A Família é o Berço de Tudo

A Família é o Berço de Tudo

Léo Chagas era um homem ainda jovem. Limitado por um diploma, trabalhava insatisfeito. Escritor, dava asas à imaginação. Vivia, portanto, entre o prazer de criar e o mito do canudo de faculdade para ganhar dinheiro. Incomodava-o a invisibilidade em que existia. Consolava-se ao saber que Machado de Assis, mulato e epilético, durante um período de vida viveu invisível. Os idosos são exemplos desse estado de coisas: esquecidos numa cama, num sofá, numa cadeira de balanço. E o que dizer de garis e serventes apesar dos uniformes? Só não são traspassados porque há matéria neles!

O escritor voltava para casa. Ao entrar, deparou com seu lar num verdadeiro pandemônio. Não que tivesse ocorrido algum roubo ou assassinato. Móveis, objetos, utensílios estavam no lugar. Era sua família. Encontrou a mãe, lendo a Bíblia. Até aí nada de excepcional. Ela sempre fora religiosa. Vestia um maiô preto da marca Catalina. Sim, desses usados pelas candidatas à miss beleza. Desfilava pela casa de sapatos vermelhos de saltos altos . A irmã mais nova pintava as unhas dos pés, nua. Cantarolava, movendo as coxas de modo lascivo. A mais velha, como se tivesse saído do banho, tocava ao piano o Hino Nacional. Tinha na face um ar de beatitude. O irmão de dezesseis anos espiava as irmãs em progressivo estado de ereção. Dois estranhos, trajando sungas, rebocavam as paredes da sala e suavam muito. Expunham os peitos definidos, peludos e conversavam com a antiga empregada que segurava quadros das imagens de Nossa Senhora e de A Última Ceia. Veio à mente de Léo cenas do filme Teorema de Pier Paolo Pasolini... Os parentes tinham se transformado em personagens de Nélson Rodrigues? Que diabo acontecia? Seria tudo aquilo um sonho, um pesadelo? Bebera demais? Queimara um baseado daqueles? Espantava-se com tantas perguntas sem respostas! Porém, o que mais o constrangeu foi, ao subir até o quarto dos pais, flagrar o genitor abraçado a um negro estranho. Ambos, adormecidos, pareciam íntimos amantes...

Léo, como escritor, flertava com a fama. Era um autor introvertido, às vezes original, de forte apelo erótico e transgressor. Ele não era um pornógrafo ou um mela-cuecas do tipo: "a noviça, de quatro, sentiu a geba do monsenhor em brasa invadindo-a; o tiozinho pedófilo comia o rabo do sobrinho sacana, proferindo palavras obscenas." Foi para seu quarto. Nada do que vivenciava podia ser real. Deitou-se na cama, estressado. Estava atônito, perdido. Se conseguisse dormir, por certo, desfaria toda aquela anarquia de valores. Um filósofo dissera-lhe: "costumamos teorizar, extasiarmo-nos com o que criamos e nos chocarmos com a ausência de regras na realidade". Ligou o rádio. Gostava de adormecer ouvindo música. A voz do locutor passou-lhe mensagem mais do que irônica para aquele momento: a família é o berço de tudo...

Do livro Baixada Erótica ou Não!-2008-

Pablo Ribeiro