Vento Esquecido

Certas coisas vão com os ventos, pensava Irineu. Vão galopando no silêncio rumo ao desconhecido seu, e conhecido de um outro qualquer, para que ele viva a vida de outro. Mas nem todo vento deixa marcas, alguns são esquecidos, mesmo que não se queira.

Divagava assim, sempre pelas manhãs, ao se levantar. Há muito não conseguia dormir. Esqueceu o que é sonhar. Vivia a vida comum, tão fútil quanto a de qualquer outro homem de quarenta e cinco anos tentando mostrar a si mesmo que não tem mais que vinte e três. Porém o peso da idade saltava-lhe aos olhos que já não enxergam mais tão bem.

Virilidade é para sempre, dizia o velho Armando. Existem chás e chás. É preciso fazer a mistura certa. Depois, é só usar a mulher com moderação que se permanece homem forte eternamente.

Irineu acreditava nos conselhos do pai e por isto sempre mantinha uma “garrafada” para qualquer emergência. Mas as emergências não mais surgiam, a não ser que pagasse. E assim, as mulheres eram apenas brisas sem sombra, sem lembrança.

É preciso se lembrar de quem você é, dizia dona Ester à sua filha Carlota. Mesmo sendo mulher, dentro de você é preciso ser alguém. No entanto, a pequena menina sabia o quanto era objeto. Ao ouvir sua mãe dizer das três escolhas de uma mulher, sentia um pânico nascer em sua garganta que depois era contido pela boca para não se transformar em grito. Por isso seu queixo tremia tanto. Seus dentes eram qual grades que deveriam conter os meus medos.

A mulher possui três caminhos a percorrer na vida, e todos os três de joelhos, dizia dona Ester. Ou se ajoelha para Jesus no convento, ou se ajoelha na cama para o marido, ou se ajoelha no assoalho para lavá-lo. Carlota preferia ajoelhar-se no túmulo.

São necessários sete palmos bem medidos, para que a cova não fique rasa. Se ficar rasa, a alma do defunto começa a espumar pelo chão. Heleno prestava atenção em tudo que Honório Coveiro, seu pai, lhe falava. Mas era preciso acostumar o nariz com o que o vento trazia. Por mais bem cuidado que fossem, os cemitérios sempre trazem o cheiro dos pecados humanos. Heleno não entendia o cheiro, não o saberia explicar. Também não haveria para quem explicar.

Ora lembrava ganância, ora inveja. Entrava pelas narinas e ia direto ao estômago, invadindo os sentidos, corroendo a compreensão das coisas, fazendo sentir vômito, desistir da vida. Mas aquela seria sua vida. Seu avô foi coveiro e seu pai o era. A ele só caberia um destino: ajoelhar-se na terra morta do cemitério da igreja de São Boa Ventura e ser coveiro.

As covas do rosto fino de Carlota aparentavam uma idade que ela não possuía. Seu sorriso, mesmo que sem querer, assombrava quem não a conhecesse. Mas quem a conhecia?

Heleno conheceu seu destino aos dezessete anos de idade. Aos vinte era detentor do ofício de enterrar as pessoas. Não que houvesses algum mistério nesta lida, mas seu trabalho era justamente enterrar os segredos. Como fez naquele velório da família Germano.

Armando Germano era homem de posses, porém sutil. Não esbanjava e nem era de jogar conversa fora. Muito pouco se sabia de sua família ou de seus filhos que mal saíam à luz do dia. Diziam que o próprio Armando era um lobisomem. Isto porém não interessava a Heleno que apenas abotoava o seu último terno.

Naquele dia quente de janeiro foi preciso gastar mais algodão do que de costume. A boca do velho Armando exalava insistentemente o resto de seus pecados em forma de coágulo. Foi preciso usar de força para empurrar tanto algodão garganta a baixo.

A mão fechada do defunto guardava um pequeno papel, talvez despercebido pelo resto da família. Heleno abriu os dedos frios e percebeu que o que parecia ser um bilhete. Abriu e observou atentamente as letras estranhas, todas escritas de maneira torta. Não é assim que Deus também escreve, se perguntava. Se estavam certas? Não importa. Heleno as guardou no bolso de Armando e encerrou seu trabalho. Ele não sabia ler.

