditava numa vida melhor, agarrado num pau de arara atulhado de idealistas esquecidos pelos órgãos governantais, que somente apareciam pelo sertão quando havia chance de se elegerem para algum cargo político. Ou para explorar a mão de obra barata que existia no sertão nordestino. O Sul, especificadamente a cidade de Porto Alegre, era o destino predestinado de Edivaldo. Quando chegaram à rodoviária de Porto Alegre se dirigiram para a construção civil indicada pelos empreiteiros que os tinham contratado. Logo viram que as palavras haviam sido mais bonitas do que a realidade, pois, o alojamento, não era mais do que um acompanhamento coberto por lonas muito frio e molhado, no mesmo lugar onde iriam trabalhar.

Edivaldo acostumado à miséria, não teve dificuldade de se adaptar aquele ambiente, já o tio, logo se perdeu em cachaças e mulheres. No quinto dia útil eram convidados para irem aos bordeis de Porto Alegre. A maioria dos nordestinos foi conhecer as gaúchas e aproveitar o amor que o dinheiro podia pagar e assim voltar para o alojamento frio entorpecido de bebidas e sexo barato. No entanto, Edivaldo não foi, apesar de ser virgem aos vinte anos, preferia economizar o dinheiro para comprar uma casinha e ter,finalmente, um lar. Logo, Edivaldo ficou só em Porto Alegre, o tio se perdeu em meio ao álcool, farras e mulheres, foi demitido. Assim se perderam, não fez muita diferença, ele nasceu e cresceu sozinho.

Entretanto, Edivaldo sentia uma solidão. Uma solidão imensa, uma dor lhe atravessava os sentidos e as madrugada friorentas de Porto Alegre. Ele pensava num aconchego, num corpo quente e naqueles abraços que nunca tivera. Como desejava ter alguém. Olhava os casais de namorados aos domingos no parque da Redenção, sentia uma agonia imensa misturada com um desejo que chegava a doer em suas entranhas. Era feio, muito feio, corpo franzino e rosto de arataca, marcado de espinhas e manchas, cabelo carapinha, na maioria das vezes, resolvia suas necessidades sexuais sozinho. Sentia receio da rejeição, já fora tantas vezes ignorado que nem tentava namorar alguém e não queria gastar o dinheiro com prostitutas.

O tempo foi passando. A solidão aumentando. Num quinto dia útil qualquer Edivaldo aceitou ir com a turma de companheiros da obra, a um cabaré. Ficou abismado com aquelas mulheres todas, seminuas, sentadas em cadeiras e sofás sujos e esfarrapados tentando se vender por alguns trocados. Algumas mulheres eram muito feias, gordas com aspecto decadentes, acabadas pelo tempo e bebidas, havia as que ainda traziam traços juvenis, porém com olhar avelhantado, como se os olhos tivessem vivido mais que o corpo. Outras, levemente, bonitas com sinais de apatia decorrentes da drogas, bebida ou da carência de afeição. Pareciam seres perdidos num limbo qualquer entre o céu e o inferno. O cabaré era um vácuo entre o mundo real e o mundo ficcional da hipocrisia criada pela venda do sexo barato. Porém, havia uma, em especial, jovem, quase uma menina com pele clara e olhos verdes, pequenos, puxados e longos cabelos crespos, escuros.

A moça encantou Edivaldo, com seu rosto de anjo barroco. Naquela noite, ele não conseguiu dormir em paz, o rosto da menina o perseguirá pelos confins da sua solidão e do frio glacial do alojamento polorento. Edivaldo voltou ao cabaré e perdeu a virgindade em troca de algumas moedas, pois escolheu a fêmea mais barata. Sentiu um nojo desmesurado daquela criatura gordurosa e mal cheirosa que dizia pra ele andar rápido, enquanto olhava o teto parecendo estar contando as moscas. O seu anjo barroco era caro. Iria juntar dinheiro e ao final do mês voltaria. Foi por essa época que conheci Edivaldo, porque ele foi fazer supletivo no lugar em que dou aulas. No isolamento em que vivia a escola foi um alento, lhe mostrou um mundo desigual com algumas dificuldades, porém tinha amigos, colegas e professores. Enfim, uma espécie de vida social ao qual Edivaldo nunca tivera acesso pela sozinhez imposta pela vida.

O anjo profano era sua obsessão. Logo os colegas descobriram o ponto fraco de Edivaldo, aquele menino quieto que vivia imerso num silêncio sepulcral, aceitava as brincadeiras, tranquilamente. Todo quinto dia útil, ele a visitava e saboreava o corpo dela como se fosse um templo jamais tocado antes. Sofria muito, se sentia devastado toda vez que ia embora a deixava lá. Edivaldo sabia que Kelly não o amava, acostumara àquela vida, gostava do dinheiro fácil que sua beleza lhe dava. Um dia, ele me contou que havia comprado uma casa e iria convidar a Kelly para morar com ele. Questionei-o:- Mas, ela é uma prostituta? Não vai mudar!! O que pretendes com ela? Ao qual, ele respondeu:- Professor, sou muito feio, não vou arrumar ninguém, ela carece de uma casa e eu careço dela. Ainda insisti: - Ela vai te trair sempre!!. Nenhum argumento o convenceu, ele acreditava. Ou precisava acreditar numa mudança.

Mais uma vez, Edivaldo acreditou. Mas, desta vez não era um emprego, uma escola nem toda autodisciplina do rapaz o ajudou nesta empreitada. Kelly era mulher livre se criara solta desde os onze anos nos prostíbulos, não possuía regras ou limites nada nem ninguém conseguiria mantê-la presa a uma casa, um casamento ou um homem. Edivaldo começara a definhar, chegava às aulas com grandes olheiras roxas, mal arrumado e muito triste. Havia uma dor, um tormento tão avassalador em seus olhos que todos ao redor dele sentiam-se atingidos. No entanto, era uma amargura silenciosa, quieta, calada, que me lembrava o poema Retrato, de Cecília Meireles: “Eu não tinha este rosto de hoje. Assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo, Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas, eu não tinha este coração, que nem se mostra..”. Porém, um dia qualquer ao chegar a casa. Foi o final da crônica Tragédia brasileira, de Manuel de Bandeira que se deu no seu barraco. Eu não o encontrei mais, soube através de uma notícia de jornal:: “ Nordestino mata prostituta no seu barraco”. Pobre Edivaldo, num quinto dia útil qualquer privado de sentidos e de inteligência se perdeu por aí.

Isa Piedras

Inicio em janeiro e término em julho*2008