O Segredo e o Silêncio - Série Insólitos I



          Não são exatamente nestas linhas que tudo tem inicio, e não hei de seguir uma cronologia; explicarei, se houver alguma oportunidade futura. Não sei se haverá tempo; posso estar morto amanhã, por isso vou narrar quando der vontade e quando for possível. A certeza dessa série está na incerteza com a qual ela será construída.
          Começarei com eventos em um funeral na véspera da passagem de ano. Eu já havia dado alguns passos pelo umbral, e em uma semana em que a primavera da paixão ardia em meu âmago pela estonteante e jovial Aidê, num sábado, o velório de sua avó acontecia. Nada mais incômodo. Uma velha tradição de família, com o caixão da anciã sobre uma mesa na sala cercado por parentes e curiosos. Em outros cômodos, alguns quitutes e muita bebida eram servidos para passar a noite. Num dado momento, furtivamente, retirei Aidê do ambiente funéreo e escapamos para a rua, e sob uma sombra de uma árvore fomos namorar. Não demorou muito, para uma de suas irmãs nos descobrir e passar uma repreensão pelo que fazíamos, e, sentindo-se culpada, Aidê voltou ao velório. Não fui, naquele momento, quis ficar sozinho ali sob uma velha e frondosa jaqueira, na penumbra, pensando naquilo tudo, embora não entristecido. Mas ali fiquei, até que fui surpreendido. "Tércio", ouvi. Olhei por entre as sombras atrás do tronco da jaqueira e ele estava ali, um de meus mestres que me acompanhara nos primeiros passos em meus primeiros átrios. Eu sorri, retrucando:
          - Hoje sou Tércio? Mas rapidamente apaguei o sorriso, não quis lhe parecer tão cínico ou relaxado. Reverenciei-o.
          - Sim, hoje serás Tércio o único dos gêmeos sobreviventes; bem sabes o porque lhe denomino assim neste momento. O que aprendeu hoje meu rapaz?
          - A utilizar mais meus olhos e minha audição - não titubeei em dizer - sentindo, mergulhando nas almas de alguns que conseguem exalar saudades da falecida. Sinto isso em Aidê e em alguns outros; não na maioria, estes não se importam, não fazem idéia do que a falecida passou. Mas pude sentir conversando com Aidê, olhando as fotos antigas e o quadrilátero sentimento exposto nas faces dos filhos presentes, alguns ausentes, muito mais sinceros neste caso... Os netos, ah! Os netos, folhas secas no outono apenas. Estou aprendendo, bem sabes que estou...Já renasci, não é mesmo?
          - Sim Tércio, está aprendendo... Alguma personalidade iceberg lá no banquete funerário?
          Ele parecia, ou seja, ele tinha esse dom, não à toa era meu mestre, mas sempre brando com a tez tranqüila, embora expondo uma ruga franzida de sutil indignação, o que não o deixava jamais afogar-se no mar da banalidade. Eu disse:
          - Sim. Uma alma filósofa sim... Sem a placidez filosófica que eu aprecio.
          - Perfeito - ele assentiu - A placidez demora a vir, em muitos casos nunca chega... É quando o amante de Sophia não a liberta como deveria libertar.
          - Começou um diálogo muito estimulante - prossegui - mas não demorou que uma de suas faces, um lobo a olhar-me faminto que vi pelo brilho no olhar; mas havia também uma hiena, pronta pra me destroçar habilmente. Foi simples, bastou-me ficar vulnerável em algumas questões, para a minha carne ficar exposta e despertar-lhe os instintos.
          - Não mudam, não apreendem mais com a humildade, enterram-na de vez nos falsos sentimentos e cognições feitas de concretos objetivos nos dias que se seguem. Há os que já duvidam dela, os dias atuais fomentam isso, mas considero incapacidade de separar o joio do trigo... Mas, desejo que aprenda o quanto pode ter ou não valor o momento que seu âmago absorve.
          - Aprendi Mestre, aprendi, estou aprendendo... Aprendendo muito com todas as certezas e colunas de lógica que a alma enamorada do saber incute em minha mente, tanto quanto outras certezas paralelas e o catecismo existencial que ali ecoam no velório...
