Necessidade humana

Prólogo:

Ivair Augusto Alves dos Santos afirma que:

"Discriminação é um conceito mais amplo e dinâmico do que o preconceito. Ambos têm agentes diversos: a discriminação pode ser provocada por indivíduos e por instituições e o preconceito, só pelo indivíduo. A discriminação possibilita que o enfoque seja do agente discriminador para o objecto da discriminação. Enquanto o preconceito é avaliado sob o ponto de vista do portador, a discriminação pode ser analisada sob a óptica do receptor".

Eis o quanto poderá sofrer um estudioso das Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) ao intentar um doutorado na UFRJ com vistas a melhor compreender as necessidades humanas.

A contração facial para esconder os verdadeiros sentimentos não bastou para camuflar o sofrimento do homem sério. Após longa caminhada por entre vielas ele sentiu uma pontada fina e forte no peito magro.

Não era a fome que o perturbava e tampouco a sede que lhe corroia o plexo braquial. O sol inclemente, causticante, transportava-o para as plagas longínquas onde vivenciara verões esplendorosos com seus entes de razão (imaginários e/ou fantasiosos).

Ganhar e vencer não são a mesma coisa, têm significados diferentes. As rugas de expressão que no momento se acentuavam no rosto do andarilho eram a prova incontestável dessa dicotomia (perder ganhando) emergente. Confiante ele perdia o medo. Ele era um vencedor e conseguiria concluir sua tese com louvor.

Excedendo na crença do moralismo cristão fatalmente deixava o etnocentrismo invadir sua mente hiperativa. Sabe-se que valores próprios não são parâmetros únicos e suficientes para julgar outros costumes sociais.

As necessidades de uns poucos humanos não são iguais às necessidades de pessoas que, embora semelhantes, têm atributos físicos diferentes, valores sublimados ou não pelos genes herdados dos seus ancestrais.

Ainda com esses pensamentos em ebulição o homem sentou-se sob a marquise onde se encontravam três mulheres aparentando 40, 28 e 22 anos de idade respectivamente. De soslaio a moça mais nova olhou para o homem e segurou mais forte a bolsa ao encontro do corpo bem proporcionado.

As três mulheres ficaram mais juntas. Pareciam acreditar que a união faz a força. Para os militares a união (grupo de pessoas) apenas torna o alvo mais fácil. O moço velho sabia que viver em sociedades nas quais os diferentes estão quase que permanentemente em contato não é fácil.

Os diferentes são obrigados ao encontro e à convivência. Como poderia dizer àquelas pessoas que ele não era um ser perigoso? As aparências enganam e elas estavam, de fato, enganadas a respeito do homem faminto e rosto escanifrado. Ele necessitava mais de oportunidades do que compreensão.

A política do reconhecimento e as várias concepções de multiculturalismo nos ensinam que é preciso compreender uma verdade: que seja admitida a diferença na relação com o outro. Isto quer dizer tolerar e conviver com aquele que não é como eu sou e não vive como eu vivo, e o seu modo de ser não pode significar que o outro deva ter menos oportunidades, menos atenção e recursos.

As mulheres pareciam bem nutridas, estavam perfumadas, limpas, pareciam vestidas para uma festa; a pele hidratada do trio era um acentuado contraste com a tez esturricada do homem sombrio, feio como um couro de bicho curtido para uso na indústria calçadista.

A constituição brasileira ora em vigor diz textualmente:

“Todos são iguais perante a lei e não poderá ocorrer a exclusão de nenhum elemento da totalidade”. Com um esgar de desprezo a mulher de aparência mais idosa sussurrou ao ouvido da menina-mulher que trajava um vestido de musselina bege: “Não olhe para ele! Pode ser um ladrão ou assassino perigoso”.

Triste sina a dos excluídos. O homem ouviu as palavras e uma lágrima insossa rolou suave pelos sulcos do rosto triste. Pensou com seus botões:

“A imagem que faz a sociedade por ora representada por três mulheres muitas vezes sobre os portadores de deficiências e grupos subalternos, pobres, negros, prostitutas, homossexuais, é deprimente e humilhante para estes e causa-lhes sofrimento e humilhação, ainda mais por que tais representações depreciativas são construídas quase sempre para a legitimação da exclusão social e política dos grupos discriminados”.

O estudante estava cansado, sedento e faminto; mal se punha de pé o homem que era visto como um ser perigoso representava a contento o seu papel. Uma viatura policial parou nas proximidades. Um riso sardônico, falso, enfeou o rosto plácido da menina-mulher quando o policial truculento dirigiu-se ao homem e disse com rispidez e empáfia acentuada:

“Saia daqui se não quiser ser preso!”. Henrique (esse era o nome do homem magro e triste) não estava em um local público? Cometia ou cometera algum erro? Não. Em absoluto. Ele era um jovem velho e com a aparência de mendigo. Isso ele quis. Isso não é crime!

Estava sendo discriminado! Mas gostaria muito de poder dizer ao policial que não era apenas um especialista em armas e munições, explosivos, investigação criminal, incursões e missões de sabotagem; também era um autodidata nos vários ramos do direito humano e que na ocasião, em sua empreitada, estava em franco e merecido progresso. Não. Isso ele não poderia dizer ao bronco policial.

O mesmo policial olhando para as mulheres disse com um ar de autoridade constituída: "Tudo bem com as senhoras? Posso ajudar em algo?". Oh! Quão pouca ou nenhuma sutilileza do solícito militar. Pedia aplausos por tão vergonhosa truculência?

Sem exteriorizar seus pensamentos o falso mendigo balbuciou entredentes: "Pobre diabo malformado em sua decadente e corrompida corporação".

Não via ou não queria ver o policial que pela aparência o homem em andrajos parecia ser o mais necessitado naquela ocasião? Em sua corporação, provavelmente, também seria ele um discriminado.

Era impossível que ele soubesse o real propósito do homem mendigo. Tratava-se de um estudante que se transmudara com o fim de melhor concluir sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua tese? "Necessidade humana".

Para sentir as agruras dos discriminados e as reais necessidades humana Henrique deixara cabelos e barba crescer, trocara suas vestes com as do mendigo que fazia ponto na transversal da Rua Toneleros com a Rua Siqueira Campos e morou duas semanas sob uma marquise de um dos prédios suntuosos da Nossa Senhora de Copacabana com o fim de assomar uma aparência miserável.

O desenvolvimento na escala humana só se efetivará plenamente quando as políticas públicas reorientarem suas prioridades para o social passando a ver o homem como seu real beneficiário; quando se aprofundar em nossa sociedade a consciência da dignidade do ser humano e quando for possível extinguir essa estruturação social que agride sistematicamente os direitos da pessoa humana.

Em resumo: O desenvolvimento na escala social se sustenta na satisfação das necessidades humanas fundamentais, na geração de níveis crescentes da independência dos indivíduos, na articulação orgânica dos seres humanos com a natureza, com a tecnologia, a fim de que possam todos se integrar no trabalho e em toda a vida social, respeitando valores, culturas, costumes e diferenças.

O desenvolvimento, para ser definido como social precisa estar voltado para suprir as necessidades humanas.