Um Requiem.

A cama estava plenamente arrumada, como poucas vezes estivera, e em seu centro havia uma caixinha de madeira nobre, herança de família, e ao lado uma folha de papel com alguns garranchos que pretendiam justificar o injustificável; era só mais uma repetição do que mais fizera durante toda vida: desculpar-se.

Entrou no quarto com seu terno largo e sapatos lustradíssimos, carregava em suas mãos um saco de pão com duas aberturas para os olhos, sentou-se com seus 48 quilos na beirada da cama e não olhou para o espelho à sua frente antes de vestir o saco e se ajeitar de modo à acomodar suas hemorróidas no colchão. Agora sim, olhou e viu à si mesmo, a cabeça em forma de saco, os olhos verdes sem brilho, trincados, o terno sobrando sobre seus ossos e as mãos muito brancas e magras que foram trêmulas em direção ao papel, lembrava muito um títere tosco de algum teatro de bonecos esquecido, mas não haviam cordas, não havia ninguém no controle.

Releu as 36 palavras que usara pra dizer o quanto estava cansado e fodido demais para tentar qualquer outra coisa que sabia, não daria certo. Isso feito, o homem com a cabeça de saco pegou sua caixinha e a colocou em seu colo, enquanto repassava sua vida em pensamento. Seus momentos-chave, as oportunidades que tivera de ser feliz e que escorreram por entre seus dedos ou bateram em sua porta enquanto dormia. Pensou nas três mulheres de sua vida e apesar de todas terem-no abandonado, sentiu-se ainda um cara de sorte por alguns segundos. Poderia ter sido melhor? Por que não foi? Já não importa.

Pensou nos filhos que nunca teria, na árvore que não plantou e nos livros que jamais seriam publicados, nos retratos que não colaria na parede e na Europa distante, com suas ruas e cafés e francesinhas que jamais provaria, e na aposta que perderia por não passar dos 27. Pensou que se pudesse voltar aos 20 faria tudo diferente.

Então abriu a caixa e sacou o calibre 38 de dentro, apontou para seu reflexo patético no espelho, fingindo atirar com uma onomatopéia tipo bang!, depois apontou na direção da têmpora direita enquanto pensava na sujeira que faria.

Então, antes de pintar as paredes de vermelho-sangue, acrescentou um post-scriptum no bilhete onde pedia à Maria, a faxineira, que o perdoasse.

O garoto acordou assustado e tremendo, atrasado para o colégio, calçou rápido o tênis e foi correndo comprar pão.