          Meu mestre sorriu docemente, seus cabelos grisalhos reluziam sob a luz amarelada de um poste próximo. Pôs-me a mão sobre meu ombro esquerdo dizendo em tom de quase sigilo.
          - Raros, são cada vez mais raros os amantes do saber... E mais raro ainda, os que desconhecem que na alcova do legado devem os ensinamentos ser passados sutilmente, cuidadosamente. Mas é só o ego que lhes interessa, nada mais. Quase toda interação para essas índoles é um meio de alimentar-se apenas ou de drogarem-se também. Levamos vidas muito medíocres, miseráveis, a maioria estaciona nisso. Acredite, eles assistem cada ato, cada cena da miséria e da injustiça como um expectador de um teatro. O sentimento é apenas um flash de exorcismo, um vômito necessário ali naquele instante. Depois, em seus lares, haverá um escravo sendo alimentado com sobras de suas procrastinações. São capazes de panfletar que devemos passar uma semana na África para ver o que é o sofrimento em seu mais profundo poço de humanidade, mas ao mesmo tempo são críticos daqueles que ali entregam suas vidas ao próximo. Esteja atento a essa dicotomia, sentindo-a em alguém, afaste-se dela cuidadosamente... Enfrente apenas a tua própria e a vença.
          - Mas existem exceções, não é?
          - Sim Tércio, existem, ou não faria sentido nós estarmos nessa linha de tempo aqui ainda, nesse encontro. - ele silenciou-se por uns segundos e prosseguiu - Aidê, sabe quem você é?
          - Não... Não sabe, e não sei se direi, se o tempo for generoso conosco, que ela descubra por si. Mas sinto que não teremos muito tempo...
          - Sinto muito, não terá mesmo. Quatro primaveras apenas... Mas, não pretende dizer, não sente o ímpeto?
          - Não mais Mestre, já foi o tempo, não mais. Faço quando tem de fazer, falo quando tem de falar, silêncio porque é como tenho mais aprendido...Ela é fabulosa. Tem suas tendências, sinto que vai segui-las... É inevitável.
          - Ame-a intensamente... É tudo que pode fazer. Mas, e as sementes? - E sorriu pra mim
          - Semeei. Estão lá. O tempo e as ações dela se encarregarão de dar o caminho à luz que os grãos irão buscar...Ou não...Ela é fabulosa.
          - Sim Tércio, ela é fabulosa... Mas terá de se preparar, não serás o pai dos filhos dela, apenas um dia uma doce lembrança, e que seja doce.
          - Às vezes sinto que isso é uma maldição...- Ele me olhou sério.
          - Sabe o que sei disso, e espero que já saiba o que é exatamente isso.
          Assenti com a cabeça. Eu sabia sim.
          - Ela está vindo te buscar - disse ele - tenho de ir...
          Fez o gesto de passe, retribui imediatamente.
          Voltei meu olhar para a rua embaixo e não vi ninguém se aproximando, quando me voltei para falar com meu mestre ele já ia partindo subindo o beco, apenas virou-se muito rapidamente e acenou para mim, sorrindo. Quando voltei para descer a rua, Aidê já despontara e subia em minha direção. Sorri interiormente admirado, ainda tinha muito que aprender com essa voz interna, com as teias das linhas dos momentos que perfazem os quadros da existência. Desci e abracei Aidê, ela pegou minha mão docemente, beijou-me a boca e disse:
          - Vi um homem ali, estava conversando com você?
          - Passou, cumprimentou-me e seguiu...
          - Cuidado amor, você é estranho aqui, esta rua não é muito segura, vamos descer... Mas, a rua não tem saída, para aonde ele vai? É algum morador que não conheço? Bem... Vamos... Minha irmã falou à beça no meu ouvido, disse que estávamos desrespeitando a memória de "vozinha" aqui namorando, que não devíamos ter saído de lá...
