Apatia

A sala central cheirando a fritura anunciava ser hora do almoço na Pensão São Paulo. Ele atravessou o corredor dos quartos olhando de soslaio para cada um deles, xeretando o nada. Sim, nada naquele lugar lhe chamava atenção. Tinha poucos conhecidos por ali e pouco conversava. Sentou-se à mesa no mesmo lugar de sempre, de frente para a TV que já anunciava o jornal do meio dia. As pessoas foram chegando e acomodando-se nos seus lugares costumeiros. A comida tinha o mesmo cheiro, as mesas tinham as mesmas toalhas xadrez e o mesmo arranjo de flores de plástico. Os quadros nas paredes eram de coloridos gritantes. A barulheira dos cozinheiros era a mesma de todos os dias e as garçonetes sardonicamente sorridentes. Aliás, tudo por ali era enfadonho, monótono, igual. Tinha se habituado a viver naquele mundinho vesgo e tacanho. E por ali foi ficando.

A refeição já estava sendo servida quando ele se levantou e dirigiu-se ao seu quarto. Voltou em seguida com alguns comprimidos que por certo havia esquecido de trazer e, enchendo o copo com água, abocanhou a palma da mão engolindo de uma vez os remédios. Engoliu seco e tossiu de lado. Ajeitou a manga da camisa pra não sujar na comida e verificou se a gola estava em ordem, acertando o nó da gravata. Limpou os talheres com o guardanapo e conferiu se o copo estava limpo, cheirando-o. O almoço foi rápido e terminou junto com o telejornal, que acabou de assistir palitando os dentes. Depois enfiou-se no seu quarto e ninguém mais o viu a tarde toda.

Quando a hora do jantar chegou ele apareceu novamente. Repetiu a rotina do almoço e, após palitar os dentes, dirigiu-se ao sofá e pregou os olhos na TV até a hora de dormir. Durante o tempo que ali permaneceu não falou com ninguém. Pouco importava se alguém mudasse o canal que estava assistindo ou mexesse no volume. Às vezes se levantava e quando voltava vinha ajeitando a braguilha. Outras vezes ia ao quarto e voltava com os mesmos comprimidos do almoço engolindo-os da mesma maneira. E ali ficava até tarde, quando as pálpebras começavam a pesar. Com um discreto boa noite recolhia-se sem mais delongas. Os dias e noites eram quase sempre iguais, com exceção dos domingos em que ele se sentava à porta da pensão para tomar sol pelas manhãs e as tardes passava com os ouvidos colados a um rádio ouvindo futebol. As semanas sim, essas eram sempre as mesmas, assim como eram os mesmos os meses e os anos.

Pela manha a rotina do café se repetiu. Os comprimidos também se repetiram. Só que desta vez ele não voltou pro quarto, desapareceu pela porta da rua sem falar com ninguém. Também não voltou na hora do almoço. Chegou muito tarde. E naquela noite não jantou, não tomou remédio, não se repetiu.

Na manha seguinte ele não apareceu para o café. Procurado, foi encontrado morto em sua cama. Nenhum bilhete deixado denunciava tratar-se de suicídio e nenhum sinal de violência apontava para assassinato. A autópsia revelou infarto agudo do miocárdio. Havia partido desta pra melhor, sem que por ele tivesse sido derramada uma lágrima sequer. Seu enterro foi acompanhado pelo agente funerário que cobrara, regularmente, o mútuo e pela dona da pensão. Dentre seus pertences, um caderno de notas.

Tinha cinqüenta e quatro anos e era funcionário aposentado da Central de Trens Urbanos. Não tinha família. Pelas suas anotações soube-se que havia militado por algum tempo no movimento estudantil, mas abandonara a causa por desiludir-se com socialismo. E também deixara a universidade por desinteresse no curso que havia escolhido. Há alguns anos havia tentado abrir uma firma e trabalhar por conta, mas seu parco tino comercial o levou à falência. Não ficou com dívidas, mas perdeu o que tinha restando, somente, o salário da Central. Da juventude guardava uma foto três por quatro de uma mulher que não tinha nome. Atrás da foto uma dedicatória: “A você como prova do meu amor”. As receitas médicas contaram que ele passara grande parte da sua vida perambulando por consultórios médicos e se intoxicando de antidepressivos, na esperança não se sabe de que. Aonde teria ido naquela manha-tarde-noite também nunca se soube. Na sua lápide um epitáfio que ninguém colocou: ‘Morreu só, como só viveu’.

Carlucho
Enviado por Carlucho em 21/10/2008
Código do texto: T1240017
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