Carlota não entendia porque não poderia aprender a ler. Mas sua mãe, em toda a sua sabedoria lhe explicava que leitura não carecia de ajoelhar-se, portanto não era necessário à uma moça de família. E ela apenas ouvia e pensava na quarta opção que não existia: ajoelhar-se numa cova e ali ficar, para sempre.

“... para sempre, até que as morte os separe?...” Sim, respondeu Irineu. E desposou Rita, filha do mascate Januário, nem feia nem bonita, apenas mulher.

O vento soprou forte no dia do seu casamento, mas foi logo esquecido. Além de casar-se feito uma pessoa comum, o filho de seu Armando casou-se também com a penumbra de sua consciência, manchada por uma brisa insistente que sempre vinha do lado norte.

Não que Irineu não fosse feliz, apenas não sabia o que era felicidade, como todas as pessoas comuns não o sabem. Seus fantasmas, seus tormentos eram sempre acionados quando exercia seu papel de marido. Neste momento, um vento frio assoprava sobre o rosto de sua esposa, desfigurando-a. E em seu lugar, sempre aparecia o rosto de Carlota.

Sobrou-lhe apenas uma quinta opção: ajoelhar-se no assoalho e a Jesus, ao mesmo tempo. Virou corola. Sua mãe não havia lhe previsto sobre esta opção, e sua cova teimava em não chegar.

Chegou com um ar triste, naquela manha de insucesso. Olhou a pequena menina de joelhos e a abraçou. Era assim que a imagem de Carlota corroía seu pensamento. Irineu a encontrou quase moça e a tornou mulher ao mesmo tempo que se fez homem. Depois tornou-se um bicho.

Desde então jurava sentir seu cio, seu cheiro. Sentia também sua podridão de homem, de animal. Mas não podia conter.

Nem ela podia ou queria se conter.

Entregava-se onde quer que fosse. Na hora que ocorresse.

A cada nova entrega uma nova prisão. Irineu precisou casar, a mando de seu pai. Dona Ester achou bom que o filho se casasse, afinal Carlota dava sinais que não lhe daria filhos, que sequer se casaria.

Naquele dia quente de janeiro, a pobre mulher sentiu um vento úmido no rosto e a garganta seca. Não tinha coragem de olhar o corpo do pai que jazia em um caixão que Irineu não conseguia olhar.

Certas coisas devem ir com o vento, pensou Carlota. Mas outras teimam e ficar e arder.

Sua sede de mulher sempre ardia ao ouvir Irineu conversar com a mãe. Se pudesse, ajoelharia para ele eternamente. Porém sempre lhe sobrava a sina de não ser nada, de ajoelhar-se apenas no milho. De ter que rezar.

Acreditaram que o pai estivesse no quarto rezando, que a mãe dormia. De fato dona Ester saboreava o bom sono dos anjos. Mas o demônio encarnava seu Armando quando este ouviu a brisa de sussurro da filha jurando entrega eterna a Irineu.

Pensou em fazer um bilhete e pôs-se a escrever. Escreveu toda a sua angústia, seus segredos e quis entregar ao amante. Pensou na loucura de entregar o bilhete à Rita, mas faltou coragem.

Os passos de Irineu eram cadenciados às pás de terra que cobriam seu pai. Carlota ajoelhou-se na terra infecunda do cemitério da Igreja de São Boa Ventura, mas não morreu. Não pode ainda usufruir de sua quarta opção. Lembrou-se que esta jamais lhe fora dada.

Entregou a carta a Heleno, única pessoa que pudesse entender sua desventura, assim pensava.

Ele sequer lhe sorriu. Guardou a carta em seu bolso e terminou seu ofício de enterrar pessoas. Deu as costas e foi embora, sem sequer conhecer os segredos ainda não enterrados de Carlota.

Ele não sabia ler.

Amargo
Enviado por Amargo em 30/09/2008
Reeditado em 07/10/2008
Código do texto: T1204311
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