          Fiquei em silêncio, anui com um aceno de cabeça. Chegamos a casa lotada de familiares. Eu, um estranho no ninho, o namorado recente de Aidê no velório de sua estimada avó. Fui sentar-me tão logo surgiu um espaço num sofá e ali me fixei, enquanto Aidê foi à cozinha ajudar a fritar mais quitutes. O caixão diante de mim. O falatório e lamentos pela sala. Ainda eram 2 horas da manhã, a madrugada ia ser longa. O sono me assediava. Mas não demorou a ficar pior; a nobre alma filósofa, da qual eu falara ao meu mestre me encontrou de novo, e trouxe novidades.
          - Oi meu rapaz, você sumiu. - Perguntei pra sua namorada de você, ela entrou aqui sozinha, pensei que tinha ido embora.
          - Não, fui tomar um ar lá fora.
          - hummm, sei! Mas ela me disse algo de você...
          - O quê?
          - Que você é estudante de filosofia e pretende fazer antropologia depois, é mesmo?
         - Sim, sim... Pretendo sim, vamos ver se o tempo me concede essa graça - e sorri timidamente.
          - Não entendi porque tivemos aquele mal entendido sobre percepção e realidade.
          - Não houve mal entendido, eu cometi um erro mesmo.
          - Ah sim... Mas gostaria de voltar ao assunto; o que acha?
          - Sim, sim claro, podemos. Disserte... Comece, gostei de seus conhecimentos, são sólidos, hei de tirar muito de minhas dúvidas aqui com você.
          Ela começou, após um silêncio olhando o caixão diante de nós a falar sobre pontos radicais como dogmatismo e ceticismo, empirismo e racionalismo, natureza e essência, soluções sobre o idealismo e realismo gnoseológicos.
Em meio à metralhadora culta da parceira ao meu lado eu olhava a mortalha e o rosto da falecida e pensava:
          - Será que essa viajante para a terra do nunca amou, viveu intensamente suas paixões, cultivou deliciosas sensações secretas ou viveu dogmaticamente para os filhos e netos como uma escrava alforriada das responsabilidades "sagradas" das convenções?
          - Sartre não dá uma puxada de tapete no século XX quando disserta sobre a existência preceder a essência - cutucava-me a alma filósofa ao meu lado.
          Olhei para ela e perguntei:
          - O que você pensa sobre Sartre estar usando fraldas geriátricas no fim de sua vida e de Simone cuidar dele como se cuidasse de um resto de gente? Uma mente genial tendo que fazer suas necessidades em uma fralda e sendo cuidado pela mulher que agora era praticamente sua enfermeira?
          - Não é o apogeu do existencialismo? - indagou ela, praticamente parafraseando o próprio Sartre, meio cínico que ele era, até em seus momentos constrangedores no final de vida.
          - Imagine - disse eu apontado para o esquife - você ali deitada, fria feito um mármore sem esse seu brilhante e fulgente pensamento trilhando os caminhos da razão? Você tem vivido intensamente seus momentos? Está amando? Tem tido orgasmos intensos quanto os terremotos que abalam ilhas e continentes? - falei baixinho pra ela - tem ajudado pessoas em sua vida sem pensar em recompensa? Tem pensado em tudo o que construímos como verdades e na possibilidade disto tudo não ter o menor valor diante de um gesto de fraternidade? Já pensou que tudo o que você aprendeu anseia por um deserto em algum lugar, em algum momento no tempo agora?
          Ela ficou me olhando por raros instantes nos olhos, olhou o esquife. Levantou-se bruscamente, perguntando se eu não queria beber alguma coisa. Eu disse que não. Ela disse, - estou com sede, já volto - e foi à copa. Não voltou mais. Nos esbarramos esporadicamente, e ela esboçou um sorriso sempre gentil; um esboço, claro. Bem, esboço eu sou; estava migrando para uma pintura íntima de segredo e silêncio, quando necessário. Ah! Não via a hora de o funeral acontecer e ir para casa me preparar para adentrar mais um átrio, e ir selecionando umas boas sementes para o plantio de uma colheita que não sei se irei usufruir.


 


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Ronaldo Honorio
Enviado por Ronaldo Honorio em 19/11/2008
Reeditado em 22/11/2018
Código do texto: T1292404
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