O Soldado sem Nome

Ao grande Henry Evaristo

A fome talvez incomodasse um pouco os dias que não passavam. Ele pensava que seria mais fácil suportar se a grama fosse pelo menos um pouco menos cinza. Havia grama?

É estranho, pensava, como as coisas são tão neutras quando a escuridão domina os olhos. Tudo parece compartilhar do mesmo medo, do mesmo odor de sangue podre. Mas a esta altura, era difícil deduzir de onde vinha o cheiro, para onde iria o medo. Assim, ele acabava por tropeçar nos seus mortos, tentando em vão tomar cuidado para não pisar nos mortos dos outros, dos esquecidos. Sim, acreditava, os vivos são os que serão esquecidos, pois a terra se lembrará dos mortos quando estes se liqüefazerem de suas lendas e se tornarem pó.

O maldito cheiro de carne podre bem que poderia estar literalmente embaixo de seu nariz. Porque não? Dava para lembrar da baioneta cortando seu lábio superior, e por mais que tenha sido rápido, ele sentia a lâmina dilacerando fundo até os seus dentes, como se o tempo fosse o algoz, e tudo fosse suavemente lento. O ranger do aço em sua gengiva se fundia aos gritos agonizantes que ouvia ao longe.

O golpe não foi suficiente para finalizar sua vida sem começo. Não naquele dia. Era preciso sobreviver, olhar os olhos do inimigo, sangrar sua alma, arrancar e depois comer seu coração. Mas isto ele não pode fazer. Sequer podia gritar estando com o palato em pedaços, e a palavra entalada na garganta.

O que seria necessário para acabar com esta fome, quantos dias se passaram? Tudo é escuro, frio. Estaria no inferno? Mas onde seria o inferno? Há os que falam do fogo, mas aquele não era o seu inferno. Seu inferno era ali, bem ali naquele campo sem dono, esquecido no lodo, manchado por pequenos anjos caídos.

Ele reconheceu um anjo e decidiu chamar seus demônios. Se lembrou que aquele anjo que ora deixava a podridão fluir de sua pequena cabeça, foi um bravo. Assim, o seu demônio também precisava ser. Era preciso se espelhar no pequeno anjo que enfrentou a perna do colosso que o dilacerou sua moleira com um só golpe e um sorriso. Era preciso ser mais forte que o grito do anjo implorando clemência.

Ele sabia que seu fim estava próximo, mas precisava percorrer todo o campo. É preciso debruçar-se em cada cadáver e chorar um pouco, pois os vivos haviam sido esquecidos. Mas porque a grama é tão cinza? Aquele anjo bravo tinha seis anos quando enfrentou o colosso de Vera Cruz em favor de um Paraguai sem dono. Ele também o fizera. Mas o Paraguai era seu. Tinha um dono, um guardião tupi, sob a sombra de Tupã.

O gosto de morte descia por sua garganta sedenta a cada vez que ele engolia a seco. A pequena fonte exalava os últimos traços de vida que ali lutaram há não se sabia quantos dias. Quando os dias se tornam trevas, não há volta. Os não mais se abrirão ao sol.

Continuou andando e vez por outra sentia, entre seus dedos descalços, a textura dos restos que se decompunham ao sabor da sorte ingrata de, naquele momento, ser homem, macho.

Enfim pode encontrar um demônio. Era esguio, mas parecia cansado. Tinha a boca dilacerada, como a sua, porém sangra pelo umbigo. Devia estar com fome. O demônio apontou para seus pés, e ele viu que três cabeças de pequenos anjos bravos o olham, o condenavam. Percebeu que ele deveria ser esquecido, pois ainda vivia, e os vivos é quem serão esquecidos.

Eis que surge outro demônio, que também sangrava pelo umbigo e tinha a boca rasgada. Este apontou para cima e mostrou o corpo de dois anjos. Ele viu que eram fêmeas, e que também eram bravas. Seus corpos balançavam numa árvore que também estava morta. Elas tinham a barriga e o ventre cortados. Aos seus pés descansavam seus rebentos, cada um com uma baioneta cravada no coração. Uma baioneta igual a que rasgou o céu de sua boca, e o levou para longe um céu possível. Os rebentos ainda estavam ligados aos anjos, ainda eram um só.

Ele percebeu que não suportaria outro demônio, mas eles começaram a aparecer. Cada um de um canto, apontando para um anjo caído, apodrecendo, fazendo parte de uma Paraguai sem dono.

Ele caiu de joelhos ao chão, seu umbigo sangrava. Era hora de fazer parte de um Paraguai que era seu.

Um demônio brasil se aproximou e fez dele parte daquela terra podre, com um simples tiro nas costas. Ele sequer ouviu o chamado, apenas caiu e se tornou parte de seus demônios, se tornou pó, sangue, nada.

Amargo
Enviado por Amargo em 24/09/2008
Reeditado em 24/09/2008
Código do texto: T1194395
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